quarta-feira, 4 de fevereiro de 2015

Viagem a Melgaço e S. Gregório dos anos de 1930, descrita pelo escritor Júlio Dantas (Parte II)

S. Gregório, Cevide, o rio Trancoso e Ponte Barxas


S. Gregório (Cristoval - Melgaço) em 1937

Até pouco antes de São Gregório, os aspectos do vale do Minho não se modificam sensivelmente. O mesmo ritmo lento na ondulação das montanhas a orografia parece reflectir a calma e a doçura do carácter galego, tipicamente celta, os mesmos pinhais hirsutos e verdoengos. Aqui e além, um casal, com a sua varanda envidraçada voltada ao sul, e, acompanhando também a linha do rio, a estrada férrea Orense -Tui, por onde caminhava, quando passámos, um tramway vagaroso e sonolento.
À medida, porém, que vamos avançando, a natureza torna-se mais agreste. O granito aflora, a água jorra de toda a parte. A paisagem adquire uma fisionomia ao mesmo tempo mais expressiva e mais severa. Dez minutos ainda de caminho, e avistamos as primeiras casas de São Gregório, cabrejando na rocha, escoando-se por dois córregos estreitos gorgolejantes de água, íngremes como calejas de velho burgo medieval, que vão dar abaixo, ao rio, conduzindo à ponte internacional de madeira que nos separa da vizinha povoação galega de Puente de Bárzia. É curioso o contraste entre as duas povoações, que testam uma com a outra, de cá e de lá da fronteira. Puente de Bárzia limita-se a um punhado apenas de casebres, de proporções humildes e de nenhum interesse. São Gregório, pelo contrário, é relativamente grande, tem alguns bons edifícios e certo aspecto de prosperidade, expressão de uma actividade comercial que, sobretudo na primeira metade do século passado, parece ter sido considerável. Há nove anos, quando pela primeira vez visitei estas paragens, ainda se encontravam de pé as ruínas de umas casas antigas, com muralhas de fortaleza, refúgio outrora de contrabandistas que, por vezes, se defendiam a tiro. Esta diferença no desenvolvimento das duas povoações fronteiriças é facilmente explicável. O comércio local de São Gregório enriqueceu, noutro tempo, com o que vinha de Espanha, mais do que o de Puente de Bárzia prosperou com o que ia de Portugal.
Há pouco tempo ainda, a estrada de rodagem parava no cimo da povoação. Quem queria descer até ao rio e pisar os últimos palmos de terra portuguesa era obrigado a meter por um quebra-costas de lajedo que estreitava em congosta enfiando até à ponte, entre pocilgas de porcos e jorros de água cachoantes. Não pode afirmar-se que seja propícia a descida, e, muito menos, a subida. Mas a natureza tem, neste rincão minhoto, belezas compensadoras. Muitas vezes me lembrei do grande e saudoso Malhoa, ao transpor alguns recantos viçosos de parreirais em que o sol projectava sombras violetas, e alguns hortejos onde, na polpa das couves galegas, faiscava em gotas a água viva das nascentes. Agora, alcança-se o extremo de São Gregório pela estrada, prolongada há três anos até Espanha, no intuito de estabelecer ligação com a estrada espanhola começada a abrir, nas lombas dos montes galegos vizinhos, por iniciativa de Primo de Rivera. O troço português está pronto. O espanhol parou a pouca distancia da fronteira. Em todo o caso, já pude, de automóvel, atingir o extremo nordeste de Portugal, até ao rio Trancoso, que no verão leva pouca água e que os garotos transpõem de um salto. Parei, durante alguns momentos, nessa «terra última» em que se apoia um dos pilares da nova ponte internacional acabada de construir. De um lado e de outro, as culturas são as mesmas: campos de milho e vinhedos, dispostos em latada, à portuguesa. Ouvia-se, em terras de Espanha, uma voz alegre de mulher cantar em português. Os pardais revoavam, de uma para outra banda, sem respeito pelas determinações da polícia de emigração, e sem pensar que, num simples bater de asas, mudavam de país.
Por instantes, uma borboleta, faiscando ao sol, hesitou entre as duas nacionalidades. E eu, pensando nos destinos dos povos e nas vicissitudes da história, lamentei, não só que a estrada terminasse ali, — mas que terminasse ali Portugal.


Texto extraído da obra:
- DANTAS, Júlio (1936) - Viagens em Espanha. Livraria Bertrand, Lisboa.

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