domingo, 9 de julho de 2023

Onde ficava o Campo da Feira de Fora, na vila de Melgaço?


A imagem mostra-nos uma planta da vila de Melgaço em 1859. Ao contrário de outras plantas do século XVIII ou anteriores, por esta altura, a vila já cresceu para fora das muralhas do forte, em especial junto à muralha sul. Marcamos a traço amarelo o traçado da rua Velha, ao longo da qual a vila melgacense foi crescendo desde meados do século XVIII e ao longo do século XIX.
Conforme referimos na secção anterior, os topónimos “Campo da Feira de Dentro” e “Campo da Feira de Fora”, começaram a ser utilizados após a construção do chamado “Forte da Vila”, que envolvia os atuais terrenos da Praça da República num perímetro amuralhado, tendo sido construído em meados do século XVII. Mas onde ficaria localizado o tal “Campo da Feira de Fora”, na vila de Melgaço?

Temos que ter em conta que em tempos antigos, os reis produziram leis que proibiram a construção de habitações junto às muralhas, quer da parte de dentro, quer da parte de fora. Isto tinha como objetivo dificultar qualquer tentativa de assalto às muralhas bem sucedida. Contudo, depois da construção do Forte e do fim da Guerra da Restauração, começaram a aparecer construções onde hoje se localiza a Rua Velha. Esta rua corresponde ao traçada de um antigo caminho que vinha do Rio do Porto e contornava a muralha sul do forte e seguia em direção a nascente, até à Rua da Calçada. Ora essa área a sul da muralha do forte, outrora, era essencialmente composta por campos agrícolas, não sendo habitada, aparentemente, até ao último terço do século XVII. Entre esta altura e meados do século XIX, esta área vai sendo cada vez mais urbanizada, sobretudo ao longo da atual Rua Afonso Costa e da Rua Velha. Assim, os terrenos que eram designados como o Campo da Feira de Fora correspondem à área envolvente ao traçado da Rua Velha (assinalada a traço amarelo na planta), a sul da muralha do antigo forte, por estar numa posição externa em relação ao perímetro amuralhado. 

No século XVI, o desenho de Duarte d’Armas (1509) mostra os terrenos do Campo da Feira sem qualquer tipo de edificações. As primeiras edificações nestes terrenos aparecem apenas, muito provavelmente, no último terço do século XVII e a ocupação urbana vai crescendo até se tornar contínua, tal como verificamos em plantas de meados do século XIX. 

Por estas terras, existiu em tempo antigos, a Casa e Quinta do Campo da Feira de Fora, ligadas a um morgadio associado à família dos Araújos do Campo da Feira de Fora. A fundação deste morgadio remete-nos para a origem galega desta família, mais concretamente para o pároco de Santa Maria de Leirado em meados do século XVII, o Reverendo P. Dr. Lourenço Pereira de Araújo. Um dos sobrinhos deste sacerdote, um tal João Lopes Ribas de Araújo, veio estabelecer-se em Melgaço, algures na segunda metade do século XVII, tendo casado com uma tal Sabina da Ribeira, residente na vila de Melgaço. Aquele faleceu em Paços no ano de 1691. Uma das filhas que tiveram foi D. Isabel Gonçalves de Araújo, que morou no Campo da Feira com o seu marido Domingos Roiz de Araújo, que no serviço da militança exerceu o cargo de escrivão dos armazéns e mantimentos da praça de Melgaço desde l de Janeiro de 1665 até 1 de Julho de 1705. Foi um dos seus filhos, o Padre Bernardo de Araújo, que fundou, com todos os seus bens próprios, o morgadio da Quinta do Campo da Feira de Fora chamando para seu primeiro administrador João de Araújo Azevedo, da Quinta de Carvalho do Lobo, então tenente de infantaria do Regimento da Corte e cavaleiro professo na Ordem de Cristo. O dito morgadio terá sido instituído em início do século XVIII. Sabemos, por uma escritura lavrada em 25 de Janeiro de 1705, que o Padre Bernardo de Araújo era já “...morador na sua quinta do Campo da feira de fora desta villa”, conforme se cita nesse dito documento. 

Desconhecemos o paradeiro do documento de instituição do vínculo mas para que o ilustre leitor tenha uma ideia dos bens que se encontravam vinculados, apresentamos a transcrição de um documento de uma provisão datada do ano de 1768: “Dom Joze por graça de Deos Rey de Portugal etc. Faço saber que o Capitão João de Araújo Azevedo da vila de Melgaço me reprezentou por uma petiçam que seu tio o Padre Bernardo de Araújo instituhira por seu falecimento todos os seus bens e Morgado chamando para por admenistrador delle ao suplicante e como entre os mesmos bens havia alguns Prazos os nomeara no mesmo suplicante com condição de que vincularia ao dito Morgado o preço e estimação delles entre os quais hera hum campo sito no lugar de Cobilós freguesia de Rouças termo da ditta villa Prazo foreiro ao Mosteiro de Santa Maria de Fianz e porque pegado aos bens do referido Morgado vendia Manuel António de Abendanho Sotto Maior outro campo livre dizimo a Deos muito melhor com o qual queria sobrogar o preço do dito seu campo e Prazo pello do dito Manoel Antonio com o qual ficava o Morgado muito melhorado visto mandar o dito estituhidor empregar o producto dos prazos em bens livres para milhor sigurança do Morgado Pedindome lhe fizece merce mandar fazer Provisão para vender o sobredito campo e Prazo e sobrogar o preço delle pelo outro campo do dito Manoel Antonio ficando vinculado ao Morgado e visto seu requerimento, informação que sobre elle se houve pelo Provedor da Comarca de Vianna houvido o immediato suceçor por seu curador que não teve duvida e constar que o prazo o campo do Morgado vale 90$000 reis de seu principal e outro campo he livre e se da em troca vale 140$000 reis, Hey por bem fazer mercê do supplicante de que possa sobrogar o Prazo e Campo de que trata ou o preço delle se o vender sem Embargo de ser de Morgado e das clauzulas de sua instituição por outro campo livre do referido Manoel Antonio ficando o deste vinculado ao mesmo Morgado e livre e izento delle o mencionado Prazo e campo cumprindoce esta Provizão como nella se contem que foi lavrada na forma da ley de 24 de Julho de 1713 e valerá posto que seu efeito haya de durar mais de hum anno sem embargo da ordenação Livro 2.° titulo 40 em contrario a trasladar na escriptura que se fizer desta subrogação e no tombo e instituição do dito Morgado para a todo o tempo constar que eu asim o houve por bem e pagou de novos direitos 900 reis que se carregarão ao Thezoureiro delles no livro 21 do registo geral a folhas 100. El Rey Nosso o mandou pollos menistros abaixo asignados do seu concelho e seus dezembargadores do Povo João da Costa de Souza a fez.  

Em Lisboa a 31 de Agosto de 1768 de feitio deste 800 reis de asignar 960 reis. Francisco Joze da Costa Soto-Mayor a fez escrever Joze Rial de Pereira e Castro Pedro Viegas de Novais por despacho do Dezembargador do Paço de 22 de Agosto de 1768.  

Pedro Gonçalves Cordeiro Pedreira — pagou 400 reis e aos offeciaes 1010 reis Lisboa 3 de Setembro de 1768 

Dom Sebastiam Maldonado copiado Cosme Joze de Oliveira  

(Da Chancelaria de D. José — L.° 52 fl. 287) 

Por este documento, ficamos com uma ideia do conjunto de bens que detinha o primeiro morgado do Campo da Feira de Fora, o Padre Bernardo de Araújo, e que se espalhavam por outras freguesias. 

António Jacinto de Araújo Azevedo foi o segundo administrador do morgado do Campo da Feira de Fora, tendo sido casado com Jerónima Luísa Gomes de Araújo. Aquele era filho de João de Araújo Azevedo e D. Guiomar Gomes de Abreu, da Quinta do Carvalho do Lobo. Segundo ESTEVES, (1989), “como cidadão e como político, como patriota e como militar se há-de falar aqui deste distinto melgacense. Sendo alguém pelo seu nascimento, seus pares o ergueram à altura da gente da governança e foi então vereador mais velho e juiz pela ordenação. Depois funcionou por algum tempo como almotacé e qualquer destes cargos eleva muito acima da vulgaridade de quem os serve. De resto durante a vida outros cargos honoríficos desempenhou…” 

O terceiro e último administrador do morgadio do Campo da Feira de Fora foi António Caetano de Araújo Azevedo que nasceu na Casa de Soengas (Chaviães) em 15 de Junho de 1798. Contudo, a lei de 19 de Maio de 1863 extinguiu os morgadios e assim cessou nesta data o cargo de administração do dito vínculo. 

Tal como se refere atrás, o crescimento urbano da vila de Melgaço no setor ao longo da Rua Velha, dá-se sobretudo ao longo dos séculos XVIII e XIX. Segundo a planta da vila de Melgaço de 1859, atrás mostrada, todo o traçado desta rua já se encontrava urbanizado. O traçado da atual Rua Afonso Costa ainda não se encontrava urbanizado, à exceção da parte mais a norte, próxima da antiga porta do forte.  Os dados dos batismos e óbitos mostram-nos que já no primeiro terço do século XIX, o número de habitantes neste setor da vila devia já ser significativo. 



Saiba também o caro leitor que o cruzeiro que hoje podemos contemplar junto à capela de S. Julião, nos arredores da vila de Melgaço, não se encontra na sua localização de origem nem tem qualquer relação com a dita capela. O citado cruzeiro tem cerca de 500 anos de antiguidade e esteve durante cerca de dois séculos nas Carvalhiças, no chamado Côto da Pedreira, a sua localização de origem, de onde foi removido para o Campo da Feira de Fora para que lá se construísse a capela de Nossa Senhora da Pastoriza no início do século XVIII. De facto, segundo ESTEVES (2003), em 1779, o cruzeiro “...estava erguido no Campo da Feira de Fora, junto de uma morada de casas, cuja escadaria exterior dificultava a passagem das procissões à sua volta. Depois foi mudado para o Campo da Feira de Dentro e ficou mais ou menos no centro do largo. Daqui o transferiu a junta de paróquia em 1867 para o adro da capela de São Julião, onde ainda hoje se conserva exposto à veneração de todos os fiéis.” 

O topónimo “Campo da Feira de Fora” entrou em desuso no último terço do século XIX e, na atualidade, persiste a Rua Velha como topónimo herdeiro. 


Sem comentários:

Enviar um comentário