Castelo de Melgaço, na viragem do séc. XIX para o séc. XX |
Numa publicação de 1890, o “Archivo Histórico de Portugal”,
eleva-se Melgaço a um lugar de importância extrema na História de Portugal. Aí
podemos ler: “Pertenceu esta vila à casa de Bragança e pelos duques eram dados
todos os ofícios.
De Melgaço, são oriundas várias famílias nobres de
Portugal, tais como os Marqueses de Nisa, Condessa da Ribeira, Barão de
Proença-a-Nova, Castros Pittas, de caminha, e outras ilustres famílias, mais ou
menos aparentadas com o antigo senhor da Lapela, morgado de Covas,Gaspar de
castro Caldas.
Se Melgaço não é conhecida na sua origem, se não tem a
ilustrá-la, nem colunas, nem templos, preciosas relíquias da civilização pagã,
a sua História desde os tempos em que
foi povoada pelos cristãos é insuficientemente
honesta e heróica para lhe granjear títulos de nobreza. De quantas
vezes a Pátria precisou do seu auxílio, de lá correram valentes e intrépidos
patriótas, afrontando perigos determinando-se bravamente a todos os sacrifícios.
Nas longas e sucessivas guerras com Castela, os melgacenses souberam sempre
honrar a sua terra e a lusitana bandeira.
E não só os homens como também as filhas de Melgaço são
heróicas e arrojadas na defesa da integridade do território pátrio. Exemplos têm dado dos seus nobilíssimos sentimentos, e destes vamos fazer a narração de
um, que de per si basta a orgulhar as formosas e honestas mulheres desta briosa
vila. XX No período que medeia de 1384 a 1393, sustentou Portugal encarniçadas
batalhas com os pretendentes castelhanos.
Voltemos, porém ao nosso propósito de exemplificar o
quanto valem e o quanto bem merecem da Pátria as mulheres de Melgaço.
Permanecia ainda esta vila sob o domínio castelhano, defendendo o castelo
Álvaro Paes Sottomayor, alcaide-mor, que tinha às ordens uma guarnição de
trezentos infantes e trezentos cavalos. Enfastiado pela resistência, foi o
valente D. João I pessoalmente pôr cerco a Melgaço mas os dias decorriam sem
haver ensejo para mais do que ligeiras escaramuças sem importância para a decisão do pleito. Ao décimo dia, o
rei guerreiro, já exasperado com a situação, tomou a resolução de mandar fazer
um castelo de madeira, que ficasse a “cavaleiro das muralhas”. Vinte dias levou
o plano a executar-se. Vendo os inimigos preparar-se um assalto, deram sinal de
armistício e mandaram à praça um emissário para entabolarem negociações.
Álvaro Paes, o velho amigo de D. João I, tais condições
pôs, que não pode resolver-se coisa alguma, e então o monarca ordenou que se
desse o assalto o qual seria por ele mesmo comandado. Deu-se isto pelo ano de
1388. D. João havia-se matrimoniado recentemente com a virtuosa princesa D.
Filipa de Lencastre que tão salutar, honesta e gloriosa influência exerceu no
ânimo do esposo e na educação exerceu dos heróicos filhos. A jovem rainha
estava em Monção com as suas damas e acompanhada pelo famoso João das Regras,
sábio mestre e alma da política daqueles tempos. Viera do Porto para ver o
esposo real e tencionava residir no convento de Fiães enquanto durasse o cerco.
Espírito varonil e angélico ao mesmo tempo, não a atemorizava o perigo, antes
dele se aproximava como uma estrela de amor que lançava os seus castíssimos
reberveros no coração dos reinvindicadores dos direitos da sua nova Pátria,
pátria que a doce e bela rainha tanto amou e soube honrar!
Dentro da praça havia uma mulher destemida, espécie de
virago, que sendo naturalde melgaço, renegara a sua origem e se dera de alma e
coração aos castelhanos. Ora no arraial dos portugueses, achava-se também uma
mulher de muita valentia, do que havia bastas provas. Esta cujo nome era Inês Negra, abrigava no
coração os mais sagrados princípios patrióticos a daria a sua vida pela honra
da sua terra. Sabedora e renegada da existência da valente portuguesa nas suas
vizinhanças, mandou-a desafiar a um combate singular. Inês Negra não repeliu a
proposta, e dirigiu-se imediatamente para o lugar da justa, que ficava a meia
distância do arraial e da vila. Chegada ali encontrou a sua antagonista já
perfilada, arregaçada e capaz de lutar com o próprio Hércules. Não se intimidou
Inês mas antes se encheu de nobre indignação, em presença da desonrada virago
que atraiçoara a mãe Pátria. Feriu-se o combate com extraordinário ardor. Parece
que ambas andavam armadas, mas não especializa a crónica, a espécie de armas de
que se serviram, sabendo-se apenas que essas armas ficaram despedaçadas na refrega. Por fim, valeram-se das unhas e dos dentes. Afinal a Arrenegada, como
então se dizia, ficou vencida, rotas as vestes, esmurradas as narinas,
escalavrada a cara, e nesse vergonhoso estado de derrota, teve que fugir,
deixando como troféus à vencedora, os cabelos e os farrapos do vestuário.
Grande foi a assuada que os castelhanos sofreram no arraial português e a nossa
destemida compatriota foi vitoriada como de justiça era.
No dia imediato, caia a vila no regaço da mãe pátria, e
Inês Negra, guerreira como os guerreiros, lá estava no alto da plataforma do
castelo, cercada de besteiros, olhando amorosamente o pendão das quinas, que de
novo conquistara o seu lugar. Então, no auge do seu entusiasmo, exclamou de
forma triunfal, colocando as mãos sobre os generoso coração que parecia
disposto a saltar-lhe do seio: “Mas vencemos-te! Tornaste ao nosso poder. És do
rei de Portugal!” Salvé, brilhante heroína de Melgaço! A Pátria agradecida te
cobre de bençãos e gloriosa memória!
Durante a guerra napoleónica, não menos digna foi a
atitude de Melgaço. Esta foi a primeira praça de armas que sacudiu a jugo do
odioso Átila Moderno. Foi dali que partiu o primeiro grito de libertação, e de
lá também se levantou a famosa pleiade de valentes, que pondo à sua frente o
general Sepúlveda, tão nobremente contribuíram para o resultado da luta. (...)
Finalmente, não é a vila de Melgaço rica de pergaminhos artísticos, de que
tantas outras povoações se envaidecem, porém a sua carreira histórica dá-lhe
foros de ilustre. E os castelhano que com ela defrontar há-de compreender que
ali naquele pedaço de terreno frigidíssimo, rude, mal agradecido aos labores do
proletário; que ali, sob aquele céu, ora de um azul espelhado e frio como uma lámina
de aço polido, ora nevoento e opaco como uma desgraça latente, há corações que
abrigam o fogo sagrado dos mais nobiliantes sentimentos.
E poderá pensar que nas veias dos filhos de Melgaço corre
um sangue tão puramente português como aquele que gravou na lusitana História.
Quando uma povoação tem tão heróicos antecedentes, pode com altivez medir-se em
glórias com a mais opulenta cidade!" (Extraído de: Archivo historico: narrativa da fundação das cidades e villas do reino, seus brazões d'armas, etc. (1890), 2ª Série, Typ. Lealdade, Lisboa.)
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