sábado, 13 de fevereiro de 2021

Os Farrangalheiros: as figuras do Entroido em Castro Laboreiro






 

A aposta num evento associado às celebrações do Entrudo, surge em Melgaço em 2018, com os principais propósitos de promover as nossas manifestações culturais relacionadas com esta data e, pelas similaridades socioculturais com a Galiza, promover um evento de cariz fronteiriço, convergindo em ambos os objetivos para a valorização e promoção da nossa identidade cultural. Neste contexto, a tradição mais relevante do nosso concelho, seria, desde logo, aquela que é associada às celebrações carnavalescas da freguesia de Castro Laboreiro e com a identidade, muito singular, associada à figura dos Farrangalheiros. Os procedimentos para reconhecimento dos Farrangalheiros de Castro Laboreiro tiveram, então, início em janeiro de 2020, no âmbito da III Edição do Entrudo. Com a colaboração da escritora, etnógrafa e fotógrafa Mercedes Saavedra, recolheu-se informação e fotos que vieram a integrar a exposição Viaxe polo Mundo da Máscara, da autoria da mesma, e que esteve patente na Casa da Cultura de Melgaço em Fevereiro do mesmo ano. No dia 6 procedeu-se à inauguração da referida exposição que contou, já, com a presença dos Farrangalheiros de Castro Laboreiro.





Após este primeiro ato público, e mostra à comunidade, procedeu-se à elaboração de garruços com vista à participação no cortejo do Entrudo de Melgaço, com a promoção de Workshops/ateliers realizados na biblioteca de Castro Laboreiro.



Estas ações culminaram com a participação de um grupo de Farrangalheiros no Entrudo de Melgaço, tornando-se o principal momento de divulgação e vontade de recuperar esta tradição.

Refira-se, ainda, que a participação deste grupo no cortejo deste evento culminou com a Queima do Santo Entruido, tradição também associada às manifestações e celebrações dos Entrudos em Castro Laboreiro.










Após estas iniciativas surgiram imensas ideias para se desenvolver, reconhecer e revitalizar esta nossa tradição: entrevistas a castrejos, workshops com crianças e adultos, reuniões com outras organizações de entrudo da raia, inquéritos para os alunos do Agrupamento de Escolas trabalharem com os mais idosos, … Entretanto, a pandemia bateu-nos à porta e todas estas iniciativas tiveram que ser canceladas/adiadas e /ou reestruturadas.

Uma vez que o processo de investigação não identificou documentação histórica que fundamentasse esta tradição, recorremos à tradição oral, falando com as pessoas mais idosas.

Solicitou-se a colaboração do Prof. Albertino Gonçalves, como sociólogo, do Prof. Valter Alves, como historiador, e do Dr. Daniel Maciel, como Etnógrafo, para ajuda na compreensão de alguns elementos de forma a ser elaborado um testemunho sobre os Farrangalheiros de Castro Laboreiro.

Iniciou-se, em simultâneo, todo um processo de entrevistas, filmadas e transcritas em atas, pelos colaboradores afetos à Biblioteca Municipal; promoveram-se reuniões com representantes do entrudo da raia, contudo, a situação pandêmica, atrasou todas estas iniciativas.

Toda a informação que se conseguiu recolher está resumida no seguinte texto:

É nosso objetivo a dinamização cultural de uma região do interior peninsular e evidenciar um elemento cultural único, os Farrangalheiros de Castro Laboreiro.

No topo norte de Portugal, lá no cimo da Serra da Peneda, há um território que a natureza reclama para si e que o homem insiste em habitar. Comunidade matriarcal – os homens emigraram à procura de melhores condições de vida - Castro Laboreiro é terra de gente forte, que se adaptou à paisagem e onde o isolamento só recentemente quebrado preservou uma cultura muito própria.

Conhecida por ser uma terra agreste o que obrigava à transumância - sistema, denominado por brandas e inverneiras, segundo o qual os habitantes de determinado lugar, mudam para um outro mediante as estações do ano procurando melhores condições agro-pecruárias e conforto - Castro Laboreiro é um espaço cultural rico em histórias e tradições que contam vivências de outrora, que ainda hoje insistem em se renovar, dando a conhecer rituais simbólicos cujas origens foram perdidas no tempo. Incluem rituais milenares, passados de geração em geração, que unem o passado e o presente de forma singular e contribuem para o conhecimento de uma região que ultrapassa as limitações geográficas. Constituem, inequivocamente, um importante e forte traço diferenciador de uma identidade própria, única, representando, assim, um valioso património cultural que se circunscreve em âmbitos territoriais supranacionais. O Entrudo é uma manifestação cultural, transmitida ao longo dos tempos de forma oral, convertendo-se em costumes, tradições e estilos de vida específicos desta região transfronteiriça.

O Entroido em Castro Laboreiro é peculiar pelo traje utilizado e pela sua tradição.

A palavra "Carnaval" não faz parte da tradição castreja mas antes o termo "Entroido", como o galego, termo idêntico a "Entrudo", usado em muitas terras do norte de Portugal.

O entroido castrejo seria um evento onde, na maior parte dos anos, a presença masculina se restringia a idosos e crianças. Sendo uma data móvel no calendário, o entroido ocorreria, na maior parte dos anos, antes do regresso dos homens da migração sazonal que os castrejos faziam para outras regiões de Portugal e norte de Espanha. Possivelmente a festa sofreu influências galegas e transmontanas, locais onde os homens trabalharam durante séculos. Isto, claro, antes das grandes vagas migratórias para a América do Sul e Europa... Durante o período em que os maridos emigravam as castrejas eram conhecidas como viúvas de vivos, sendo a sua indumentária constituída por roupa preta e rígida.

Leite de Vasconcelos em 1904 faz uma descrição do traje tradicional castrejo: "Tive por conseguinte ensejo de observar muitos homens juntos: apresentavam-se geralmente de cara rapada, vestiam de çaragoça (jaqueta, calças e collete), traziam chapeu de panno ou carapuça, e varapau. Mlheres, por ser de gado a feira, não andavam lá muitas. O trajo ordinario d’ellas é: camisa; faxa vermelha; collete; jaqueta; saia branca; saiote; saia de côr, quasi sempre preta, feita de foloado ‘’pano de lã de ovelha ou de linho’’, que se fabrica em Castro; mandil; singuidalho, do mesmo ou de outro panno; na cabeça capella, que póde ser substituida por lenço; nas pernas calçons e piucas, meias sem pé, que se prendem com uma liga ou baraça; e nos pés chancas."

No entrudo esta austeridade era abandonada e os farrangalheiros vestiam cores mais garridas e vistosas trocando a saia preta pelo saiote vermelho – peça de roupa interior.

O Entroido de Castro Laboreiro num passado não muito longínquo foi uma das festas mais participativas da freguesia com bailes e mascarados em muitos lugares. Por vezes as danças decorriam na Eira do lugar. Cozido à portuguesa e doces tradicionais (entre eles as tostas) com fartura. Tiros, bombas e até foguetes anunciavam a festa.

A figura do Entroido crastejo é o Farrangalheiro. Nesses dias, os farrangalheiros percorriam os bailes, andavam nos caminhos e pelas casas. Metiam-se com todos desde os mais jovens aos mais velhos.

Mas o que significa a palavra "farrangalheiro"? No livro O pegureiro e o lobo, estorias de castro laboreiro, de Manuel Domingues, 2005, no final do mesmo, encontramos um glossário de palavras da tradição oral castreja associadas à correspondência no português comum. O termo "farrangalheiro" aparece como sinónimo de farrapeiro.

Os Farrangalheiros eram mulheres solteiras que saíam à rua trajadas a rigor com o tradicional saiote castrejo tipicamente vermelho bordado e/ou decorado com cores garridas, as blusas, o lenço. Na mão podiam levar um pau, um animal ou outro elemento provocador. Os homens também participavam no entrudo mas vestidos de farrapeiros. Em Castro Laboreiro o saiote vermelho é roupa interior – que no dia-a-dia era coberto pela saia preta. Nesses dias não usavam a saia preta deixando à mostra a roupa interior. A vestimenta era igual para todas as mulheres menos o lenço franjon (assim conhecido em Castro) que podia ser de várias cores e que só era usado no entrudo.

O objeto mais emblemático e diferenciador do Entrudo Castrejo é constituído pelos “GARRUÇOS”, que são chapéus de cartão em forma de cone decorados com fitas e enfeites garridos que agregam uma renda que encobre o rosto dos FARRANGALHEIROS.

Em relação aos trajes e à multiplicidade de cores, tudo se resume a uma caraterística que é transversal a muitos rituais de Carnaval de diferentes regiões: a exuberância.

Nota-se uma exuberância nas cores e na combinação de artigos de vestuário que contrasta com a austeridade caraterística do tradicional traje castrejo, mesmo em relação ao traje de domingo. Este, apesar de se apresentar com cores mais claras, denota ainda assim um predomínio das cores discretas e menos vistosas.

Na segunda metade do século XX, em alguns lugares, ainda era queimado o Entroido. Acontecia no último dia, terça-feira, o boneco de palha e roupas velhas construído era queimado em local alto para ser visto pelos lugares vizinhos. Todos queriam ter o melhor entroido.

A presença do fogo no ritual do Carnaval castrejo (a queima do entrudo) pode remontar a tradições celtas. Deixo um extrato de um artigo do professor Rodrigues Lima que parece bastante pertinente para nos ajudar a compreender a queima do Entroido: "O grande investigador e filósofo das religiões J. Frazer, na sua notável obra “ RAMA DOURADA”, dedica um capítulo aos festivais ígneos. Afirma que em quase toda a Europa “a crença que o fogo promove o crescimento dos meses, o bem-estar dos homens e dos animais, quer estimulando-os positivamente quer evitando os perigos e as calamidades”. Refere que os celtas tinham festivais ígneos, queimando imagens cobertas de ervas, no meio das quais os druidas encerravam vítimas.

Aliás, é de acrescentar que inúmeros ritos de purificação pelo fogo, geralmente ritos de passagem, são característicos das comunidades agrárias, e simbolizam os incêndios dos campos que se adornam, depois, com um manto verde da natureza viva, de acordo com J. Chevalier.

O fogo é, acima de tudo, o motor de regeneração e simboliza a ação fecundante.

É crença popular que o fogo e o fumo têm a virtude de purificar os campos e os animais, e livrar os homens da influência dos maus espíritos.

O Traje dos Farrangalheiros de Castro Laboreiro é constituído por:

Garruço – fitas coloridas (antes as fitas eram trabalhadas, mas com o passar do tempo tornaram-se mais simples, porque eram muito trabalhosas – e renda para tapar a cara:

Garruço


Calçons



Soques com ferradura – substituídos agora por botas pretas e austeras


Algibeira – existe em mais cores


Saia branca ilustrativa

Camisa branca bordada (ilustrativa)
Colete com ilhoses por dentro ou fora da camisa






Lenço franjón - Lenço de franjas coloridos e/ou às flores atado atrás (ilustrativo)
– só saía no entrudo



Lenço chines – lenço das festas (exemplificativo – existem mais modelos)


Saiote vermelho de lã


Outro pormenor que tivemos conhecimento, na aldeia de Curveira, é que lá os homens que acompanhavam os Farrangalheiros – que só eram 2 - também usavam um garruço específico com duas pontas, baixo e com fitas nas pontas.

Ainda não conseguimos nenhum modelo nem mais informações sobre esse “garruço masculino”.

Como não se encontrou nenhum documento que fundamentasse esta tradição temos que encontrar a origem do carnaval castrejo dentro da estreita convivência fronteiriça com os povos raianos da Galiza, numa primeira fase.


Texto de M. Margarida Codesso.




Bibliografia:

DOMINGUES, Manuel (2015) - O pegureiro e o lobo, estórias de Castro Laboreiro

CHEVALIER, Jean & GHEERBRANT, Alain (1994) - Dicionário dos Símbolos. Editorial Teorema.

FRAZER, James (1982) - O Ramo de Ouro, versão ilustrada. Zahar Editores.

VASCONCELOS, J. Leite de (1916) - Uma Excursão a Castro Laboreiro: notas numa carteira. Tipografia Sequeira, Porto.

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