S. Gregório, Cevide, o rio Trancoso e Ponte Barxas
S. Gregório (Cristoval - Melgaço) em 1937
Até pouco antes de São Gregório,
os aspectos do vale do Minho não se modificam sensivelmente. O mesmo ritmo lento
na ondulação das montanhas a orografia parece reflectir a calma e a doçura do carácter
galego, tipicamente celta, os mesmos pinhais hirsutos e verdoengos. Aqui e além,
um casal, com a sua varanda envidraçada voltada ao sul, e, acompanhando também a
linha do rio, a estrada férrea Orense -Tui, por onde caminhava, quando passámos, um tramway vagaroso e sonolento.
À medida, porém, que vamos
avançando, a natureza torna-se mais agreste. O granito aflora, a água jorra de
toda a parte. A paisagem adquire uma fisionomia ao mesmo tempo mais expressiva e
mais severa. Dez minutos ainda de caminho, e avistamos as primeiras casas de São
Gregório, cabrejando na rocha, escoando-se por dois córregos estreitos gorgolejantes
de água, íngremes como calejas de velho burgo medieval, que vão dar abaixo, ao rio,
conduzindo à ponte internacional de madeira que nos separa da vizinha povoação galega
de Puente de Bárzia. É curioso o contraste entre as duas povoações, que testam uma com a outra, de cá e de lá da fronteira. Puente de Bárzia limita-se
a um punhado apenas de casebres, de proporções humildes e de nenhum interesse. São
Gregório, pelo contrário, é relativamente grande, tem alguns bons edifícios e
certo aspecto de prosperidade, expressão de uma actividade comercial que, sobretudo
na primeira metade do século passado, parece ter sido considerável. Há nove anos,
quando pela primeira vez visitei estas paragens, ainda se encontravam de pé as ruínas
de umas casas antigas, com muralhas de fortaleza, refúgio outrora de contrabandistas
que, por vezes, se defendiam a tiro. Esta diferença no desenvolvimento das duas
povoações fronteiriças é facilmente explicável. O comércio local de São Gregório
enriqueceu, noutro tempo, com o que vinha de Espanha, mais do que o de Puente de
Bárzia prosperou com o que ia de Portugal.
Há pouco tempo ainda, a estrada
de rodagem parava no cimo da povoação. Quem queria descer até ao rio e pisar os
últimos palmos de terra portuguesa era obrigado a meter por um quebra-costas de
lajedo que estreitava em congosta enfiando até à ponte, entre pocilgas de porcos
e jorros de água cachoantes. Não pode afirmar-se que seja propícia a descida, e,
muito menos, a subida. Mas a natureza tem, neste rincão minhoto, belezas compensadoras.
Muitas vezes me lembrei do grande e saudoso Malhoa, ao transpor alguns recantos
viçosos de parreirais em que o sol projectava sombras violetas, e alguns hortejos
onde, na polpa das couves galegas, faiscava em gotas a água viva das nascentes.
Agora, alcança-se o extremo de São Gregório pela estrada, prolongada há três anos
até Espanha, no intuito de estabelecer ligação com a estrada espanhola começada
a abrir, nas lombas dos montes galegos vizinhos, por iniciativa de Primo de Rivera.
O troço português está pronto. O espanhol parou a pouca distancia da fronteira.
Em todo o caso, já pude, de automóvel, atingir o extremo nordeste de Portugal, até
ao rio Trancoso, que no verão leva pouca água e que os garotos transpõem de um salto.
Parei, durante alguns momentos, nessa «terra última» em que se apoia um dos pilares
da nova ponte internacional acabada de construir. De um lado e de outro, as culturas
são as mesmas: campos de milho e vinhedos, dispostos em latada, à portuguesa.
Ouvia-se, em terras de Espanha, uma voz alegre de mulher cantar em português. Os
pardais revoavam, de uma para outra banda, sem respeito pelas determinações da polícia
de emigração, e sem pensar que, num simples bater de asas, mudavam de país.
Por instantes, uma borboleta, faiscando ao sol, hesitou entre as duas nacionalidades. E eu, pensando nos destinos
dos povos e nas vicissitudes da história, lamentei, não só que a estrada terminasse
ali, — mas que terminasse ali Portugal.
Texto extraído da obra:
- DANTAS, Júlio (1936) -
Viagens em Espanha. Livraria Bertrand, Lisboa.
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