(PARTE 1)
A aventura que aqui se vai relatar decorre no
ano de 1956 e tem como protagonistas três jovens naturais de Cavaleiro Alvo,
freguesia de São Paio, concelho de Melgaço.
Viviam-se então tempos duros num país mergulhado em
dificuldades económicas e sociais, consequência do regime de retenção política
em vigor.
Não vou maçar o leitor com a descrição das envolventes
político-económicas de Portugal, já documentadas neste livro por Joaquim de
Castro, mas apenas tornar visíveis os motivos que levaram milhares de
portugueses a procurar uma vida melhor no estrangeiro.
Neste sentido, considero importante lembrar que, nesta
época e, numa aldeia raiana e agreste como Cavaleiro Alvo, distante dos centros
urbanos, os problemas nacionais se tornam mais perceptíveis e as oportunidades
de trabalho mais escassas.
António Domingues, protagonista desta história, o qual
ousou testemunhar os factos aqui transcritos, conta que:
“Nesses tempos não havia
trabalho e aquele que havia era demasiado duro e cruel tendo em conta aquilo
que se ganhava.”
E, referindo-se aos dois companheiros de viagem, lembra:
“Nós, na altura, quando livres do trabalho do campo,
trabalhávamos como cantoneiros numa estrada da freguesia de Rouças, recebendo
apenas uns miseráveis 14 escudos por dia.”
A mantença provinha fundamentalmente do campo, pouco se
comprava, comia-se aquilo que se colhia da terra e dos animais que se criavam
nos pastos, côrtes e capoeiros. Era comum usar-se certas culturas para moeda de
troca. Maçãs e milho eram carregados às costas e levados, atravessando montes,
para outras freguesias, regressando de seguida com outra cultura ou fruto que a
terra não colhesse. Passava-se fome! Ainda, hoje, não falta quem se lembre da
necessidade de repartir uma sardinha.
Cabe-me, agora, apresentar os três heróis deste drama que
representa o mérito de muitos outros homens, os quais ousaram trespassar
fronteiras, expondo-se a semelhantes ou até piores riscos. Começo por António Domingues, 17 anos, Manuel Hilário
Pinheiro, 17 anos e Aníbal Marques, 19 anos.
Decorria, então, o mês de Setembro de 1956, quando estes
adolescentes decidem partir. Apenas tinham contactado uma senhora, sua vizinha,
para se incumbir de accionar toda uma rede especializada na passagem
clandestina das fronteiras de Espanha e de França. Dessa mulher, já sepultada,
guardo na memória o seu aspecto sinistro e o seu nome, Dona Elvira, parente de
Manuel Hilário Pinheiro.
A 5 de Setembro, são subitamente notificados, por Elvira,
que o dia da sua viagem tinha, finalmente, chegado. O primeiro passo seria
dirigirem-se ao minério de Fiães, ao encontro de uma outra mulher que os ajudaria a passar a
fronteira para Espanha.
A notícia surgiu tão súbita que os três rapazes apenas
tiveram tempo de vestir aquilo que pensavam ser o mais adequado e iniciar a
caminhada através dos montes e penhascos em direcção ao local indicado. E o que
vestiram foi o que levaram. Nem comida nem dinheiro. Assim se entregaram ao
destino, inocentes dos perigos, distâncias e martírios que os esperavam.
Não avisaram os parentes, até porque estes se encontravam
a cumprir promessas na Romaria da Nossa Senhora da Peneda e, como afirma
António Domingues:
“(...) se tivessem conhecimento não nos deixariam partir!
A única esperança que tínhamos era os parentes que já trabalhavam em Paris mas,
nem esses alertámos da nossa partida. Apenas levámos o endereço dum parente que
se encontrava em Paris!”
Ao fim da tarde, chegaram a Fiães. Apelaram aos
lavradores para que lhes indicassem as minas de extracção de minério e logo
foram ao encontro da tal senhora. Aparentava uns 50 anos, mas dela transparecia
aquele ar agreste, firme e seguro de quem é natural destas aldeias montanhosas.
A primeira exclamação desta mulher despertou certa inquietude aos nossos
protagonistas, pois, fixando ironicamente a sua aparência e estatura, soltou as
seguintes palavras por entre um sorriso cínico:
“Onde pensam que vão estes rapazotes?! Vós não tendes
corpo para aguentar a caminhada!”
No entanto, a frase pessimista não os iria deter e bastou
acertarem e consentirem as condições impostas por esta para seguirem rumo à
Espanha.
António lembra como este convénio lhe conferiu certa
afoiteza:
“Nós tínhamos que pagar nove mil escudos cada um, mas só
quando a nossa família de Melgaço recebesse uma carta nossa proveniente de Paris.”
Considero oportuno referir que esta situação lembra um
tanto os actos de confiança entre os contrabandistas, tornando-se curioso o
modo sério como se cumpriam estes acordos, simplesmente baseados na palavra de
quem está a infringir a lei.
Com a pouca luz solar que lhes restava, iniciaram a
caminhada, seguindo os passos ligeiros da mulher. Passaram a fronteira através
do rio Trancoso, algures entre Alcobaça e São Gregório, evitando sempre
qualquer vigilância da Guarda-fiscal.
Caminharam toda a noite. Desceram vales, cruzaram
regatos, subiram colinas, saltaram sebes, atravessaram matagais até que já de
manhã, foram confiados a dois homens galegos, os quais prudente e
imediatamente, logo os encaminharam para um palheiro, ordenando-lhes que aí
permanecessem escondidos em silêncio, até cair a noite.
Aí repousaram durante o dia, consolados somente por uma
ou outra peça de fruta ocasionalmente encontrada no caminho já percorrido.
Pouco dormiram. Nesse abrigo de feno, o calor acumulado do dia anterior ainda
era intenso e tornava-se sufocante descansar.
Retomaram viagem por volta das nove horas da noite. E que
noite mais fatigante! Apenas paravam para beber alguma água proveniente de
riachos ou nascentes. A estafa da noite anterior já lhes pesava nas pernas, a dor
de pés tornava-se agonizante. António chega mesmo a afirmar que:
“(...) os nossos pés já sangravam, mas tínhamos que
aproveitar a escuridão da noite para evitar os Carabineiros que, nesta época,
actuavam severamente perante estas situações! Já conhecíamos alguma que outra
história de parentes nossos, caçados por estes membros da autoridade espanhola,
e os tratos não eram nada aconselháveis!”
Ainda mal se avistavam os primeiros raios de sol, quando
finalmente chegaram a uma aldeia dissolvida pelo esplendor verdejante das altas
montanhas. Apenas se ouvia o tilintar dos chocalhos do gado, o qual ofegante
galgava as encostas à procura de pastagens e um ou outro latejo dos cães
pastores.
Percorreram o lugarejo escoltados pelos olhares curiosos
dos poucos habitantes que com eles se cruzaram, até depararem com um homem que,
encostado a um automóvel, lia um jornal. Após uns minutos de diálogo com os
guias, estes despedem-se dos nossos protagonistas e informam que a viagem
continuaria, a partir daquele momento, sobre rodas. Esta notícia foi acolhida,
evidentemente, com suspiros de alívio e agrado.
PARA LER A PARTE 2 CLIQUE EM Memórias de uma viagem "a salto" de S. Paio (Melgaço) a França (1956) (PARTE 2)
PARA LER A PARTE 2 CLIQUE EM Memórias de uma viagem "a salto" de S. Paio (Melgaço) a França (1956) (PARTE 2)
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Texto extraído de:
- CASTRO, Joaquim de & MARQUES,
Abel (2003). Emigração e contrabando. Melgaço, Centro Desportivo e
Cultural de São Paio.
Esta história é interessantíssima mas......queremos o resto...
ResponderEliminarParabéns.
Olá Octavio. Obrigado pelas suas simpáticas palavras! Já publiquei hoje a parte 2. Coloquei também um link ao fundo deste texto (parte 1) para se poder aceder diretamente à parte 2. Obrigado pelo seu comentário! Valter Alves
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