sábado, 14 de dezembro de 2019

Notas de uma viagem a Melgaço em 1946




Nos anos 40 do século passado, os tempos eram de muitas dificuldades em Melgaço e na generalidade do nosso país. Em 1946, a nossa terra recebe uma visita muito especial, o Padre Américo, fundador da Casa do Gaiato e da Obra da Rua, uma das obras sociais mais meritórias alguma vez criadas no nosso país, dedicada às crianças. O Padre Américo conta-nos alguns pormenores dessa sua viagem à nossa terra num artigo na publicação “O Gaiato”, revista da sua obra social com o título De como eu fui a Melgaço: “Fui sim senhor. Um sacerdote dali, pediu-me que fosse à vila dizer da Obra da Rua e eu não me fiz rogado. Foi num domingo. Cheguei às catorze e quê e logo me dirigi à igreja dum convento que fora de frades franciscanos.
Como os conventos arruinados não falam à alma da gente!
Se ao menos houvesse uma força que os destruísse como a houve para os arruinar, eles hoje não se queixariam, nem nós os chorávamos. Não existiam e acabou-se. Mas não. Eles estão.
O povo da vila e aldeias esperava. Crianças pediram, no fim. Com o ser moedas pequeninas, a soma foi tida por considerável, para os costumes da terra. Notava-se um mar de garotos na assistência.
Farrapões autênticos. Rapazes abandonados.
Que será isto, dizia eu com os meus botões?!
Uma vila tão pequenina, e tantos filhos sem pai - que será?! Entrado que fora na casa aonde me quiseram instalar, e que bem, começa a vir uma bicha de Mães em cata do tal padre que recebe meninos. Era eu. Passou palavra, e aquelas Mães facilmente acreditavam, que essa era a minha missão. “Leve-me este”! Eram chusmas. Rapazes fortes, sadios, muito sujos, todos repelentes.
As mães da mesma sorte. Nunca tal vira!
No dia seguinte, o. Senhor aonde pernoitei, quis que eu fosse até S. Gregório, ver onde é que Portugal começa. Fomos. O amigo Pires também foi. O Pires é o mecânico da terra, chamado para tudo, por todos, desde Melgaço até Monção.
E' um homem de rara habilidade, sempre pronto a servir. O nosso jornal tem nele um amigo. Não assina, mas lê um que lhe emprestam e faz comícios!
O Pires guiava. Em 10 minutos chegamos.
Lá estava a ponte, guarda de cá guarda de lá, a dizer que portugueses e espanhóis não são tão irmãos, como praí se afirma. Pires apontou uma casa lá no fundo, mesmo à beirinha do Minho:
-Sabe de que é feita aquela casa?
-Sei sim senhor. É de pedra e cal.
-Não é não senhor.
- ?!
É feita de sabão e de bacalhau!
E o meu amigo, conta de como o dono dela, pedreiro que era, passou a senhor. Como aquele, muitos outros por ali. Contou-me coisas negras do comércio negro, e foi então que eu dei no vinte. Compreendi num instante a presença de inúmeras crianças abandonadas na vila de Melgaço.
Abandonadas da família que é justamente o pior dos abandonos. É o sangue a repelir o sangue.
Já cá se sabia há muitos séculos que a ambição dos homens gera necessariamente a miséria.
Já se sabia, mas ele é bom que o povo dê estas lições ao mundo,· para bem dos que não acreditam na lição do Evangelho. Para que esses vejam e acreditem e se convertam à Pobreza.
O Evangelho também é pregado na vila de Melgaço, à moda dos seus habitantes. Ouvi eu.
As mulheres diziam assim: Padre, porque esta nossa gente se ocupa no comércio negro, é que nós lhe trazemos estes filhos assim, sem pai!
Comércio negro! Casas feitas de bacalhau e de sabão! Quantas delas, sepultura dos seus donos.
Como gosto eu do qualificativo negro! É o mesmo que se atribui à cor da fome, à cor da morte!
Desgraças de mãos dadas!"



Extraído de:
- Revista "O Gaiato", edição de 28 de Dezembro de 1946.

1 comentário:

  1. Ler estas histórias, compreende-se melhor os atrasos de Portugal!

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