sábado, 10 de maio de 2014

Castro Laboreiro, 1903 - Dois castrejos à conversa (Parte 1)

Castro Laboreiro, início do século XX
(Foto: Torre do Tombo)

Em 1928, José Leite de Vasconcelos, “pai” da antropologia moderna em Portugal, publicou um trabalho sobre a linguagem popular falada em Castro Laboreiro . Esse trabalho parte de um texto enviado em 19 de Novembro de 1903 pelo Abade de Melgaço, Manuel José Domingues, natural de Castro Laboreiro, para o investigador. Nesse texto é feita uma tentativa de transpor o castrejo falado para a escrita.
O dito texto reproduz um diálogo travado entre dois populares castrejos. Um velho, que está sentado ao lume e um indivíduo mais novo que o foi visitar, e o trata respeitosamente por tio.
No texto, representa-se a linguagem castreja com toda a natureza e pureza, “pelo menos como os velhos então a falavam”.  Desconhece-se se este diálogo é verídico ou é fictício.

- Deus lhe dia boas noites tio Francisco! Intóm est’á ó lume, ei! É ele huje sabe, cá faz um frio que parece Janeiro, com’é.
 - Isto um bélho tem de star sempre’ó lume, cá lá ó frio nom pode star! Intóm stou p’ràqui ó  borralho p’ra tê’los pés quentes.
 - Cecais qu’estaria milhôr na cama porqu’ò calor da cama é milhôr.
 – Mais na cama nom se póde estar sempre, c’àté dói o corpo è os ossos: è em canto a gente póde lebantar estas pernas, bai-s’erguendo.
 – Pois eu huje fui guiá’la auga á Porteleira, é bi-me mal co’a nebe: todo era escorregar, escorregar, que dei cada caída, c’até me parcia que nom me lebantaba, nim binha pr’ó eido!! É apareceu-m’o condanido do lobo no caminho, que p’ra me librar d’ele, bi-m’entr’à cruz e o caldeirinho, è pensei que era huje a minha última.
 - Sume-t’artelo! Eu t’arrenego! Àbrenúncio! Que demonho de bicho! Cá faç tanto mal perí! Só com obelhas tem comido tantas, tantas, c’àté nom sei como lhe nom cái o rabo co’as unturas que dá ás tripas!
- Veigam-che cantos hai no outro mundo! C’ó demonho do lobo até me fezo pôr rouco a berrar eu ú, ú, ú; mais ninguém m’oubia. Olhe cá pensei que lhe daba üa cêa àquele condanido. Eu bém chamaba é berregaba, mais ninguém me falaba! O escomungado parece qu’adebinhaba que estabámos ali só os dous, p’ra juntá´los coletes.
 – Pois graças a Deus qu’escapache d’esta enfeita.
– È que tal? Hai herba nos campos estiano?
 – A cousa regula pelos outros anos: nim hai muita, nim hai pouca, hai um remédio p’ra gobernar, é ir tendo mã dos ossos ás baquinhas, cá as minhas pequeninhas estiano sóm bem castigadas do frio.
 – Sóm, sóm! Olha qu’este ano bai frio, qui-eu já conto dous carros è nom me lembro de tanta frialdade: só é por eu ser bélho, è senti-lo mais!
 – Olhe q’o ano bai sequeiro. A minha Maria tamém se queixa, q’às berças estiano já secárum todas co’a giada, é que nom hai com que faze’lo cardo: è a gente sem cardo parece que nom quéce por dentro.

 – Ai intóm nom sô eu só que conheço isso, é porque é berdade, qu’o ano bai coelheiro; mais olha nom ch’hai mal que nom traga bem. O frio no seu tempo tamém ch’é bô, cá já meu abô dezia qu’[em Janeiro sube ó outeiro: è chora, se bires berdegar, è canta se bires terrear]. Olha c’ó ditado dos bélhos sai-che certo, por qu’olhà giada matos bichos qu’andã nos campos, p’ra que despois nom coma os fruitos e à nobidade toda.» 


---------------(CONTINUA)------------------

Extraído de: VASCONCELLOS, José Leite de (1928) - Linguagem Popular de Castro Laboreiro.  in Opúsculos, Vol. II – Dialectologia (parte I),Imprensa da Universidade, Coimbra.

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