segunda-feira, 14 de abril de 2014

Memórias da emigração "a salto" contadas na primeira pessoa (Parte I)



Já lá vão mais de 50 anos e a irmã mais velha de José Gonçalves ainda fica levada do diabo quando lhe falam nisso. “Foi embora sem dizer nada aos pais! A minha mãezinha berrava muito! Ai, o que me havia de fazer o desgraçado!” Estaria preso? Estaria morto? Só pedia “que a bênção de Deus o cobrisse”.
Em Castro Laboreiro, na serra da Peneda, qualquer família que se prezasse tinha casa de Verão e casa de Inverno. Os pais já tinham ido para a casa nas brandas, nome dado aos lugares que pontuam o planalto. José ficara com uma irmã e uma sobrinha nas inverneiras, os lugares que polvilham o vale, de clima menos inclemente. A menina carecia de leite e lá estavam as cabras e as ovelhas.
A casa resiste. Paredes de cantaria a fazer dois pisos. Por cima, gente; por baixo, gado e alfaias agrícolas. Andava por ali quando deu de cara com dona Prazeres. Capucha de burel enfiada na cabeça, tamancos toscos seguros aos pés por correias, vinha perguntar-lhe se sempre queria ir para França, como lhe confidenciara. 
Homens robustos, tantos deles de mãos ásperas, passavam há muito por Melgaço. Mais a partir de 1961, com a eclosão da guerra em Angola que se haveria de estender a todas as colónias. Obter um passaporte de emigrante era difícil. A maior parte avançava com passaporte de turista, passaporte falso ou “passaporte de coelho”, isto é, sem documentos, “a salto”. 
José tinha 16 anos “mal feitos”. Não queria ir para a guerra. Não era homem de guerras. Nem queria fazer vida de enxada na mão. Tinha braços rijos e alma escorreita. Sabia bem o que faziam os iguais a ele. Ali, em Castro Laboreiro, cobriam-se de preto as mulheres de todos os que abalavam. 
Deteve-se na ponte de Varziela, estrutura medieval, de granito, com um arco em forma de cavalete, a pensar se haveria de falar com os pais, como combinara com dona Prazeres. O velho ia dar-lhe com um não. Por vontade dele, esperaria pela carta de chamada de um primo, mas José não queria ir para ao pé desse, conhecido por “morto de fome”, queria o outro, o que havia pouco ali estivera de férias. 
Decidiu partir sem uma palavra. Passou pela mercearia da vila. Pediu um par de calças, uns quantos lenços, uns cigarritos para pôr na conta do velho. À hora combinada, estava junto de dona Prazeres. “Vais sempre a andar 200 metros à minha frente por causa da Guarda Fiscal”, ordenou-lhe ela. Nem só ela se arriscava. Dois meses depois do ataque da União das Populações de Angola, que desencadeou a guerra colonial, emigrar sem permissão tornara-se crime punível com dois anos de prisão. Na casa isolada na montanha a que ela o conduziu, cinco homens aguardavam passador espanhol. 
Que estirada comprida aquela! Um mês lhe tomou. Fevereiro de 1962, um frio danado. Caminhavam tanto que até se aqueciam. Dá-lhe que dá-lhe. Só souberam o que era carro para lá de Ourense. Nem sabe dizer o nome dos lugares pelos quais passaram. Atravessaram baldios, campos de cultivo, vinhas com arames aguçados. Ficou com as calças num trapo. E habituado estava ele a andar com o gado na serra. Saltava como um cabrito. Podiam ficar dias, escondidos, à espera do momento certo para voltar a andar. Furavam a noite. Luziam-lhes os olhos. Dormiam em palheiros ou em currais. Deitavam-se uns colados aos outros. Mal se esticavam irrompiam em roncos.
O grupo ia engrossando. Antes de chegar aos Pirenéus, José alcançou o alfaiate que saíra da sua terra 15 dias antes. “Ia estafadinho. Era um fracote.” Inquietou-se com aquele pobre de Cristo. “Eu ouvira dizer que muitos passadores atiravam aos corgos, ao rio, a um buraco qualquer quem não chegava a reagir de andar. Ia sempre atrás dele. Vinha o passador, chicoteava-me para passar para a frente. Nunca o deixei. Levava umas chicotadas, ia para a frente, mas voltava para trás.” 
Entrando em França, arrumaram-se 73 ou 75 homens num camião. No semi-reboque, bidões faziam de retrete. Naquele aperto fétido, fungavam alguns machos, tantos já maridos, por vezes pais. “Coragem”, eis a palavra que ainda agora lhe ocorre. Era para tirar o ventre de misérias que caminhavam em direcção ao desconhecido, sem saber francês, de mãos a abanar, com uma morada no bolso. 
Para prevenir maltrato e abandono, muitos tinham deixado parte do dinheiro da viagem em casa de pessoa de confiança. Ela entregaria as notas ao engajador depois de receber uma carta ou parte de uma fotografia rasgada. José nem isso. O pai, que dona Prazeres tão bem conhecia, que lhe pagasse.
Mandou notícias mal se juntou ao primo. Contou aos pais que levara muito tempo no caminho, comendo apenas “migalhas de pão com chocolate”. Passara fome. “Vira-me aflito para fazer do corpo.” Perante tal relato, em vez de 8500 escudos ajustados com dona Prazeres, o pai entregou-lhe 8 mil. “Não faças isso, esse é o ganhinho dela”, pediu-lhe a mãe. Tinha razão, era a sua parte. O dinheiro teria de se dividir por todos os que guiaram o moço até Versalhes. Sem o marido saber, a mãe pagou os 500 escudos à angariadora, mulher sem homem, com filhos.

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Texto extraído de:
- Reportagem "Passadoras de Homens e outras aventureiras" de Ana Cristina Pereira, Adriano Miranda e Mariana Correia Pinto, do jornal "Público" da edição de 13 de Abril de 2014.

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