Já lá vão mais de 50 anos e a irmã mais velha de
José Gonçalves ainda fica levada do diabo quando lhe falam nisso. “Foi embora
sem dizer nada aos pais! A minha mãezinha berrava muito! Ai, o que me havia de
fazer o desgraçado!” Estaria preso? Estaria morto? Só pedia “que a bênção de
Deus o cobrisse”.
Em Castro Laboreiro, na serra da Peneda, qualquer família
que se prezasse tinha casa de Verão e casa de Inverno. Os pais já tinham ido
para a casa nas brandas, nome dado aos lugares que pontuam o planalto. José
ficara com uma irmã e uma sobrinha nas inverneiras, os lugares que polvilham o
vale, de clima menos inclemente. A menina carecia de leite e lá estavam as
cabras e as ovelhas.
A casa resiste. Paredes de cantaria a fazer dois pisos.
Por cima, gente; por baixo, gado e alfaias agrícolas. Andava por ali quando deu
de cara com dona Prazeres. Capucha de burel enfiada na cabeça, tamancos toscos
seguros aos pés por correias, vinha perguntar-lhe se sempre queria ir para
França, como lhe confidenciara.
Homens robustos, tantos deles de mãos ásperas, passavam
há muito por Melgaço. Mais a partir de 1961, com a eclosão da guerra em Angola
que se haveria de estender a todas as colónias. Obter um passaporte de
emigrante era difícil. A maior parte avançava com passaporte de turista,
passaporte falso ou “passaporte de coelho”, isto é, sem documentos, “a
salto”.
José tinha 16 anos “mal feitos”. Não queria ir para a
guerra. Não era homem de guerras. Nem queria fazer vida de enxada na mão. Tinha
braços rijos e alma escorreita. Sabia bem o que faziam os iguais a ele. Ali, em
Castro Laboreiro, cobriam-se de preto as mulheres de todos os que
abalavam.
Deteve-se na ponte de Varziela, estrutura medieval, de
granito, com um arco em forma de cavalete, a pensar se haveria de falar com os
pais, como combinara com dona Prazeres. O velho ia dar-lhe com um não. Por
vontade dele, esperaria pela carta de chamada de um primo, mas José não queria
ir para ao pé desse, conhecido por “morto de fome”, queria o outro, o que havia
pouco ali estivera de férias.
Decidiu partir sem uma palavra. Passou pela mercearia da
vila. Pediu um par de calças, uns quantos lenços, uns cigarritos para pôr na
conta do velho. À hora combinada, estava junto de dona Prazeres. “Vais sempre a
andar 200 metros à minha frente por causa da Guarda Fiscal”, ordenou-lhe ela.
Nem só ela se arriscava. Dois meses depois do ataque da União das Populações de
Angola, que desencadeou a guerra colonial, emigrar sem permissão tornara-se
crime punível com dois anos de prisão. Na casa isolada na montanha a que ela o
conduziu, cinco homens aguardavam passador espanhol.
Que estirada comprida aquela! Um mês lhe tomou. Fevereiro
de 1962, um frio danado. Caminhavam tanto que até se aqueciam. Dá-lhe que
dá-lhe. Só souberam o que era carro para lá de Ourense. Nem sabe dizer o nome
dos lugares pelos quais passaram. Atravessaram baldios, campos de cultivo,
vinhas com arames aguçados. Ficou com as calças num trapo. E habituado estava
ele a andar com o gado na serra. Saltava como um cabrito. Podiam ficar dias,
escondidos, à espera do momento certo para voltar a andar. Furavam a noite.
Luziam-lhes os olhos. Dormiam em palheiros ou em currais. Deitavam-se uns
colados aos outros. Mal se esticavam irrompiam em roncos.
O grupo ia engrossando. Antes de chegar aos Pirenéus,
José alcançou o alfaiate que saíra da sua terra 15 dias antes. “Ia estafadinho.
Era um fracote.” Inquietou-se com aquele pobre de Cristo. “Eu ouvira dizer que
muitos passadores atiravam aos corgos, ao rio, a um buraco qualquer quem não
chegava a reagir de andar. Ia sempre atrás dele. Vinha o passador,
chicoteava-me para passar para a frente. Nunca o deixei. Levava umas
chicotadas, ia para a frente, mas voltava para trás.”
Entrando em França, arrumaram-se 73 ou 75 homens num
camião. No semi-reboque, bidões faziam de retrete. Naquele aperto fétido,
fungavam alguns machos, tantos já maridos, por vezes pais. “Coragem”, eis a
palavra que ainda agora lhe ocorre. Era para tirar o ventre de misérias que
caminhavam em direcção ao desconhecido, sem saber francês, de mãos a abanar,
com uma morada no bolso.
Para prevenir maltrato e abandono, muitos tinham deixado
parte do dinheiro da viagem em casa de pessoa de confiança. Ela entregaria as
notas ao engajador depois de receber uma carta ou parte de uma fotografia
rasgada. José nem isso. O pai, que dona Prazeres tão bem conhecia, que lhe
pagasse.
Mandou notícias mal se juntou ao primo. Contou aos pais
que levara muito tempo no caminho, comendo apenas “migalhas de pão com
chocolate”. Passara fome. “Vira-me aflito para fazer do corpo.” Perante tal
relato, em vez de 8500 escudos ajustados com dona Prazeres, o pai entregou-lhe
8 mil. “Não faças isso, esse é o ganhinho dela”, pediu-lhe a mãe. Tinha razão,
era a sua parte. O dinheiro teria de se dividir por todos os que guiaram o moço
até Versalhes. Sem o marido saber, a mãe pagou os 500 escudos à angariadora,
mulher sem homem, com filhos.
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Leia a parte II em "Memórias da emigração "a salto" contadas na primeira pessoa (Parte II)"
Texto extraído de:
- Reportagem "Passadoras de Homens e outras
aventureiras" de Ana Cristina Pereira, Adriano Miranda e Mariana
Correia Pinto, do jornal "Público" da edição de 13 de Abril de 2014.
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