(Foto de Vitor Oliveira)
A Igreja da Misericórdia
resultou da adaptação de uma outra igreja pré-existente, com invocação de Santa
Maria do Campo.
Trata-se de uma igreja de
fundação medieval onde se instalaria a Confraria da Misericórdia, sendo a única
do distrito que conservou a sua antiga estrutura. Na fachada sul, conserva dois
cachorros românicos, testemunhos de uma anterior capela, provavelmente do séc.
XIII, e o paramento incorpora duas inscrições, uma muito erosionada e outra, do
séc. XIV, com a inscrição "LAVOR M A / DOMINGO D S", indicando,
possivelmente, Domingo Dias (?) como hipotético arquitecto de uma remodelação
do templo. O frontispício segue a tradição românica mas foi muito reformulado
no século XVIII, época da modinatura dos vãos e quando também se deve ter
prolongado e alteado a capela-mor. O corpo do Consistório apresenta um aparelho
distinto e menos cuidado que o da igreja, em alvenaria irregular que
originalmente deveria ser rebocada, e com pilastras nos cunhais que, tal como a
"loggia", corresponde a uma remodelação do edifício. O coro-alto
forma planta em L com longa tribuna, sobre mísulas decoradas, albergando interessante
cadeiral dos Mesários. As mísulas são muito semelhantes às da Misericórdia de
Valença. Os retábulos laterais confrontantes são maneiristas, de tipo nicho, e
o outro do lado do Evangelho é barroco, de transição entre o estilo nacional e
o joanino, e com frontal de altar já rococó. A capela-mor tem uma interessante
caixa de esmolas pintada, no espaldar, com cena de Senhor carregando a cruz, e
no pavimento duas tampas sepulcrais epigrafadas, do século XVIIulo XVIII. Na
sacristia, sobre o arcaz, encontra-se um oratório, em talha, de alguma
qualidade artística. A Bandeira representa a Visitação. Junto à entrada
principal da igreja encontram-se dois sarcófagos antropomórficos com tampas de
secção pentagonal com volume em quatro águas. Juntamente com a Misericórdia de
Valadares, era a única no distrito que não possuia hospital no século XIX.
Deixo aqui algumas
referências históricas ao longo do séculos acerca deste templo. No século XII,
existe uma referência documental à existência de três igrejas na vila de
Melgaço: a igreja de Santa Maria do Campo, a de São Facundo e a de Santa Maria
da Porta. Em 1258, a igreja de Santa Maria do Campo foi integrada no padroado
real. Em 1320, a mesma foi taxada em 30 libras. Em 1432, a 2 Julho, há a
confirmação do bispo de Tui sobre o padroado da igreja de Santa Maria do Campo,
pertencente a leigos, sendo, à data, a apresentação do abade feita por Geraldo
Miguel e seu filho Geraldo, moradores no castelo de Melgaço. O pároco
apresentado, Rui Lourenço, já era reitor da igreja de São Facundo, na vila. Em
1453, a 20 Agosto, foi elaborado um diploma que anexa à igreja a de São Fagundo
à de Santa Maria do Campo. Em 30 Agosto, a apresentação da igreja pertencia ao
administrador perpétuo no espiritual e temporal do bispado de Tui na parte de
Portugal, que nesta data apresentou Álvaro Rodrigues.
No século XVI, o padroado já
pertencia ao arcebispado de Braga. É do início deste século que data a fundação
da Santa Casa da Misericórdia de Melgaço. Entre 1514 e 1532, no sensual de D.
Diogo de Sousa, a igreja de Santa Maria do Campo rendia ao arcebispo 78 reais.
Nas mãos deste prelado, Lopo da Cunha renunciou a igreja de Santa Maria do
Campo, juntamente com as outras onde era abade.
De 1517, data a confirmação
dos Estatutos da Santa Casa de Misericórdia de Melgaço. Em 1523, a 5 Fevereiro,
o abade da Igreja de Santa Maria do Campo foi substituído por Aires da Costa,
que, poucos dias depois, também renunciou. Em 23 Abril, foi nomeado António de
Castro, Clérigo de Ordens Menores para a Igreja de Santa Maria do Campo.
Em 1531, é publicado o
alvará real entregando à Confraria da Misericórdia de Melgaço o Hospital de São
Gião existente na vila. Em Dezembro de 1564, foi publicado o diploma de
extinção da igreja de Santa Maria do Campo pelo arcebispo de Braga, Frei
Bartolomeu dos Mártires.
Em finais do século XVI, é registado
em tombo a mudança da igreja de Santa Maria do Campo para a Misericórdia. Em
1591, a 2 Fevereiro é feito o contrato entre a Misericórdia, sendo provedor Gil
Gonçalves Leitão, e António de Figueiroa para este pintar o retábulo e fazer a
bandeira, hoje já desaparecida, e grades, pelo preço de de 56.5000 reais. Recebeu
apenas 43.520 reais em dinheiro, dada a falta de recursos da Misericórdia, pelo
que se decidiu "dar-lhe em satisfação do remate de pagua huma cruz que a
Casa tinha a qual foi pesada nesta vila na feira por hos hourives de Salvaterra
que a ela costumão vir e pesava doze mil novecentos e oitenta reis".
A obra de imaginária do
retábulo foi feita por Pero Lopes, por 26.200 reais. Em Outubro é feito um
pagamento a António de Figueiroa 1400 reais por pintar o púlpito e a coluna das
galhetas da igreja. Em 1619 um documento refere que os Irmãos da Confraria
deveriam mandar buscar a telha à antiga igreja de São Fagundo para que, com
ela, pudessem retelhar a Igreja da Misericórdia.
Em 1641, o Desembargador
Gregório de Balcacem de Morais, Visitador e Reformador Geral das Fronteiras do
Reino, procurou estabelecer um acordo com a Santa Casa da Misericórdia para ela
tratar dos feridos de guerra. O provedor, no entanto, alegando o estado de
pobreza da instituição, escusou-se a tratar gratuitamente os soldados e a
fornecer-lhes remédios sem pagamento.
Em 1672 e 1673, era provedor
Pero Gomes de Abreu Magalhães, altura em que tiveram origem os sermões
quaresmais pregados na vila até finais do século XIX através do acordo
deliberado pela Mesa em 12 Fevereiro 1673.
Em 1676, foi feita a remoção
das tábuas do antigo retábulo-mor para a Matriz da vila e foram construídos novos
retábulos pelo entalhador de Valadares Jácome de Araújo. De facto, as antigas
tábuas do retábulo-mor e a sua talha encontram-se actualmente na Igreja Matriz
de Melgaço, na Capela dos Almeidas no lado do Evangelho. As tábuas representam
Cristo ressuscitado, São Pedro, Imaculada Conceição e São Sebastião,
Apresentação da Virgem no Templo e Apresentação do Menino no Templo. Na predela
figuram as cenas, em baixo- relevo, da Visitação e da Anunciação, da autoria de
Pero Lopes. Também da predela é a representação da Adoração dos Magos, tendo no
reverso a legenda "Mizericordia de Melgaço" e que, segundo Vítor
Serrão, se inspira, de modo simplificado, numa estampa de Jerónimo Wierix do
"Evangeliarium Imagines", do Padre Jerónimo Nadal, de 1591.
Em 1692 ou 1693, foi eleito
provedor Francisco de Araújo Sarmento, mas que por razão desconhecida foi
preso, deixando a misericórdia um pouco à deriva. No século XVIII provavelmente
o edifício sofreu uma remodelação. Foi feito o aumento das "capelas de
Missas", substituição dos paramentos velhos e usados por outros novos,
aquisição de alfaias para as procissões, mas devido à penúria em que vivia,
recorriam constantemente às Misericórdias vizinhas de Valadares e Monção a fim
de lhe emprestarem balandraus (capas).
Em 1740, embora o capital
fosse de 3.521.000 reis, as esmolas dadas pela Misericórdia aos pobres não eram
muito abastadas. Diariamente dava-se a António Gomes, entrevado numa cama, 10 reis
e a Francisco Quintela 7,5 reis. Em 1741, a 19 Março, são suspensas as esmolas,
devido às poucas possibilidades da Confraria. Em 1758, a 24 Maio, a vila não
tinha hospital, mas apenas Misericórdia que tinha de renda 400$000. Em 1769, o padre
Manuel Esteves da Costa ofereceu à Misericórdia uma lâmpada de prata, à romana,
para alumiar o Senhor da Cruz.
No século XIX, foi
construído o retábulo-mor. Em 1838, o Administrador Geral do Distrito de Viana
do Castelo afirma que a maioria das Misericórdias estavam muito mal
administradas, o que originava a perda de muitas dívidas e foros, em resultado
do desleixo e pouco zelo das Misericórdias. Em 1839, o Administrador envia um
comissário contabilista para reformar todas a sua escrituração e examinar os
erros de liquidação e desleixo. Em 1840 ou 1841, sob a alçada de José Manuel
Gomes de Abreu, a Mesa ruiu várias vezes; compraram-se as mãos e as cabeças
precisas para se armarem as figuras das personagens necessárias para a
procissão dos Santos Passos, a fim de evitar pedidos a outras misericórdias. Em
1846, são feitas várias obras na igreja por se encontrar bastante danificada.
Em 1849, a 20 Novembro, João Correia dos Santos Lima, negociante na vila de
Melgaço, procurador de Joaquim Maria Osório, natural da vila e morador no Grão
Pará, Brasil, entregou na secretaria da Misericórdia a promessa feita pelo dito
Osório ao Senhor dos Passos "uma tunica d'orbão de seda roxa, uma corda
amarela e uma cabeleira preta, tudo novo e acondicimado em caixão de pau".
Em 1863, a Misericórdia tinha 12 857$868 reis de fundos, sendo 138$040 em
domínios directos, 12 519$828 em capitais mutuados e 200$000 em alfaias, jóias
e móveis; tinha 627$015 reis em receitas ordinárias, sendo 4$902 em dinheiro e
622$113 em juros de capitais mutuados. Tinha ainda como despesas obrigatórias
300$000 reis, em encargos pios.
Em 1943, sendo Provedor Dr.
Augusto Cesar Esteves, as mulheres passaram a ter o direito de se inscreverem
como Irmãs da Misericórdia. Em 1944, era capelão o páraco da vila António de
Jesus Rodrigues, o primeiro a exercer funções de páraco da vila e capelão da
Misericórdia, pois até então a Confraria sempre teve os seus próprios capelães.
Em termos arquitetónicos, esta
igreja possui uma planta
longitudinal, composta por nave única e capela-mor rectangulares, sacristia e
Consistório, rectangulares, adossados a este e sineira e "loggia",
rectangular, percorrendo a fachada norte. Volumes escalonadas, com coberturas
diferenciadas, em telhados de duas e três águas. Fachadas, com paramentos em
cantaria de granito em fiadas pseudo-isódomas, na igreja, e em alvenaria
irregular de granito, na sacristia e Consistório, percorridas por cornija
saliente. Fachada principal, orientada a oeste, em empena com cornija saliente,
tendo, no remate, cruz sobre acrotério e cunhais sobrepujados por pináculos;
portal de arco apontado, de duas arquivoltas, assente em impostas lisas,
encimado por janelão, de brincos, com verga abatida sublinhada superiormente
por cornija saliente, e sineira de uma ventana, em corpo rectangular adossado a
norte. Fachada sul com três janelas rectangulares e corpo saliente de altar, na
capela-mor, e janela e porta rectangulares na sacristia e Consistório. A
fachada este, com pilastras nos cunhais, tem escadaria, pétrea, de um lanço, de
acesso ao Consistório, porta rectangular no 1º piso e janela rectangular e
porta de verga abatida no 2º piso. Fachada norte, com pilastras nos cunhais do
Consistório e da "loggia", apresenta janelas rectangulares no
Consistório e janelos rectangulares horizontalizados nos arrumos, sendo
percorrida, no terço anterior, ao nível do 2º piso, por "loggia", com
porta de verga recta, em ferro forjado, no primeiro piso.
O interior é rebocado e caiado, tendo ligado
ao coro-alto, do lado da Epístola, formando um L, tribuna assente em trave de
madeira, sobre mísulas pétreas decoradas com dupla voluta e motivos fitomórficos,
e balaustrada de madeira. O guarda-vento é em madeira e pia de água benta no
sub-coro. Lateralmente, do lado do Evangelho, porta de verga recta com
frontaleira e púlpito rectangular sobre mísula pétrea, com balaustrada de
madeira. A capela-mor, definida por sanefa, em talha dourada e branca, com as
insígnias da Misericórdia ao centro, apresenta-se sobrelevada e com acesso por
quatro degraus, sendo cerrada por teia em ferro forjado; tem, do lado do
Evangelho, capela de arco pleno, moldurado, sobre pilastras dóricas, albergando
retábulo de talha dourada e branca, e, confrontantes, dois altares em talha
dourada e branca. Retábulo-mor, em talha dourada e branca, albergando,
centralmente, Crucifixo, e inserindo, ê esquerda, porta de acesso ê sacristia.
Pavimentos em lajes de granito, na capela-mor, e soalhado, na nave. Tectos de
perfil curvo, em madeira. Sacristia, com acesso exterior a partir a fachada sul
e da fachada este, com paredes em aparelho de alvenaria irregular de granito,
com as juntas tomadas e caiadas e rebocado e pintado de creme, com pavimento
lajeado e com tecto cimentado e caiado. Consistório, com acesso a partir de
pequeno átrio lajeado, no topo da escadaria, com paredes em aparelho de
alvenaria irregular de granito, com as juntas tomadas e caiadas e rebocado e
pintado de creme, com pavimento em mosaico cerâmico e com tecto cimentado e
caiado.
Informações extraídas de:
ALMEIDA, Carlos Alberto Ferreira
de, Alto Minho, Lisboa, 1987, p. 179; BARROCA, Mário, Necrópoles e sepulturas
medievais de Entre Douro e Minho, Porto, 1987, p. 360 - 361, ROCHA, J. Marques,
Melgaço de ontem e de hoje, Braga, 1993, p. 229; BARROCA, Mário, Epigrafia
Medieval Portuguesa, vol. II ( tomo 2 ), Porto, 1995, p. 1648 - 1649; SERRÃO,
Vitor, Sobre a Iconografia da Mater Omnium: a pintura de intuitos assistenciais
nas Misericórdias durante o século XVI, in OCEANUS, nº 35, Julho / Setembro,
Lisboa, 1998, pgs. 134 - 144; idem, André de Padilha e a Pintura Quinhentista
entre o Minho e a Galiza, Lisboa, 1998; CERDEIRA, Amélia Esteves, Santa Casa da
Misericórdia de Melgaço: Cinco Séculos ao Serviço das carências de um povo, in
I Congresso das Misericórdias do Alto Minho, Viana do Castelo, 2001, p. 270 -
282; FONTE, Teodoro Afonso da, As Misericórdias do Alto Minho - perspectiva
Histórica e actualidade, in I Congresso das Misericórdias do Alto Minho, Viana
do Castelo, 2001, p. 96 - 117; ALMEIDA, Carlos A. Brochado, O sistema defensivo
da vila de Melgaço, dos castelos da reconquista ao sistema abaluartado,
Melgaço, 2003; ESTEVES, Augusto César, Obras Completas, vol. 1, tomo 1,
Melgaço, 2003; DOMINGUES, José, Padroado Medieval Melgacence (Santa Maria da
Porta, Santa Maria do Campo e São Fagundo), in Boletim Cultural de Melgaço,
s.l., 2004, pp. 63-114.
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