sábado, 26 de setembro de 2015

Relatos de uma viagem de Melgaço a Lamas de Mouro pela "estrada nova" (meados do séc. XX)

Lamas de Mouro (Melgaço) em meados do século passado

O "Guia de Portugal" é uma obra iniciada em 1924 por Raúl Brandão. É reconhecido como um dos mais completos roteiros de Portugal do século XX. Foi publicado em vários volumes dedicados a cada uma das regiões do nosso país. A edição do volume dedicado ao Alto Minho é de 1965 e fala-nos desta região e em particular das estradas e caminho de Melgaço e das contemplações do autor com as paisagens da nossa terra. Deixamos aqui um extrato do dito livro onde o autor faz uma viagem da vila de Melgaço até às terras serranas do nosso concelho, percurso já feito pela estrada nacional, inaugurada uns poucos anos antes. Conta-nos então que...
"Melgaço é o ponto de partida para uma excursão à aldeia serrana de Castro Laboreiro. A antiguidade deste povoado, o seu isolamento em plena montanha e, portanto, o seu primitivismo, constituem motivo de atração para o estudioso das Ciências do Homem, José Leite de Vasconcelos que a visitou em 1904, no início da sua carreira científica. Não existia ainda a atual estrada. Fez a ascensão do maciço por caminhos primitivos, seguindo pelo vale da Ribeira do Porto (que passa pelo sul de Melgaço com a orientação este-oeste) e passando por Cavaleiros, Cabana, Candosa, Ledronqueira e Fiães, onde se deteve, contemplando as ruínas do velho convento. Neste local,situado a 700 metros de altitude, termina a zona dos pinheiros, seguindo-se a dos “vidos” ou “bidos” (vidoeiros ou bétulas) e dos carvalhos.
A estrada atual contorna, pelo largo e a Oeste, a lomba dos Picos (1255 metros), indo entroncar, um pouco no sul de Alcobaça, nos vales por onde seguia o caminho velho.
É esta via que pressupomos ser aproveitada pelo excursionista. A partir de Melgaço, a estrada sobe em plano inclinado, de 100 a 400 metros. Depois da ponte sobre a ribeira de S. Lourenço, em Roussas, à medida que vai subindo através de campos cuidadosamente cultivados, marginados pelas típicas ramadas de vinha, podemos contemplar, cada vez mais empolgante pela sua vastidão, o quadro paisagístico dos campos de Melgaço, fechado, para as bandas do Norte, pelo cenário longínquo dos relvados da Galiza.
O rio Minho, lá em baixo, vai serpenteando no seu sulco profundo entre rochedos titânicos apontados para as águas, que perante eles rumorejam tragicamente, numa luta milenária, que se embravece na época das grandes chuvas invernais. O rio, que depois de Roussas (altitude 300 metros) que se avista lá em baixo, não é ainda a corrente de águas mansas que flui amorosamente entre margens idílicas, como sucede, para jusante, a poucos quilómetros, em Monção. Aqui, é ainda uma corrente indómita e selvagem.
A cerca de 400 metros de altitude, depois das aldeias de S. Paio, e transposto o pontão sobre a Ribeira de Lavandeira, a estrada começa a contornar, já em plena zona serrana, cimos com altitudes superiores a 700 metros. Para trás ficou a região pitoresca da “ribeira”, com o seu caraterístico povoamento disperso. Entra-se, agora, num ambiente geográfico diferente, onde despontam, nas linhas austera do relevo, pequenos grupos de casais muito distantes uns dos outros.
Na Primavera, o ambiente solene das altas encostas do Alto Minho anima-se pela presença das cores vivas das flores da vegetação espontânea. Nessa quadra, os trabalhadores ocupam-se na faina do “corte” do mato ou na preparação de pequenos tratos de terra para as sementeiras, após o período rude da invernia.
Constitui uma feição original das serras do noroeste português a existência de povoamento de altitude: onde a arquitetura do relevo se traduz por uma rechã, aí se encontra, em geral, um foco de ocupação humana, com as casas aglomeradas rodeadas por campos cultivados ou por prados que a “água de lima” vai fertilizando. Tal é que sucede no lugar de Pomares (575 a 600 metros de altitude), pequeno povoado rodeado de retalhos de prados murados. Aqui, a estrada transpõe a linha divisória das águas entre a bacia da Ribeira das Lages, que corre para norte, atravessando a plataforma de Melgaço, e a bacia do rio de Mouro, que sulca o maciço de Leste para Oeste até ao cotovelo de Tangil. A 800 metros, passa pela aldeia de Cubalhão, dividida em dois núcleos – o Lugar de Cima e o Lugar de Baixo.
Transposto o vale do Porto Covo, o viajante encontra-se, agora, a contornar, pelo sul a grande lomba que culmina no Alto dos Picos (1255 metros), seguindo através de ampla rechã, por onde vão correndo, em meandros, as águas da Ribeira da Igreja. Neste planalto, enquadrado por cimos elevados, cruzam-se velhos caminhos de ligação entre os povoados distantes. Nos lameiros, há mulheres vestidas de escuro, pastoreando gado.
Daí parte o caminho (praticável para automóveis), que no interior da serrania, atinge o santuário da Senhora da Peneda.
No silêncio meditativo dos fraguedos, onde o tempo, dir-se-ia haver parado na sua marcha inexorável, como voz dorida da própria paisagem, ouve-se, por vezes, o ranger cavo das rodas pesadas de um carro regional, que avança, aos solavancos, sobre o tosco lajedo. Nem uma árvore põe uma nota e vida vegetal nos climas graníticos. 
O Homem sente-se esmagado perante o ambiente austero, e nos recessos nublosos da consciência, em face desses rochedos soerguidos para o alto, ouve-se o tumultuar eterno da inquietação humana perante o mundo.
A 900 metros, numa encosta, encontra-se a aldeia de Lamas de Mouro...



Extraído de:
SANT'ANA DIONÍSIO (1965) - Guia de Portugal - Entre o Douro e Minho II. Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa
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