sexta-feira, 19 de março de 2021

A presença de soldados mercenários estrangeiros em Melgaço no século XVII


 

Em 1640, após a Restauração da independência, Portugal começa a preparar-se para a guerra. Segundo MOREIRA, L. & GARCIA, J. (2009) em Melgaço e no Minho, as ações militares iniciaram-se logo em 1641 e, enquadradas na estratégia nacional definida pelo Conselho de Guerra, revestiram-se de um caráter ofensivo sob o comando do 2º Conde de Castelo Melhor. Tais ações só se tornaram possíveis graças ao reforço por parte de vários contingentes de oficiais e soldados mercenários, especialmente franceses, que as primeiras embaixadas de D. João IV a França tinham conseguido, sob o patrocínio do Cardeal Richelieu. 

De facto, temos notícias da permanência de soldados mercenários franceses mas também holandeses na região e particularmente em Melgaço. Tal nos dá conta na edição da publicação Gazeta de Fevereiro de 1642, onde se conta que De Entre-Douro e Minho, no primeiro sábado deste mês, veio uma carta em que se avisa que um capitão de infantaria francês, tenente-coronel, enfadado da suspensão das armas e do grande ódio em que os soldados estavam na cidade de Braga, por causa do Inverno, deliberou sair em campanha e entrar por terras dos inimigos, ele só com a sua companhia, para o que foi com muito segredo, persuadindo aos seus soldados (os quais eram todos portugueses que vieram da Flandres e da Catalunha; gastou oito ou nove dias em lhes dispor os ânimos e em prevenir pólvora, balas, corda e tudo o mais que era necessário para reduzir a acto esta generosa deliberação. E um dia antes do amanhecer deu traça com ele, e os seus soldados saíram à desfilada e caminharam para Melgaço e daí foram marchando pela ponte das Varjas (velha ponte de S. Gregório) até que entraram na Galiza, destruindo e subvertendo e assolando tudo aquilo que com os olhos descobriam. Não ficou gado que não fizessem presa nem encontraram pelo caminho homem nenhum que não rendessem. Com esta bissaria foram avançando e metendo-se pela terra dentro. Porém, acudiram os inimigos de várias partes e saíram-lhes ao encontro divididos em dois troços, uns pela vanguarda e outros pela retaguarda. Estes segundos se meteram pelos matos e, sem serem vistos, nem sentidos, lhes armaram uma cilada com que lhes cortaram o caminho por onde precisamente haviam de passar quando tornassem. De modo que se marchavam para diante iam dar nas mãos dos que investiam pela vanguarda; se se retiravam, era infalível a ruína, pois metiam-se entre os que cortando-lhes o caminho os esperavam na emboscada; e se faziam alto sem dúvida ambos os esquadrões os acometiam e seria irremediável a perdição. Vendo-se o francês neste tão horrível aperto, fez uma prática aos soldados, representando-lhes o perigo em que a fortuna os havia posto e exortando-os a que deliberassem a perder antes a vida do que a honra. Não lhe deixaram os soldados acabar o discurso, porque todos unânimes e conformes se resolveram a romper aquele esquadrão, que emboscado pretendia tolher-lhes o passo antes que o outro (que já lhe tocava arma pela vanguarda) lho estorvasse. Passou o capitão para a retaguarda e logo viraram com muita destreza os soldados os rostos e foram marchando com tão boa ordem que quando chegaram à emboscada lhe descompuseram a frente e com a primeira carga, a puras feridas e mortes, abriram caminho muito antes que chegasse o esquadrão que marchava em seu alcance. Pisando morto e pondo por terra a todos os que lhe serviam de embaraço, romperam, penetraram e saíram da filada até que se puseram a salvo com tanta galhardia e admiração dos inimigos que nem o outro esquadrão, que já estava perto, se atreveu a segui-los. E o maior assombro que houve nesta heroica ousadia foi da nossa parte não ter morrido ninguém e somente um soldado saiu ferido com uma bala no braço esquerdo, o qual se veio curar à cidade de Braga, onde naquele tempo estava o general Dom Gastão Coutinho. E com este exemplo deliberaram todos sair em campanha e logo o coronel francês foi para as fronteiras do Minho”. 


Publicação "Gazeta", de Novembro de 1641

Sobre os holandeses, não temos registos muito pormenorizados, mas já sobre os oficiais franceses que estiveram aquartelados em Melgaço, temos até alguns nomes. Há documentação que faz referência a um tal Capitão Paul Sampiel ou ao Capitão Pierre Maurice Duquesne, tendo este sido também comissário geral na Província da Beira e em Olivença. Em relação ao Capitão Sampiel, ESTEVES, A. (1957) não tem a certeza que seja um dos mercenários franceses que veio para Portugal logo no princípio da Guerra da Restauração com Pierre Viole, senhor de Athis-sur-Orge, morto num dos ataques lançados contra a praça de Salvaterra. 

O facto evidente, porém, é que o Capitão Sampiel e muitos outros capitães do velho Terço de Entre Douro e Minho terem estado de guarnição na Praça de Melgaço mais ou menos demoradamente, pois por aqui se aquartelaram muitas companhias de soldados e entre ele as a do Governador da Praça António de Souza de Menezes e as do Capitão Pierre Duquesne, oficial francês. Este era capitão de Cavalaria e por Melgaço ainda estava em 1644 porque o podemos encontrar como padrinho num assento de batismo na freguesia de Santa Maria da Porta: “Aos vinte e cinco do mês de Febereiro do anno de mil e seis centos e corenta e coatro annos o Reverendo Abbade Mnauel Pinheiro de Faria bautizou a Isabel, filha de Estevão da Gaia e de sua mulher Maria Esteves e foram padrinhos o governador da cavalaria Pedro Maurício Duquesne, francês, e madrinha Joanna Lobata desta vila e nasceu aos dezoito do mesmo mês e por verdade o fiz e assinei oje dia. Era e supra. 

Manuel Pinheiro.” 

Ainda em relação ao Capitão Pierre Sampiel, este ainda estava em Melgaço no ano de 1653, onde vivia com a sua esposa. A sua permanência em Melgaço terá sido prolongada ao ponto de ter pertencido inclusivamente à Confraria das Almas de Santa Maria da Porta (vila de Melgaço). Para o provar, dois documentos: um, o seu assento de irmão lavrado no respetivo livro da Confraria, onde se pode ler: 

“O Capp.am Pº Fulon Sampiel 

E sua m.er Dona Marianna ano de 1653” e à margem “deu d’entrada por toda a casa 1200”. 

Um outro documento é uma escritura lavrada em Melgaço em 11 de Agosto de 1655, por no caso estar envolvido um soldado da companhia do Capitão Sampiel: a do perdão do crime, papel outorgado por Manuel Rodrigues e mulher Páscoa Gonçalves, e Domingas Gonçalves, ficha que ficou de Domingos Esteves, morador na vila, pois a certa altura todos eles disseram “que por quanto elles crelaram neste juízo de Baltezar Gonçalves, soldado de infantaria da companhia do Capitam Sampiel, francês, por razão de serem feridos que lhe deram como constava de suas crelas e queixumes que estavam em poder de António Pinheiro e Francisquo Soares, tabeliains desta dita vila e era porque achavam que o dil digo que ao tempo que o caso acontecera ffora acidentalmente sem intervir propósito nem reixa velha”. 

Esta é a última referência individual a soldados franceses em Melgaço durante a guerra da Restauração, ainda que é muito provável que tenham permanecido mais anos por cá. 



 

Extraído de:  

-GARCIA, João C & MOREIRA, Luís M. (2009) - Castro Laboreiro na Guerra da Restauração: análise de duas plantas do castelo. Separata do Boletim Cultural da Câmara Municipal de Melgaço. 

-GAZETA, edição de Fevereiro de 1641. 

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