Em
2016 foi publicado um estudo dedicado ao tema “Memórias de Fronteira em
Melgaço: Contrabando e Emigração - Patrimonialização, Musealização e Fruição
Turística”, onde a autora, Lídia Aguiar, contextualiza a problemática do contrabando e da emigração
em Melgaço, no Norte de Portugal, ao longo do século XX. De certa forma, o
artigo é um resgate de memórias em risco de desaparecimento, com o intuito de
as divulgar mas também de as poder transformar em produtos turísticos para a
fruição do turista cultural, valorizando um património imaterial esquecido,
abandonado, frequente e injustamente menosprezado. Trata-se de um ótimo
levantamento de testemunhos para memória futura e por isso importa aqui partilhar este extrato:
“Neste
artigo, contextualiza-se a problemática do contrabando e emigração clandestina
em Melgaço, desde a década de 30 até ao final do século XX. Convocam-se, então,
várias memórias, hoje ameaçadas, das suas populações, notoriamente
envelhecidas, que importa patrimonializar, registando-as para preservação de
identidades. (…)
Para
o sociólogo Albertino Gonçalves, o contrabando é uma ação intrinsecamente
ligada à fronteira, da qual a população de Melgaço soube tirar partido em
função da sua situação geográfica. Três quintos deste concelho confinam com a
Galiza, sendo 22Km de fronteira terrestre e 39 Km de fronteira fluvial.
Certo
é que ela, em muitos momentos, constituiu um importante motor económico para o
sustento das famílias. Homens, mulheres e crianças, carenciados ou abastados,
todos participaram, à sua maneira, nesta atividade. Na vida de fronteira, a
profissão mais procurada era a de contrabandista.
A
verdade é que o contrabando foi evoluindo por ciclos. No arco temporal a que
este estudo se refere, inicia-se com o período da Guerra Civil Espanhola (1936 –
1939). Dado o contexto politico assumido por Espanha, este país viria a ficar neste
período (desde 1936 até alguns anos após o final da II Guerra Mundial), com as
suas relações comerciais com o estrangeiro completamente cortadas. Deve-se
entender que a Guerra Civil Espanhola foi um dos mais violentos e cruéis
conflitos da História. Opôs os republicanos, então no governo desta nação, aos
Falangistas, grupo de tendência fascista e comandado pelo general Francisco Franco.
Terminou, em 1939, com a vitória do general Franco, que impôs um regime
ditatorial de direita. Entretanto, tinham-se verificado mais de 400 mil mortos;
prejuízos enormes na agricultura;
a
destruição de prédios, igrejas e casas em várias cidades. Neste mesmo ano,
iniciou-se a II Guerra. O general Franco tomou uma posição pró nazi, fação que
viria a sair derrotada neste último conflito. Por esta razão, a Espanha, vê-se impedida,
pelos países vitoriosos, em aceder aos mercados comerciais internacionais, com
normalidade.
Foi
pois, a economia subterrânea que forneceu o país vizinho de tudo quanto podia e
lhe era solicitado: bens de primeira necessidade, café, aço, peças de
automóveis; de tudo um pouco passou quer pelas batelas do Rio Minho, quer pela
raia seca, diga-se, Planalto de Castro Laboreiro.
“Depois
da Guerra tudo ia para a Espanha. Eles não tinham nada. Eu era gaiato pequeno,
mas lembro-me bem de ouvir a minha mãe e a minha avó contar isso. Depois de 1945,
finda a guerra, houve muita convivência com os galegos.
Isso
das fronteiras não afetava nada. Os guardas fechavam os olhos. Ia de tudo para
lá: sabão, sal, azeite, imagine que até carros velhos iam, pois eles não tinham
nada. Daqui ia muito pão, pois os fornos comunitários trabalhavam todos os dias”
Adelino
Esteves – Castro Laboreiro – 29/10/2013.
“O
meu pai guardava café. Tinha café cru em sacos grandes e café Sical já
embaladinho. Vinham espanhóis de muito longe buscar, mas os guardas eram muito
maus. Era a ditadura. Esta gente levava de tudo: café, açúcar, amendoins, até sabão,
linhas e velas, tudo lhes servia para levar. Depois da Guerra foi mesmo uma
miséria. Até gente de Vigo vinha cá buscar coisas.” Glória de Jesus Pires –
Cevide – 23-1-2014
A
partir de 1955, Espanha começa a sua recuperação económica. Havia já passado 10
anos após o final da II Guerra, pelo que os mercados comerciais se começaram a
abrir a este país, que rapidamente aproveitou as oportunidades oferecidas. O
contrabando toma então dois sentidos, já que a diferença cambial começa a
favorecer os Portugueses na compra de bens em Espanha.
As
trocas comerciais intensificam-se. Para que, neste novo contexto, o contrabando
seja bem-sucedido, a boa organização tornou-se essencial. Aparecem, então, as
primeiras redes bem organizadas, conduzidas pelo que a população ainda hoje
denomina “Os Senhores do Contrabando”.
“Foi
então que vieram os Senhores do Contrabando: Sr. Freitas, Sr. Alexandre, O Rita
dos Casais. Esse tinha uma batela no rio e o cunhado Miguel e ainda o Maia de
St. Gregório” Glória de Jesus Pires – Cevide – 23-1.2014
Alguns
destes “Senhores do Contrabando” organizaram-se em consórcios, criando
verdadeiras redes que atingiam todo o país e se alargavam igualmente a Espanha.
Estas associações eram bastante complexas. Envolviam muito capital e muitos
homens e mulheres a trabalhar para elas (carregadores, condutores, bateleiros,
fornecedores, intermediários e informadores). Os meios logísticos também eram
fundamentais, como as batelas, carros, camiões, radiotransmissores. Perante
esta complexidade, era essencial que a rede fosse flexível e estivesse
preparada para agir perante os imprevistos. Um dos mais perigosos, era sem
dúvida, a patrulha da Guarda-fiscal.
Tudo
poderia estar bem organizado, mas o grande sucesso das cargas esteve sempre
dependente de conivências da Guarda-fiscal. Era, pois, normal os
guardas-fiscais fazerem, eles próprios, uma contabilização do despacho das mercadorias,
na hora da carga, para depois receberem a sua parte do negócio.
“Eu
trabalhei para os Senhores do Contrabando, o Sr. Freitas, o Sr. Alexandre, O
Rita dos Casais e o Maia de S. Gregório. As pessoas aqui do regato trabalhavam
por uma miséria. Carregava 50Kg a 75Kg de caixas atadas por cordas. Os guardas
chegavam quando o camião já estava quase carregado, para verificar a quantidade
e receber o seu. Por vezes ainda ajudavam a carregar. Digo-lho eu que estava
presente.” Antero Pires – Cevide – 23-1-2014
Todos
os recursos de fuga às autoridades de pouco serviriam sem a conivência das
próprias. Neste contexto, verifica-se que estes consórcios vão sofrer mais
apreensões longe da linha de fronteira, quando os interessados transportavam as
mercadorias para as cidades como Braga, Porto, ou Lisboa.
“O
último contrabando que por aqui existiu foi o das bananas. Carregou-se muita
banana. Só na altura em que veio para cá o Tenente Abrantes, o conhecido Zeca
Diabo, é que tivemos de cortar um bocadinho, que esse não alinhava. Mas depois
tudo continuou. De Ponte da Barca até ao Porto é que era tudo mais complicado.
Sabe como é, o pessoal via muitas carrinhas a sair daqui serra abaixo e a coisa
dava nas vistas (…)” João António Abreu – Melgaço – 22-1-2014
O
contrabando evolui por ciclos. Em Melgaço, o café foi um dos ciclos mais
longos, dado Portugal ser excedentário neste produto, devido à produção que lhe
chegava das suas ex-colónias. Um outro ciclo importante foi o do gado, que se
inicia na década de 60 e perdurou praticamente até abertura das fronteiras.
Este tomou os dois sentidos.
Para
Portugal vinham vacas e para Espanha seguiam vitelos. Este grande ciclo de gado
coexistiu com o último grande ciclo, ou seja, o das bananas, tendo este tido
inicio só no inicio da década de 70.
Juntamente
com estes produtos, ao longo dos anos as mercadorias contrabandeadas foram
muito diversas. Desde o tabaco, gado suíno e ovino, bacalhau, azeite, ouro,
prata, cobre até peças de automóveis inteiros que depois eram montados em
Espanha. De tudo um pouco passava ora num sentido, ora no outro, utilizando
quer a raia seca quer as batelas do Rio Minho.
A
mulher contrabandista assumiu um papel importante. São astutas por natureza, ou
porque a vida assim as fez. Na sua larga maioria entregavam-se ao contrabando
por conta própria: ovos, galinhas, café, e na perspetiva inversa, farinha e
azeite para Portugal. Numa época mais tardia, peças de vestuário, perfumes,
chocolates e bacalhau. Era normal elas recorrerem a peças de vestuário
apropriadas para disfarçar o transporte de mercadorias mais contrabandeadas.
Também o uso de longas tranças enroladas lhes permitia esconder no cabelo peças
pequenas. O que foi muito usado para o tráfico de divisas e jóias.
O
tráfico de divisas, também conhecido por bolsa negra, era largamente utilizado
pelos emigrantes espanhóis, que face à ditadura do seu país, estavam impedidos
de enviar as remessas de dinheiro diretamente às suas famílias.
Desta
forma, este era depositado em Portugal e levantado pelos contrabandistas que em
seguida o passavam ilegalmente para Espanha e o distribuíam aos familiares dos
emigrantes.
“Ir
a Espanha era um trabalho para quem não tinha medo à vida. Por vezes tinha de
se fazer mais quilómetros para fugir aos guardas, é que nós não podíamos
repartir com eles. Os melhores dias eram os de nevoeiro ou chuva miudinha.
Assim eles não andavam pela serra. Fomos ganhando para ter para a casa; ia
então buscar, bacalhau, azeite, chocolate, baunilhas e tudo o que me
encomendassem, assim ganhava o meu vendendo porta a porta. Lá ia eu com o
carrego à cabeça e os meus filhinhos pela mão. Era uma vida bem dura. Mas lá
nos governamos com uns tostões. Sim que os nossos governantes só (…)” Maria
Emília Domingues – Cousso – 7-1-2014.
O
contrabando foi um negócio lucrativo, mas efémero. Enquanto durou, criou muitos
comércios e alimentou muitas famílias. Deve-se compreender que constituindo uma
economia paralela, os seus lucros nunca foram orientados para o desenvolvimento
local. Permitiram, no entanto, uma sobrevivência condigna a uma população pobre,
que vivendo num território limítrofe, dependia de uma parca agricultura e
pastorícia de subsistência."
Fontes
citadas:
- AGUIAR,
Lídia (2016) - Memória do Contrabando e
Emigração Clandestina em Melgaço: Patrimonialização E Musealização. In:
Percursos & Ideias, Revista Científica do ISCTE, Cadernos de Turismo - Nº 7
- 2ª Série 2016.
- GONÇALVES, Albertino (2008) - Memórias do Contrabando
no Concelho de Melgaço cit in Boletim Cultural de Melgaço (2008) pp 33-39.
Melgaço: Câmara Municipal de Melgaço.
Sem comentários:
Enviar um comentário