Castro Laboreiro, noutros tempos
(Foto de António Jorge Barros)
No seu romance “Maria dos Tojos”, publicado em 1938, o jornalista melgacense Miguel Ângelo de Barros Ferreira centra a intriga de um violento drama amoroso em plena serra, numa aldeia em Castro Laboreiro, onde o povo vivia, nos anos trinta, entre as lides nos campos de semeadura, o pastoreio comunal e a dolorosa emigração sazonal. Nómadas do trabalho assalariado, os que partiam, se menos ambiciosos para se atreverem a demandar as Astúrias, Catalunha ou França, iam só até Trás-os Montes ou Beira Alta, “em peregrinação a pé, por exiguidade de recursos (...), varando serras sem noção de fronteiras”, que os limites da sua freguesia morriam na Ponte Velha ou, pouco além, na “Ameijoeira, no Ribeiro de Baixo, que dividia a fronteira portuguesa da espanhola”. Partiam as levas no Outono, “mal os primeiros frios anunciavam a aproximação do Inverno” e, “quando voltava a Primavera, regressavam alegres, aos lares humildes, com um pecúlio amassado de privações e submissão à ganância dos mestres de obras que, à custa do suor alheio, ganhavam o descanso das suas velhices”. Alguns mais moços resignavam-se a ficar, mas sempre inconformados com este “viver na serra, entre mulheres que arroteavam as terras, na ausência dos maridos e dos irmãos, e homens decrépitos, que viviam das recordações da sua mocidade trabalhosa”.
As Astúrias,
no início dos anos trinta, eram terras que atraiam os raianos do sítio com dois
duros pagos por dia, quando na serra em que viviam mal dava para comer. A
passagem do gado para a Galiza, modo de vida para alguns, não constituía, bem
vistas as coisas, “uma desobediência mas uma imposição da miséria” – que o
lucro de dois tostões, com “risco de apanhar um tiro” mal lhes dava “para
sustentar os filhos no dia seguinte”. O longo capítulo “O contrabando”, do
romance “Maria dos Tojos”, é expressivo e de abundante pormenorização acerca do
tráfico de bovinos, nesse tempo de antes da guerra civil, aproveitando os campos
contíguos das faldas da serra com as pastagens galegas. Os ventos pareciam
varridos de mudança e não transparecia o motivo: “os géneros alimentícios eram
generosamente pagos em Espanha, como se a fome houvesse alastrado por aquelas
províncias fartas da Galiza, que antes lhes forneciam com barateza os raros
mimos dos seus cardápios de dias de festa”. Como erva em chão húmido, assim
alastrava a aranha contrabandista. Barros Ferreira descreve assim o panorama da
época: Aumentava o custo de vida em Portugal, mas o lucro do contrabando tudo
compensava. Depois, cada junta de bois rende mais do que nas feiras. O antigo
valor aquisitivo da sonoras moedas de coroa, muitas das quais ainda ostentavam
ainda a égide de D. Luiz , rei de Portugal e dos Algarves, decaiu para menos de
um tostão, e os serranos já não sabiam fazer contas, tomando como base das suas
transações a “moeda”. Homens e mulheres, à porfia fizeram subir a escala e a
audácia do contrabando: “Do arroz e açúcar, para consumo doméstico, cresceu,
tomou impulso, estendeu-se ao tecidos
caros, ao calçado e ao azeite, para os comerciantes da “ribeira”, onde iam
comprar milho das colónias, a preços reduzidos e entregue por meio de
requisições, e que pagavam por bom preço, no outro lado, numa fábrica de destilação de álcool de cereais”. O contrabando organiza-se em empresa “que
atraía capitais, pois o lucro compensava largamente os prejuízos e os riscos”.
A dificuldade maior,
quanto ao gado, era “conduzir os bois até ao outro lado do ribeiro”, pois se os
carabineiros se mostravam complacentes, os guardas-fiscais mostravam-se
rigorosos. O tráfico vertia-se em dinheiro e do lucros saíam comissões para os
conhecedores da terra que adquiriam os animais aos camponeses da zona e
angariavam compradores na fronteira galega depois de passá-los a vau.
Contudo, tanto do lado
da Galiza, “defronte, na outra margem do ribeiro”, como de Portugal, “a mesma
cadeia de montes se abraçava”, não ficando a raia mais que “uma convenção” e a
noção de Pátria convertida em fronteira. No lado de lá, havia um posto
de carabineiros, para repressão do contrabando; na margem portuguesa, um
quartel de guardas-fiscais. Contudo, neste meio pequeno, todos se conheciam e cumprimentavam.
Havia uma espécie de confraternização entre os carabineiros de tricórnio de
oleado, os guardas-fiscais e os contrabandistas, num tácito reconhecimento de
que deviam o pão à existência comum. Evitavam astutamente encontrar-se, para
que não houvesse quebra da disciplina nem abuso da tolerância”. Tácito
realismo, suficiente para o contrabando ser aceite como um mal necessário.
Nota: Este livro serviu de argumento para a realização do filme "Serra Brava" do realizador Armando Miranda de 1948.
Capa do livro "Maria dos Tojos" (1938)
Informações extraídas de:
- MARQUES, João Francisco, (2004) - O Contrabando no Romance Contemporâneo Português - Contextos Espacio-Sociais e Histórico - Económicos. Estudos em homenagem a Luis António de Oliveira Ramos, FLUP, Porto.
Nota: Este livro serviu de argumento para a realização do filme "Serra Brava" do realizador Armando Miranda de 1948.
Boa Noite,
ResponderEliminarSou neta do escritor MIguel Angelo Barros Ferreira, sou Brasileira, e fiquei muito feliz em encontrar algum relato sobre meu avô aqui. Estava pesquisando algumas coisas sobre ele e me deparei com essa página. Obrigada pela lembrança dele. Abraços
Li diversos livros do escritor Miguel Ângelo Barros Ferreira, seu avô, minhoto, de Melgaço. Na década de 1950, morei e frequentei muito a cidade de Santos, e disseram-me que vivia lá uma filha desse escritor. A Elke Mascarenhas é descendente dela? Abraço.
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