Perto do Peso (Melgaço), à beira Minho, noutro tempo |
Desde que há memória, o
contrabando sempre constituiu, a par da emigração, uma das atividades
económicas mais importantes da população de Melgaço. Mobilizou todo o tipo de
pessoas: carenciados e remediados, homens e mulheres, adultos e crianças.
Alguns mulheres ocuparam lugares destacados nas redes do contrabando e da
emigração. E alguns dos processos mais volumosos arquivados no Tribunal da
Comarca de Melgaço dizem-lhe respeito. Muitas entregavam-se ao pequeno
contrabando, por conta própria, de ovos, galinhas, café e outras mercadorias.
Recorriam, inclusivamente, a pelas de vestuário adaptadas para disfarçar o
transporte.
Quanto à participação
das crianças, os próprios professores se queixavam das faltas às aulas por
motivo de trabalho no contrabando. O seguinte ofício, de 2 de Junho de 1941,
dirigido ao Diretor do Distrito Escolar de Viana, é, a este propósito, deveres
elucidativo:
“Tenho a honra de
comunicar a V. Exa. que, como o demonstra o mapa mensal referente a Maio, a
frequência média da 3ª classe desceu de 33, em Abril, para 27. A causa desta
anormalidade filia-se na razão de os pais de muitas crianças os mandarem para a
“Frota” – nome por que é conhecido o contrabando de ovos e sabão para a
Espanha. Tenho empregado os maiores esforços desde o pedido servil até à
intimidação, mas como os lucros são fabulosos – uma criança chega a ganhar por
dia 30 e 40$00, e a miséria é grande, nada tenho conseguido. Sei que não é esta
escola a única a sentir estes perniciosos efeitos do contrabando, pois o mal é
geral.”
Nos picos do
contrabando, todos os braços eram, efetivamente, poucos. Os homens acorriam de
longe, desciam as montanhas para locais como o Peso, face a Arbo, onde ficavam
à espera da próxima carga ou descarga, normalmente noturna, para ganhar algumas
“senhas”. Era, de facto, costume os transportadores receberem senhas em função
das cargas, senhas que eram trocadas, nos dias seguintes, por dinheiro.
Melgaço é um dos
concelhos portugueses com maior proporção de fronteira: três quintos do
território confinam com a Galiza, num percurso que se estende por 61 Km’s: 22
Km’s de fronteira terrestre e 39 de fronteira (incluíndo os 19 Km’s
correspondentes ao rio Minho). O traçado e a extensão da linha de fronteira,
associados à intensidade e à diversidade do contrabando e da emigração
clandestina, justificam que Melgaço tivesse a maior secção da Guarda Fiscal de
todo o Vale do Minho. Em 1961, serviam, neste concelho, 2 sargentos, 16 cabos e
74 soldados distribuídos por 17 postos.
Neste contexto, o
contrabando, para ser bem sucedido, carecia de boa organização. Havia vários
patrões do contrabando. Alguns juntavam-se constituíndo uma espécie de
consórcios, como, por exemplo, o do “Eixo” composto por meia dúzia de “patrões”.
Havia os lugar-tenentes, homens de confiança que se distinguiam tanto pela sua
capacidade como pela sua lealdade, os capatazes, os condutores, os bateleiros,
os transportadores, os informadores... Mais os fornecedores, os intermediários
e os clientes. Para além dos recursos humanos, eram ainda necessários meios
logísticos: barcos, carros e camiões, para o transporte; meios de comunicação
(por exemplo, radiotransmissores); armazéns e esconderijos (visíveis em muitas
casas construídas nos anos de 1950 e 1960). Algum investimento em negócios de
fachada também era conveniente para encobrir e branquear a atividade do
contrabando. Tão pouco podiam faltar os
meios financeiros. A candonga e o mercado negro atingiram dimensões
extraordinárias. Multiplicaram-se os postos de câmbios. Devido à emigração e ao
contrabando, Melgaço desfrutava, em 1975, de uma das melhores coberturas
bancárias de todo o país.
Tamanha complexidade não
impedia que as redes do contrabando fossem ágeis e flexíveis, capazes de
responder, de imediato e sem falhas, às urgências e pressões do momento: um
carregamento imprevisto, uma alteração do plantão da guarda, uma troca de
itinerário ou a trasladação da mercadoria de um armazém para outro ditada por
uma ameaça de busca...
De qualquer modo, dois
ingredientes permaneciam cruciais para o sucesso do contrabando: a confiança
recíproca e o saber prático. Interdependentes, os “trabalhadores do contrabando”
tinham de confiar uns nos outros, fosse qual fosse o lado da fronteira. Era um
jogo muito sério em que competia a cada um (chefe, fornecedor, cliente,
transportador, informador e, até, o vizinho) comportar-se segundo as
expetativas, ou seja, em conformidade com os seus compromissos e as suas
responsabilidades. Caso contrário, a cadeia rompia-se, e, sem ela, pouco ou
nada se conseguiria, É certo que, aqui e além, sobrevinham pequenos abusos e
algumas picardias. Contam-se, por exemplo, histórias de águas nos odres de
azeite e de excesso de peso nas amêndoas humedecidas. Nada, porém, que
ultrapassasse os limites ou fizesse perigar a continuidade do negócio.
O saber prático,
transmitido de geração em geração ou conquistado pela experiência, orientava,
por sua vez, as decisões e as ações quotidianas, referindo-se aos produtos, ao
rio, à metereologia, aos trilhos, aos animais (evitar, por exemplo, o ladrar
dos cães) e às pessoas. Saberes que davam azo a uma linguagem própria. Toda
esta panóplia de recursos, de posturas e de saberes de pouco serviria sem a
conivência das autoridades. Importava assegurar e custear a sua cumplicidade.
Cobravam à carga ou, mais raro, ao mês. Era, assim, normal a peregrinação de
guardas fiscais pelas casas dos “contribuintes” ou, então, a sua presença,
discreta mas vigilante, durante o despacho “contabilizado” das cargas. Nem
todos os guardas aceitavam colaborar. Dos mais renitentes se ocupavam os
próprios colegas. Nas rondas, sempre aos pares, um vigiava o outro. Na primeira
ocasião, eram destacados para postos, como, por exemplo, o da Ameixoeira, em
Castro Laboreiro, onde o incómodo resultava menor.
Mas o transporte das
mercadorias não se confinava à linha da fronteira. Alguns produtos vinham de
Lisboa e destinavam-se a Madrid. As pessoas abasteciam-se de ovos nas feiras de
Ponte de Lima. Os fornecedores do café estavam sediados em Braga, no Porto e em
Lisboa. Por detrás do ouro e da prata, estavam bancos nacionais. Os fios da
rede era de ta ordem que, segundo consta, houve períodos em que o comboio parava ou abrandava antes de
chegar às estações, como, por exemplo, a da Frieira, para receber ou largar
mercadoria. A simples consulta de processos arquivados nos tribunais,
minuciosamente instruídos pela PIDE, elucida-nos sobre quão extensas e labirínticas podiam ser as malhas do contrabando e da emigração clandestina.
Boa parte das apreensões de contrabando não era feita nas imediações da
fronteira mas nas estradas que ligavam ao Porto ou a Vigo. Era por isso,
imperativo “trabalhar” as autoridades a montante e a jusante.
Os ganhos dos pequenos
contrabandistas não davam para conquistar as boas graças das autoridades. Sobre
eles incidia, precisamente, o seu zelo. Não lhes perdoavam uma galinha e por
uma bagatela eram autuados. Mesmo assim, num ou noutro ano, o volume das
apreensões não bastava para mostrara serviço às instâncias superiores. Nestas
circunstâncias, a fazer fé em vários testemunhos, os principais contrabandistas
chegaram a quotizar-se cedendo as mercadorias necessárias para que a “colheita”
dos guardas locais conseguisse encher ou tapar os olhos às administrações
centrais.
Extraído de: GONÇALVES, Albertino (ano desconhecido) - Caminhos de inquietude: A organização do contrabando no concelho de Melgaço. O Miño, uma corrente de memória.
Extraído de: GONÇALVES, Albertino (ano desconhecido) - Caminhos de inquietude: A organização do contrabando no concelho de Melgaço. O Miño, uma corrente de memória.
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