O episódio da Inês Negra
Sabendo
que os dois chefes não se tinham acordado resolveu então provocar um combate
singular, pois sabia que entre a gente do arraial se achava um contendor digno
dela. Era uma mulher daquela região, a quem chamavam Inez Negra. Negra por
apelido de família ? Talvez.
David
Negro se chamava o rabi de Castela que urdiu o enredo contra D. Leonor Teles. E
Afonso Pires—o Negro —era o escudeiro de Nun'Alvares na véspera de Valverde. Famílias
com o nome de Negrão e Negreiros tem havido em Portugal, pertencendo à
primeira, no século XVIII, o poeta da Arcádia — Almeno Sincero. Ou, seria antes
a nossa Inês, negra, porque a sua pele exageradamente trigueira, como a da Sulamite
do Cântico dos cânticos, contrastasse com a das suas conterrâneas, quási todas
alvas, de olhos claros cabelos aloirados, revelando a origem celta das nobres raças?
A
iconografia portuguesa é assas pobre. E, se nos faltam retratos de tanta figura
predominante, não é maravilha que a galeria das mulheres ilustres careça de
qualquer documentação acerca das feições da modesta, mas valente portuguesa dos
arredores de Melgaço. Figuramo-la, porém, por artifício de imaginação, com
encrespado cabelo da côr do seu apelido. De olhos igneos como o seu nome de
Inês, a pele acastanhada, adusta e curtida pelo mordente
sol
dos campos, na ceifa. Magra, musculosa e com farto buço a atapetar-lhe o lábio
superior. Peito chato como a das amazonas. Tipo levemente aciganado e plebeu,
mas não destituído de encanto. E no seu todo o interêssse que provoca
sempre
uma personalidade fortemente acentuada. Visitando a casa onde segundo a
tradição ela habitou depois da sua proesa, —a Venda de Angelina—(hoje
um prédio modernizado), ou percorrendo as ruazinhas estreitas que descem até à porta
de D. Afonso, encontrámos algumas moradoras ao soalheiro, que, por comparação
retrospectiva, nos ajudaram a recompor uma efígie da Inês Negra, porventura sua
remota parente. Devia ser assim como a evocámos!
Quando
lhe chegou aos ouvidos o desafio da Arrenegada aceitou o repto. Entretanto El-Rei
enviara à Rainha recado para que viesse. Os engenhos estavam concluídos, e quási
aplanado o caminho pelo qual se de via fazer rodar a bastida e encostá-la às muralhas.
É possível que o mensageiro anunciasse também no Mosteiro de Fiais, onde D. Filipa
se achava, o desafio entre as duas mulheres de Melgaço. E isso seria certamente
escutado com curiosa atenção pelo mundo feminino que rodeava a Rainha. Ávidas deviam
estar por certo as suas Damas e cuvilheiras, de distrações e recreios, tão escassos
naquela solidão. E logo entre o mulherio quantos comentários sobre o projectado
duelo! Nas velhas, altos escarcéus, e motivo para ralharem de tão descomposta escaramuça.
Nas novas, grande jubilação com a espectativa de comoções. Por isso quando naquela
manhã do princípio de Março a Rainha, com a sua Corte, se aprontou para descer de
Fiães a Melgaço, eram agitadas as discussões acerca do projectado combate. A primavera
anunciava-se prometedora. O ar gelado da manhã bafejava a pele do rosto das senhoras,
que, ao montarem, se embuçavam friorentas nos seus mantéus e biocos. Na descida,
quási a pique, da íngreme ladeira, que durante uma hora percorreram, caminhando
pelos carreiros do monte escalvado, algumas das boas donas iam só atentas ao perigo,
que oferecia o marchar hesitante dos cavalos sobre os pedregulhos das veredas agrestes.
E quando as facas em que iam montadas punham o pé com menos segurança, o que trazia
a iminência de um tropeção, ouviam-se exclamações aflitas das mais timoratas, provocando
risadas escarninhas entre as resolutas .Outras olhavam maravilhadas a paisagem deslumbrante,
o panorama das extensas ondulações que formam o berço delicioso em que se espreguiça
voluptuosamente o rio Minho.
Além
à esquerda os montes de Pernidclo, em cuja verdura se aninhava o conventinho de
Paderne. Mais ao largo Monsão, a terra de Deu-la-Deu. E, como a manhã era clara,
lá muito ao longe, quási se distinguia a nobre Valença. Para a direita inferiormente,
e já em terra estranha, as pequenas povoações galegas tão maneirinhas... que apetecia
dá-las como brinquedo a uma criança!
A maior
parte, porém, da comitiva só tinha olhos para a vila de Melgaço, ali em baixo com
a sua airosa torre quadrada, que uma coroa de ameias enfeitava, e para a povoação
em redor dela, metida nas faixas das muralhas defensoras, prometendo um espectáculo
atraente, quando se rendesse à força, como fêmea dominada pelo seu legítimo
senhor. Por de fora dessa muralha estendia-se em arruamentos de tendas de campanha
o arraial português, sobresaindo a barraca elegante tomada em Aljubarrota aos
Castelhanos, que já servira em Ponte de Mouro para firmar a aliança inglesa.
E, informe,
como um animal antediluviano, destacava-se a medonha bastida, pronta a atacar. A
comitiva da Rainha continuava a sua marcha descente. O caminho agora começava a
estreitar-se entre muros e sebes avivadas de silvados e plantas agrestes, e tão
apertado que mal cabiam a dois de fundo todos os do acampamento, sendo difícil a
passagem quando de frente encontravam um boizinho barrosão de hastes enormes, ou
as recuas de mulas que levavam provisões ao convento. Esse corredor
serpenteante (quási escadaria) de mais de meia légua, desembocava abruptamente em
pleno acampamento Neste, o Rei que logo veiu receber a Rainha, começou explicando
o modo de arremeter, e como se realizaria a escaramuça entre as duas mulheres. Na
Corte dos Valois perto de três séculos depois, em plena Renascença, os combates
singulares, antigo julgamento de Deus, tornaram-se solenidades quási festivas, que
chegariam ao apogeu de brilho no célebre torneio em que Jarnac, o favorito da Duqueza
d'Etampes, i arretou o pomposo Chataignerie,
defensor de Diana Poitiérs, na liça rutilante de St. Germain, sob os olhares do
Rei, da nobreza, e de todas as sumidades da França.
Aqui,
porém, nesse final do século XIV, e neste canto da Península, as escaramuças,
perante uma Corte mais guerreira, que polida, mais austera que licenciosa, se não
tinham o esplendor das cerimónias teatrais que deslumbram, não eram menos importantes
os seus resultados. Pelo contrário. Na Corte de Henrique II digladeavam-se dois
adversários para liquidarem uma intriga de alcova.
No arraial
de D. João I batiam-se duas mulheres, disputando a honra de dois exércitos, empenhados
em fixar a fronteira do Reino. Nessa manhã do começo de Março em que a Arrenegada
saiu pelo postigo da fortaleza, para vir defrontar-se com a sua competidora
Inês Negra, todos, de um lado e outro, se dispuzeram a presenciar o espectáculo
desta pugna de nova espécie, a que deram foros de combate, e que a crónica regista
com a designação honrosa de escaramuça entre duas mulheres bravas. Bravas no sentido
de valorosas, e bravas na acepção de ferinas. Os de dentro subiam aos
parapeitos das cortinas e bastiões, debruçando-se curiosos. Os do ariaial formavam
círculo em volta das lutadoras, saudando com vozearia carinhosa Inês Negra a portuguesa,
e enchendo de vaias e apupos a desnaturada castelã. As almas também têm sexo, como
os corpos. Assim se aclaram, quando a natureza as troca, tantos casos inexplicáveis,
tantas anomalias flagrantes—homens mulherengos, mulheres viragos.
Nos corpos
destas duas moravam almas de lutadores valentes, herdadas talvez de seus avoengos,
dos que em eras remotas haviam ajudado a expulsar da Península as raças
invasoras. Foi logo impetuoso o primeiro embate das justadoras. Com fúria, com sanha,
com rancor atiraram-se uma à outra sem mais armas do que as unhas,
com que reciprocamente rasgavam as carnes, e os dentes com que se esfacelavam.
Atropelando-se, arrancando os cabelos, afogando-se nos fortes braços nervosos, derrubando-se
alternadamente na luta. Ensanguentadas, esfarrapadas, e rugindo como feras prolongaram
durante minutos a encarniçada peleja. Davam mais a impressão de dois monstruosos
animais enovelados em trapos, cabelos e sangue, que de duas mulheres humanamente
construídas.
O drama
começava a abalar o ânimo ainda dos menos- susceptíveis de sofrer comoções, quando
a Arrenegada, ou porque tivesse menos elasticidade nos másculos que a Inês Negra,
ou porque o espírito dos que renegam crenças e opiniões é sempre menos resistente,
entrou a fraquejar, saindo logo desfalecida. Então Inês, que a suplantara, foi gloriosamente
levada em triunfo e saudada com aclamações, ao som de trombetas e charamelas festivas.
...CONTINUA...
Texto extraído de:
CONDE DA SABUGOSA (1918) - Neves de Antanho. Edição da Livraria Bertrand, Lisboa.