(PARTE 2)
Cena do filme "O Salto" (1968) de Christian de Chalonge
De
seguida, o novo guia, Manolo, de seu nome, convida os viajantes a sentarem-se
junto a um muro ali existente e, retirando um embrulho da mala do veículo,
sugere que se apressem a comer alguma coisa. Sim, alguma coisa! Não era mais do
que um naco de pão, um naco de revilha e uma típica bota de vinho tinto.
No entanto, naquele momento, pareceu-lhes o melhor pão, o melhor chouriço e o
melhor vinho que algum dia teriam ingerido.
Sem
tempo para se acomodar entraram no carro. António conta:
“Eu
levava um fato vestido que minha mãe me tinha comprado para usar em dias
festivos. Deste modo era o que apresentava melhor aparência entre os
companheiros e fui o escolhido para acompanhar o condutor na parte da frente do
carro. Não fui muito afortunado! Como contarei mais à frente, eu não podia
fechar olho como os meus companheiros do banco traseiro. Estes, mal partimos,
já ressonavam!”
A
estrada térrea rendeu alguns quilómetros e algumas horas. A velocidade era
lenta e tornava-se constantemente imprescindível contornar um ou outro buraco
existente. Por vezes, eram alcançados pela própria nuvem de pó que iam
provocando. As frequentes guinadas de Manolo, para evitar buracos ou pedras
soltas, lembram aqueles condutores dos filmes a preto e branco que, mesmo em
rectas, vão baloiçando o volante, de um lado para o outro, fingindo, assim, o
movimento do veículo que, no entanto, se encontra imóvel.
Ao
aproximar-se de uma outra povoação montanhosa, o veículo foi encostando à
berma, até parar junto ao que semelhava ser uma cabana abandonada. Manolo
caminha apressado em direcção à porta do barraco e bate de punho fechado,
seguindo um ritmo controlado que parecia ser um sinal combinado. Eis que a
porta se abre. Surgem quatro homens adultos semelhantes àqueles pedintes que,
antigamente, percorriam as aldeias em busca de um naco de broa e uma malga de
vinho, confiantes na caridade dos lavradores. Desculpem-me este aparte,
todavia, julgo oportuno e interessante citar que, hoje em dia, é raro o
esmolante que aceita algo mais que dinheiro.
Bem,
o certo é que estas personagens não eram pedintes, mas sim mais quatro
portugueses a caminho de França. Pertenciam ao concelho de Arcos de Valdevez.
Juntaram-se ao grupo e prosseguiram viagem entalados no banco traseiro,
aproveitando a pouca luz solar que lhes restava para, como diz António:
“(...) quando caísse a noite parar,
evitando qualquer suspeita viajando fora d’ horas. Na primeira noite parámos à
entrada de uma vila. O carro entrou numa garagem e aí permaneceu escondido.
Nós, portugueses, pernoitámos na cave de uma vivenda, deitados em sacos de
lona. Manolo acomodou-se na parte de cima, junto com os proprietários.”
No entanto, o passador não se esqueceu
dos seus clientes e, pouco tempo depois, desceu à cave, carregando uma
travessa de barro com Jamón e queijo, trinchados em finas fatias,
acompanhados por um bom naco de broa e uma caneca de tinto.
No
dia seguinte partiram antes do nascer do sol. Cruzaram a vila e continuaram
sobre alcatrão. Sempre que se aproximavam de uma zona urbana e se avistava
algum dispositivo policial, Manolo ordenava a António para abrir e levantar o
jornal à altura do vidro dianteiro, de modo a ocultar os passageiros detrás e a
si próprio. Assim explica António:
“Só mais tarde percebi a intenção do
guia. O que eu queria era apreciar as motas dos polícias. Nunca tinha visto
coisa igual. Ainda trago na memória os gritos de Manolo: (...) por Diós levanta
el periódico! Mais tarde, considerando o facto de nunca termos sido autuados,
cheguei a pensar que o truque do jornal não seria mais que um sinal de
identificação, combinado com os carabineiros! (...).”
Atravessaram
toda a parte norte da região de Castilha e Leão, por estradas secundárias, até
alcançarem o País Basco, sem qualquer problema que não fosse o incómodo de viajar
horas seguidas, debaixo de um sol abrasador, oito passageiros num só carro.
Ao
fim da tarde pararam numa aldeia pitoresca muito próxima de Vitória. A partir
deste ponto são informados que a estratégia passa a ser a inicial, seguir a pé
durante a noite e esconder-se durante o dia. Para o efeito foi-lhes apresentado
um novo guia, bem mais jovem que os anteriores. Não teria mais que trinta anos
e apresentava um físico bastante atlético. Chamava-se Nelo.
Nutridos
apenas por umas bocatas de salpicão que Nelo tinha distribuído, logo
abalaram monte acima em direcção à fronteira com França.
Caminharam
algumas horas e, já sob o luar da noite, conseguiram avistar, ao longe, a
silhueta das altas serras dos Pirinéus. Para elas se dirigiam a passos largos.
Pareciam inalcansáveis. O guia avançava como um fugitivo perseguido por sete
guardas. Como diz António: “(...) nem para trás olhava! Parecia fugir
de nós!”
Debilitava-os,
um tanto, a ideia de desperdiçarem tantas energias antes de alcançar um
obstáculo terrivelmente penoso de ultrapassar e, para o qual, todas as energias
seriam poucas.
Acercaram-se à base destes picos já na
alvorada. Exaustos, refugiaram-se num abrigo, feito em ramos de pinheiro,
camuflado entre os arbustos. Pelo acamar das ervas notava-se que já teria sido
utilizado, provavelmente, para o mesmo efeito. De facto, este refúgio,
construído por Nelo, já há alguns meses atrás, servia de ponto estratégico para
descansar e arrecadar forças para trespassar estas montanhas.
Assim
se acomodaram os nossos heróis. Pouco dormiram. Tornava-se difícil adormecer,
suportando o cansaço e a fome. Foram dormitando. Logo que começou a escurecer,
Nelo ordena a partida para aquela que viria a ser uma das piores etapas da
viagem, pois, como conta António:
“As poucas forças que nos restavam
esgotavam-se a cada passo e, para agravar, a uma elevada altitude tornava-se
difícil respirar.”
António
era, então, o mais novo aventureiro, mas entre os portugueses, aquele que mais
ligeiro caminhava. E refere:
“(...) O meu objectivo era não perder de
vista o vulto que me precedia, o guia. À parte de termos que escalar algum que
outro rochedo percorremos muitos troços com vegetação tão cerrada que se
tornava necessário gatinhar através de estreitos carreiros, semelhantes aos utilizados
pelos lobos e javalis. Por vezes, pareciam autênticos labirintos!”
Consciente
da dificuldade dos seus companheiros em seguir o guia sem que, por vezes, se
desviassem do trilho correcto, eis que António tem uma ideia curiosa e eficaz:
“(...) Eu levava calçadas umas meias
brancas, rendadas, que sempre acompanhavam esse fato em dias festivos. Decidi
puxá-las para fora das calças de modo a serem vistas pelo resto do grupo que me
antecedia.”
A
ideia funcionou e, assim, foram domando a serrania. Atingiram o seu cume,
cambaleando sobre pernas que pareciam não ter, ou seja, “(...) já nem as sentíamos!”, lembra António. Para
agravar a situação, eis que começam a surgir umas inquietantes dores de ouvidos
causadas pela alta pressão atmosférica.
Pararam junto a uma pequena nascente para
recarregar energias e logo foram oscilando monte abaixo, como que levados
apenas pelo bamboleio do seu próprio peso, até encararem com um pequeno riacho,
junto ao qual resolvem resfolegar alguns minutos. Pouco ou nada se conversava.
Proferiam algumas exclamações de aflição e de ansiedade. No entanto, já se
encontravam mais perto do alvo do que de casa. Já estavam em França. Era
demasiado tarde para desistir. Restou-lhes ascender um pequeno outeiro para
chegar a um abrigo de ovelhas que se erguia no alto da encosta e se isolava
entre outros montes. Já era dia. Não se avistava todavia, qualquer outro sinal
humano a não ser aquele refúgio feito em pedra tosca e coberto por uma espécie
de colmo. Abriram uma porta de madeira e entraram. O cheiro do seu interior
testemunhava o seu uso frescal.
Nelo
indica o local, no sótão, onde devem permanecer escondidos e ordena para que
jamais saíssem à porta a não ser quando este chegasse e proferisse a seguinte
frase:
“Yo soy Nelo de Ário!”
Solicitou
que lhe entregassem as moradas dos seus aparentados em Paris e saiu de seguida.
No sótão, em madeira ainda sobejavam alguns fardos de feno que logo foram
espalhados, de modo a servirem de base para estender aqueles corpos fatigados
que assim permaneceram até ao amanhecer seguinte, aquando da visita de Nelo.
Este entregou-lhes uma cesta, feita em vime, bem recheada de manjares, um
cântaro para transportarem a água duma nascente ali adjacente. E, alertando-os
para se acatarem em silêncio, partiu novamente.
Só
poderiam sair daquele resguardo durante a noite, e com toda a cautela, para
voltar a atestar o cântaro de água. As necessidades fisiológicas eram feitas no
solo do estábulo.
Ao
fim de três áridos dias, os quatro adultos ausentaram-se com o guia. Novamente
sozinhos, aos figurantes do nosso enredo restava-lhes aguardar a visita de Nelo
que parecia tardar uma infinidade. Era este que lhes trazia mantimentos. Neste
homem, até aqui desconhecido, acalentavam a esperança de um dia os retirar daquele
refúgio e, definitivamente, os encaminhar a Paris. Mas foi necessário aguardar
mais cinco longos e enfadonhos dias para que o passador, ao alvorecer,
os convidasse a descer e seguir os seus passos.
Não hesitaram. Voaram monte abaixo rumo a um
pequeno aldeamento que se escondia junto a um penhasco. Foram conduzidos para
uma humilde casa rural, habitada por lavradores, e levados para um quarto onde
teriam que permanecer, imóveis, mais algum tempo.
Nelo
despede-se e informa que, em breve, os viriam buscar para seguirem em direcção
a Paris.
No
entanto, não foi bem assim que sucedeu. Neste aposento, de pequenas dimensões,
do qual apenas se avistavam campos e montanhas, através de uma pequena janela,
padeceram horas de tormento, lamúria, arrependimento e, até, desespero.
O
cansaço das andanças, as noites mal dormidas, a sede, a fome e o medo
abatiam-se, agora, sobre estas almas angustiadas, entregues a um destino
impreciso e cruel.
Pouca
coragem lhes restava. Contudo, António, rapaz tenro, mas de forte personalidade,
continuava optimista, ou, de resto, isso tentava revelar aos seus companheiros
para os avivar.
Nesta
humilde moradia reinava o silêncio, apenas quebrado, de dia, pela visita do
pacato lavrador, aquando da entrega de guarnição. De noite pelo bocejo do gado
que pernoitava na parte inferior da casa.
Não
lhes faltou comida nem tempo. António conta que:
“(...) o lavrador entregou-nos uma cesta
cheia de nozes e uma jarra com água, frequentemente abastecida (...) passamos o
tempo a partir e a comer nozes!”
Chega
mesmo a afirmar:
“(...) fiquei enjoado de nozes nos 20
anos seguintes!”
E
seguindo o seu discurso:
“(...) tínhamos tanto tempo que, certo
dia, ocorreu-me cortar o cabelo e o dos meus parceiros, pois, nessa altura, já
parecíamos mendigos (...).”
Como
o dialecto do camponês Basco era totalmente desconhecido, António, por gestos,
pediu, ou pelo menos tentou pedir, que lhe facultassem umas tesouras. O
lavrador trouxe-lhes umas tesouras sim, mas, de aparar arbustos. António
recorda este episódio, com certo humor:
“(...)
com aquelas tesouras arrancava mais cabelos do que aqueles que cortava! O certo
é que o nosso aspecto ainda se tornou mais ridículo!”
Os
dias iam-se arrastando no tempo e nenhuma notícia surgia. Chegaram ao desespero
de pensar em esgueirar-se daquele aposento e procurar qualquer tipo de ajuda
ou, até, entregar-se às autoridades.
António,
como líder do grupo, tentava acalmar os ânimos dos amigos e afirmava, sem
qualquer convicção, evidentemente, que o dia estava prestes a chegar. No
entanto, foi numa segunda-feira, de noite, que, em António, ressuscita uma
certa esperança:
“(...) Eu tive um sonho! Nesse sonho via
uma luz projectada ao fundo de um túnel, parecia chamar-me. Sentia-me obrigado
a atingi-la. Semelhava querer retirar-me daquele abismo! O sonho referia-se a
uma quinta-feira e de pouco mais me recordo. O facto é que, para mim,
significou um sinal positivo! Acordei seguro daquilo que teríamos que fazer!
Talvez fosse a última missão, mas teríamos que a cumprir, ou seja, tínhamos que
aguardar até quinta-feira. Não foi fácil convencer os outros, mas fui
conseguindo.”
Terça
e quarta-feira pareceram-lhes os dias mais longos das suas vidas. Nenhum
assunto lhes surgia. Restava-lhes esperar, cada um em seu canto, como que nada
mais pudessem fazer. Pareciam viver suportados por um mero sonho de António. No
entanto, estavam convencidos que esta meta seria vital e decisiva. Se não
tivessem notícias favoráveis, partiriam à procura de auxílio.
Chegou
o dia, quinta-feira e, bem cedo, se aprestaram para partir. António conta como
tudo se passou:
“(...) Sentia-me na obrigação de cumprir
esta promessa, aguardar até cair a noite. Por vezes, parecia-me absurdo!
Inquietava-me o desespero dos companheiros. Naquele pequeno quarto ninguém se
mantinha imóvel, andávamos de um lado para outro, ansiosos e desesperados.”
O
dia ia fugindo, nada de novo se passava e, quando já se comentava procurar
alternativas, eis que alguém se aproxima e bate na porta. Não hesitaram e logo
a abriram. Surge um homem, até aqui estranho, e pergunta:
“Para Paris?”
Após aprovarem o supracitado destino,
supérfluo será descrever o modo como os nossos heróis abandonaram aquela casa:
“(...) nem nos lavámos! Saímos de
seguida. O lavrador tinha-nos facultado uns baldes com água, mas nem para eles
olhámos!”
Lembra
António.
Foram
levados de carro até uma pequena vila. Aí, dirigiram-se para a estação de
comboios, onde os aguardava José Marques, irmão de Aníbal, que já trabalhava em
França há algum tempo. Com este seguiram para Paris.
Chegaram
a Paris no dia 29 de Setembro. No mesmo dia foram albergados pela empresa em
que trabalhava José Marques. O patrão logo se encarregou de emitir os
documentos necessários para regularizar a situação, perante o serviço de
estrangeiros e, em breve, começaram a trabalhar.
Para
concluir esta aventura, resta-me deixá-los com uma frase que algures me soou e
considerei curiosa e bastante explícita:
“(...) Pagámos para ir a pé para França
e voltámos de avião, em primeira classe, sem pagar um tostão!”
Este emigrante é um dos muitos casos em que
as empresas lhes oferecem o bilhete de avião, em primeira classe, para a viagem
de regresso ao seu país, quando completos os anos de serviço para auferir da
reforma.
:::::::::::::::::::::::::::::::::::: FIM
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Para ler a PARTE 1 desta estória, clique em Memórias de uma viagem "a salto" de S. Paio (Melgaço) a França (1956) (PARTE 1)
Texto extraído de:
-
CASTRO, Joaquim de & MARQUES, Abel (2003). Emigração e contrabando.
Melgaço, Centro Desportivo e Cultural de São Paio.
Parabéns pela história extraordinária.
ResponderEliminarParabéns pela história extraordinária.
ResponderEliminarGrandiosa epopeya, para lembrar toda uma vida... mas, ainda bem! Outras muito piores me contou Pe. Anibal de muitos de seus parroquianos que ficaram abandoados, lá na fronteira com França e, lá ter de ir ele, atravesar, Espanha, na sua "carocha" para ter depois de se responsabilizar deles ante as autoridades espanholas para chegarem ao destino!
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