sexta-feira, 3 de junho de 2016

Cevide (Cristóval), um Lugar de Culto

O rio Trancoso, à sua passagem por Cevide (Foto de Marco Caldas)
Na edição deste mês de “A Voz de Melgaço”, é feita referência a um conto intitulado “Lugar de Culto” da autoria de António Pacheco Costa, com a pequena aldeia de Cevide (Cristóval – Melgaço) no centro de uma bonita história. No conto, o autor parece querer misturar ficção com uma verdade oculta em estórias dum tempo passado desta bonita aldeia, Cevide. Vale a pena ler o conto! Tomei a liberdade de o partilhar no blogue!
Lugar de culto
 “Houve em tempos numa aldeia, na pequeníssima aldeia de Cevide, ponto mais setentrional de Portugal, um bar, também ele pequeníssimo. Mal abriu, logo declarou insolvência. Destarte, inaugurando-se às vinte e uma horas em ponto de uma quarta-feira e fechando as portas a título definitivo na quinta-feira que imediatamente se lhe seguiu à mesma hora, esse bar, como o leitor já se terá apercebido, apenas esteve aberto ao público durante um dia – o que em matéria de estabelecimentos nocturnos será o mesmo que dizer, uma noite. Tinha o elucidativo nome de Finisterra e era um negócio, desde o seu nascimento, condenado à ruína. O primeiro problema, e porventura o principal, residia no cardápio. Tratava-se de um pesado volume de pele preta apenas comparado a uma lista telefónica, em tamanho. No frontispício cintilava um monograma gótico – FT – gravado a folha de ouro , e nas entranhas, com um cuidado gráfico que deixaria lacrimejantes de orgulho os olhos de Gutenberg, como formigas espalmadas, um índice de todas as bebidas do mundo em papel de bíblia. Sejamos justos: preços, havia-os para todos os bolsos – desde uma aguardente de medronho, com o valor simbólico de 1 cêntimo por copo comercializada por um lavrador de Vinhais, até uma garrafa de Chateaux Lafite, envasilhada em 1847, subtraída da adega privada de um coleccionador de vinhos de Hong Kong e assinalada com o preço da última licitação feita em leilão, passando por uma cerveja conventual belga produzida por frades católicos que a confeccionavam seguindo uma receita secular, para a vender ao portão do mosteiro onde viviam numa embriaguez eterna.
O estabelecimento propriamente dito era, de facto, mais antigo que Cevide. A entrada fazia-se por uma porta vassala que servia um casario de dois pisos caiado de branco, de janelas empedradas na fachada, viradas para a rua, e telhas portuguesas enegrecidas pelo sol e pela acidez das chuvas – enegrecidas, enfim, pelo tempo, na sua dúplice acepção: climatérica e cronológica. Mas na vez desse acesso servil se abrir, como seria de esperar, para uma cozinha de casa fidalga, ampla e alta, de tachos poeirentos ao dependuro, a abanar a heráldica de uma Casa extinta ante um forno de lenha com espaço de sobra para acomodar, de pé, um cabrito, precipitava-se, não sem perigo, para uma escarpa de degraus assimétricos de granito que exalavam um odor bafiento a humidade e a passado, descendo muito, num estreitamento espiral de convento manuelino, até se aliviarem numa pequena salinha: o bar, strito sensu. Espante-se o leitor, tratava-se de uma antiquíssima igreja visigótica subterrânea, despojada de símbolos, datada do tempo em que esse povo germânico se convertera ao cristianismo, por sua vez erigida, numa sobreposição de cultos – fisica e ideológica – sobre as ruínas de um templo romano dedicado a Mercúrio.
A informação que se detém sobre esta catacumba não é fidedigna, já que a fonte de que dispusemos é um documento nebuloso, uma «História de Cevide» publicada em parcelas num jornal minhoto, escrita por um historiador autóctone que, apesar de alguns vícios académicos, demonstra todo o seu amadorismo na hora de preferir lendas na vez de factos. Espremendo o essencial, e omitindo todas as suas referências a demasiados reis de Portugal, que é sempre um recurso fácil para agigantar um povoado, a «História de Cevide» diz-nos que para além da justaposição dos templos, atestados com recurso à arqueologia, é sabido que o seu acesso primitivo se fazia por uma porta anã, dissimulada num suposto estábulo. Daqui, deduz-se uma intenção de segredo, apesar de se ignorar, ao contrário do que nos faz crer o documento, os motivos do sigilo. Também desconhecemos em que circunstâncias se ergueu o casario sobre as ruínas do suposto estábulo, apesar de sabermos que a obra ficou concluída no ano de 1839, data essa que ainda hoje se pode ver gravada na pedra, sobre a porta principal. O primeiro registo concreto data da II Guerra Mundial, onde serviu de abrigo subterrâneo a um grupo de judeus italianos naturais de Treviso, antes de embarcarem num paquete com destino à América, revelação inédita feita nestas linhas. Esta função, de esconderijo, terá estimulado a imaginação dos contrabadistas de Cevide – local que pela sua geografia fronteiriça, separado de Espanha por um rio de curto caudal, fizera parte da rota do contrabando durante as ditaduras ibéricas –, servindo de arrecadação a muitos víveres até ao alvorecer democrático da Península.
Entre esse tempo e o nosso, este lugar acumulou camadas de pó e de esquecimento, umas por cima das outras, numa escuridão pululada por morcegos e ratos, até que uma mão, de supino génio, habituada a reabilitações e lides quejandas e evidentemente conhecedora da importância de um património preservado com a mais alta estima, o converteu num elegante abrigo de noctâmbulos. O soalho e a mobília de nogueira escura providenciavam o achonchego vedado às paredes graníticas e o balcão, peça única, minimalíssima, de aço inoxidável, lembrava um altar dedicado à veneração de deuses concepturos – um arrojo audaz de futuro na antiguidade tumular da atmosfera. Atrás dele, um espelho que cobria não apenas toda a parede, como também o tecto, arquitectava uma grandeza ilusória que duplicava tudo: no lugar de quatro mesas vazias havia oito, no lugar de dezasseis cadeiras trinta e duas, e no lugar de um bartender, dois, que eram em tudo iguais para quem os visse de cá, mas que se distinguiam pelo facto de um ser fronteiro de cara e corpo, e outro traseiro, de nuca e rabo. Sobre este sujeito há pouco a dizer: para lá da alva camisa sem gomos, colete e laço preto, como manda a lei, e dos olhos lúcidos que pareciam encerrar os equilíbrios do Universo, nada mais havia nele que fosse digno de menção – tão grande era o seu sentido de discrição que nem se reparava que existia.
Um bar que apenas está aberto durante vinte e quatro horas não pode conhecer as mais-valias da restauração em geral – entre as quais se destaca, como benefício supremo, a reputação – mas desengane-se aquele que estiver a pensar que este bar, tão generosamente abastecido, não conheceu clientela durante a sua efémera vida. Com efeito, o seu primeiro cliente fez-se chegar com uma pontualidade britânica às vinte e uma horas e um minuto daquela quarta-feira inaugural e, à falta de melhor informação, chamar-lhe-emos Freguês Primeiro. Quando este abriu a porta do Finisterra ouviu música abafada, como vozes distantes, e foi com agrado que, à medida que descia o caracol de pedra das escadas, reconheceu a big band de Charles Mingus conjurando santos negros e senhoras de pecado. Era jazz, era um bom presságio. Um bar, tal como uma pessoa, diz muito sobre si através da música que elege. Pediu um gin-tónico em copo de long drink, já que considerava efeminado o hábito recente de se servir gins em copos de balão, e sentou-se a um canto, bebericando-o, e depois outro, e já ele ia a meio do terceiro copo quando, às vinte e duas horas e dezoito minutos se ouviu reverberar nas escadas os passos periclitantes do segundo cliente – que foi, em simultâneo, o último –, e que por razões óbvias de coerência baptizá-lo-emos de Freguês Segundo. Este, por sua vez, pediu um copo de água da torneira, bebida que constava na lista com essa mesma designação singela, e sentou-se no outro canto.
O ser humano é um mamífero com muitas lacunas. Desde logo, não é anfíbio, o que num planeta com mais água que terra só pode constituir uma desvantagem; também não tem asas, o que num planeta com continentes separados por oceanos não deixaria de ser um apanágio. Mas se há algo que não se pode dizer sobre a raça humana é que é uma espécie uniforme, na acepção darwinista do termo. Estes dois fregueses, o Primeiro e o Segundo, eram um exemplo de como o Homem, por se servir de algoritmos genéticos tão diversos, pode chegar a parecer dois animais distintos: o Freguês Primeiro era um sujeito elegante, moreno, esticado e seco de carnes; os seus olhos capciosos chamejavam num constante luzir vulcânico que lhe alumiava o sorriso giocôndico, sempre esquecido nos lábios finos. Vestia a última moda, mas não seria honesto rotulá-lo de andrajoso. Não. É verdade que o português comum não se arriscaria a passear na via pública com aqueles sapatos de camurça azul, aquelas calças de sarja castanha descendo a perna fina como um funil, aquela camisa de linho vermelho-sangue pontilhada por um padrão infinito de cornucópias minúsculas, nem tão pouco aqueles anéis dourados que lhe ornamentavam as mãos musicais, de pianista – curiosos adereços,
diga-se, para quem rejeitou de modo tão assertivo um copo de balão por razões de virilidade. Mas também é verdade que esse mesmo homem comum, que reprovaria, peremptório, a sua extravagância de Dalí, seria o mesmo que não deixaria de admirar o seu queixo imperial levantado ao alto, ou o seu nariz aristocrático, ou o seu jeito de cruzar a perna esquerda, engavetando-a completamente na direita que marcava o compasso quatrenário que Dannie Richmond produzia no bombo e na tarola...Exclamando, de si para consigo – «Que dândi!».
Ao lado dele, o Freguês Segundo, coitado, parecia um farrapo: mais baixo que alto, tinha as costas encurvadas sobre um corpo de uma flacidez adiposa que a gravidade puxava sem piedade para o hipocentro da Terra. Os seus sapatos quadriformes estavam tão gastos como as mãos pálidas e langorosas, de unhas roídas, encafuadas numa camisola de lã muito grossa, pautada de bolas gordas de borboto que se lhe agarravam como aqueles peixinhos pegadores que nadam na sombra dos tubarões. A careca sebosa emoldurada por dois tufos de cabelo grisalho nas têmporas, mais brancos que pretos, lembrava um ovo pré-histórico e o rosto convexo de ratazana a converger no lábio inferior ao dependuro, abanando-se como um pêndulo na boca sempre aberta, tanto sugeria uma renite crónica como um indício de diminuição mental, de bebé envelhecido; mas os olhos muito vivos, de um azul oceânico que evocava marés, encerravam com toda a certeza muita inteligência em estado bruto. Fumava tabaco de onça e, com uma paciência de Jó e um sossego infantil, embrulhava um cigarro sem rugas, para gáudio do Freguês Primeiro que o observava divertidíssimo do outro canto da sala, esperando pelo fim da liturgia, coroada por um prazeroso influxo de fumo a flutuar no ar como um pedaço de alma, para o interpelar. Atravessou a sala, e com uns trejeitos diplomáticos, mantendo uma distância respeitosa, encetou conversa de copo na mão.
– O senhor e eu pertencemos à mesma espécie de homens – disse.
– A saber? – murmurou o outro, curvado.
– Os misantropos – respondeu o Freguês Primeiro, sorrindo fascinado, como se o evento mais sedutor da vida de um misantropo fosse o paradoxo de encontrar um semelhante.
O Freguês Segundo anuiu, pensativo, reflectindo mais do que concordando.
– Importa-se que me sente? – prosseguiu o primeiro, apontando o queixo a uma cadeira vazia.
O Freguês Segundo consentiu silenciosamente, fechando as pálpebras e abrindo-as com gravidade enquanto, de cotovelo na mesa, segurava o cigarro recém-aceso entre os dedos em V.
– Um brinde aos lobos solitários – retomou com grande pompa, elevando o gin – seres errantes num mundo que só tem olhos para alcateias.
– Um brinde – disse o Freguês Segundo, replicando o gesto com menos convicção.
– O mundo, de facto, ainda não atingiu o grau de esclarecimento necessário para apreciar devidamente as qualidades dos homens sós, o senhor não acha? Não sei se concorda comigo, mas a maioria deles é provido de maiores aptidões sociais que o mais sociável dos indivíduos. Uma vez encontrei um eremita, dos poucos que ainda persistem na Terra, e qual não foi a minha surpresa quando reconheci nele as mais finas capacidades de conversação que alguma vez apalpei: era intransigentemente surdo quando falava e mudo quando ouvia. Já alguma vez se cruzou com algum?
– Algum eremita?
– Sim.
– Uma vez, há muitos anos. Era um abade muito velho, o último de um mosteiro, que quando ficou só, quando todos pereceram antes dele, escolheu ficar lá abandonado, comendo o pouco que plantava numa horta e rezando muito.
– Espere – interrompeu o Freguês Primeiro – penso não haver dúvidas que esse dito abade era de facto um ser solitário, mas não será correcto apelidá-lo de eremita. Se bem percebi o caso, o sujeito não optou por viver à margem da sociedade, antes se resignara a levar a vida de clausura e penitência que sempre conhecera, com o agravo da solidão. Não
poderemos considerá-lo, portanto, o arquétipo do eremita escolástico, sob a pena de nos vermos obrigados a alargar o conceito até ao ponto de o deturparmos por inteiro.
– Talvez tenha razão... quando o pobre velho me viu, na vez de me oferecer o seu repúdio, como seria de supôr de um eremita, chegou até a emocionar-se de alegria, mostrando um genuíno sorriso de gengivas. Aquele sorrir nunca me abandonou. Tinha tanto de franco como de horripilante, queratinoso, de cetáceo, de baleia.
– Ah...a fealdade! Detesta-a? – volveu o Freguês Primeiro, curioso.
– Do fundo do meu âmago, com amargura o confesso.
O Freguês Primeiro voltou a mostrar o seu sorriso capcioso, levantando os anéis ao balcão e guinchando estridentemente «Mais um!», incapaz de dissimular a excitação de se encontrar numa conversa estimulante.
– Cá eu sou um apreciador da fealdade, sem remorsos. – sublinhou. – Considero-a nutrida de beleza: a beleza decadente que têm as coisas tristes, que é, por vezes, quase artística. Por exemplo, a guerra. É tão linda, não acha? Não? Por mais que o senhor me reprove, o Cinema, a Literatura e a Pintura parecem concordar comigo, de tantas vezes se lhe terem apropriado da poesia. É o impulso mais natural, mais primário, mais animal que o homem pode ter. É uma necessidade que o espírito lhe pede, uma consequência legítima da vida em grupo – desconfio que nunca um eremita tenha começado um conflito armado – mas nos dias que correm já não se faz guerra como soía. Esteve cá desde o princípio e estará cá até ao grande final que, com toda a probabilidade, será por ela desencadeado, mas guerrear é cada vez mais difícil, fala-se muito em balas de canhão, mas cheira-se pouca pólvora. Ladra-se muito, morde-se pouco. Empurram-se uns países raquíticos para conflitos miseráveis de paus e pedras enquanto as grandes potências bélicas se sentam em secretárias. Secretárias! Pudera...Já viu as resmas de convenções e tratados internacionais que a regulam, ou antes, que a tentam regular? Que ilusão! Como se ela fosse possível de ser administrada pelas altas instâncias como uma empresa multinacional. Hoje, para se começar uma guerra, quase que se tem de abrir um processo!
– Mas como é que o senhor pode dizer que a guerra é um instinto primário do homem? – perguntou o outro, incomodado.
– Meu caro, se fizermos um périplo pelo reino animal, termo com que o homem se distancia da restante fauna por se julgar mais do que aquilo que é, veremos que todas as espécies – os cães, os gatos, os macacos, as girafas, só para citar mamíferos – fazem guerra, por território, por fêmeas, e etecetera, que o que não falta são motivos. E, se depois do safari, entrarmos num jardim de infância à hora do recreio, esses orfanatos interinos onde os progenitores abandonam as suas crias durante o dia para as poderem alimentar à noite, encontraremos pequenos guerreiros, aqui e ali, gladiando-se sem razões num alvorecer ternurento de guerra sem motivos. A guerra faz parte do jogo, porque não amá-la? O que seria de mim se não pudesse voltar à Ilíada, e o que seria da Ilíada se Páris não tivesse raptado Helena – aqui entre nós, mulher pouco séria – despertando a cólera do seu marido Menelau? Eu respondo-lhe: um forte soporífero em verso, capaz de provocar bocejos ao mais voraz dos leitores, sobre os longos gemidos de um jovem príncipe troiano, suspirando de angústia no seu palácio por um amor proibido.
– Se calhar o senhor precisa de se dedicar a leituras mais fleumáticas – respondeu o Freguês Segundo, notoriamente perturbado, e numa tentativa de saltar de tema –, se gosta de clássicos...
– Não me vai recomendar a sacrossanta leitura da Bíblia Sagrada, pois não? – interrompeu o Freguês Primeiro.
– Não ia, mas posso...
– Pode? Meu caro, meu caro amigo! Haverá livro mais sanguinário? Abre-se com a mais clássica forma de conflito bélico – o conjugal –, segue-se-lhe um fratricídio, que é outra das maneiras intemporais de guerrear – a testamentária. Depois, a lista é longa: os sumérios à pancada com os acádios, os assírios com os babilónicos, para não falar nos genocídios!
– Mas há um outro lado, uma outra leitura – respondeu o Freguês Segundo, pedagogicamente.
– Mas é claro que há, meu caro. Faço minha uma máxima axiomática de parca erudição: paz não existe sem guerra. E como uma não existe sem a outra, e como existirá sempre uma coisa ou a outra, numa alternância fatal, as duas existirão, sempre – assegurou, dando um longo gole no gin-tónico, e reparando que não estava a ser conveniente lançou uma pergunta jocosa para a qual já conhecia a resposta para arrefecer os ânimos: – Já agora, diga-me, quem é que escreveu a Bíblia? Sabe? É que o autor esqueceu-se de assinar a obra, e o Livro dos Números era digno de ser pelo menos rubricado, nem que fosse com um pseudónimo.
O Freguês Segundo riu, aceitando as tréguas.
– Decerto um homem que não viveu para gozar os rendimentos da autoria – respondeu.
Enquanto o Freguês Segundo se recompunha de uma gargalhada sonora, a big band de Charles Mingus guardou os instrumentos nas caixas e deu o lugar do leme ao “Love Supreme” de John Coltrane. Ambos se encolheram para receber, como uma hóstia, a apoteose do seu saxofone tenor e o Freguês Primeiro aproveitou a pausa para esvaziar o remanescente de gin e gelo derretido que lhe boiava no copo. Pediu mais um, agora só com um gesto dilatório por respeito à Arte, e reparou que o Freguês Segundo ainda tinha o copo de água da torneira mais cheio que vazio. «Tamanha penitência», pensou, tremendo de repulsa, «e ainda para mais, do cano!», mas não disse nada, pois se havia algo que ele nunca fizera em vida fora impingir os seus maus hábitos aos outros.
Quando o Freguês Primeiro ergueu os anéis a pedir outra bebida, assomou-se no juízo do Freguês Segundo um forte querer que o fez encarar seu bento copo de água com desdém, como se este fosse o último líquido capaz de lhe atender a sede. Questionou a sua própria abstinência. Teve vontade de abrir a pesada lista e procurar uma bebida exótica, mas controlou-se para não renunciar, assim tão sem luta, aos rigores rochosos que a sua consciência lhe impunha.
– Em que pensa? – inquiriu o Freguês Primeiro de boa-fé, ignorando o acaso.
– Na vida – respondeu o Freguês Segundo, como se largasse os olhos da popa de um grande veleiro à bolina, o que em todo o caso, não deixava de ser verdade.
– A vida; convenhamos, é uma palavra com pernas muito compridas... – volveu o outro, divertido, à laia de desafio.
– Será...pelo menos compridas o quanto baste para ser difícil vestir-lhe um propósito que não lhe fique pelos tornozelos. A cada segundo me pergunto: haverá sequer um propósito, uma finalidade em tudo isto?
– E a que conclusões chega?
– Conclusões? A nenhuma. Sou como aquele maratonista que, cruzando a meta, logo ouve um disparo a assinalar que na vez de alcançar a linha de chegada se encontra na partida de uma nova corrida, e depois outra, e assim sucessivamente, como dois espelhos que se enxergam num reflectir infinito.
O Freguês Primeiro passou-lhe o nariz pelas palavras e sentiu nelas, ou antes, nos espaços que as intervalavam, o cheiro derrotista do desespero, e ficou calado, só a cheirá-lo, pois o mesmo motivo que o levava a não impor os seus maus hábitos aos outros era o mesmo que o impedia de emprestar a sua serenidade de alma a intelectos desassossegados. Ainda assim, fingiu um semblante grave, verdadeiramente filosófico, como se cogitasse sobre a alegoria labiríntica do marotonista com uma absorção matemática.
– O senhor tem família? – perguntou-lhe o Freguês Segundo, sentindo que caía nele o ónus de anular o silêncio.
– Só enteados, para quem não constituo uma figura paternal, saliente-se – respondeu o Freguês Primeiro, resignado.
– Pois eu tenho muitos filhos, muitos. Eu já trouxe tanta gente ao mundo que não posso senão ser considerado um patriarca, na acepção tradicional do termo, e quando se é um patriarca é legítimo esperar a colheita de muitos frutos. Mas sou-lhes um parente muito distante, a todos eles, demasiado distante para me ser razoável a espera de emolumentos. Eles amam-me – todos me amam – mas, coitados!, o amor deles esgota-se no modo reverente com que se me referem...essa espécie de honrarias estéreis que as famílias sem brilho prestam a antepassados ilustres. Sabe do que falo? Ouça, uma vez cruzei-me com um sujeito numa praça pitoresca, virada para um rio e ademais muito portuguesa, e o sujeito, antes de falar, levantou o dedo hirto para a varanda sem janelas de um edíficio devoluto, decrépito, mas muito augusto, com ares de Câmara Municipal, onde se adivinhava um passado dourado a transbordar burguesia pelas chaminés, um porteiro diligente à porta, lajes de mármore cheirando a lavado, rodapés ornamentados com madeiras exóticas, talvez até um fresco no tecto da sala grande mostrando uma paisagem celeste com anjos de cabelos louros dedilhando arpas...e o homem, que se tinha esquecido de baixar o dedo, com olhos de estátua – como se vislumbrasse, numa admiração interior, esse porteiro, esses mármores, essas madeiras, esses anjos – e uma vaidade faustosa no falar, esclareceu-me «Ali, era o consultório do meu pai». Pensei, Puxa! Noblesse oblige. E admirando o imóvel com regalo – um consultório à antiga, do tempo em que a medicina era uma profissão liberal – reparei nas suas mãos negras como raízes, na rebeldia dos dedos grandes dos pés a espreitar pelos buracos dos sapatos velhos, na gabardina decomposta por noites ao relento...Depois ouvi-o a condensar, numa diminuição breve mas clara, a brilhante carreira que o papá tivera na oftalmolgia e na cátedra, antes de me pedir uma moeda, porque não comia nada desde a noite anterior.
À medida que falava o Freguês Segundo, o cheiro a desespero tornava-se mais forte nas narinas do Freguês Primeiro, e, ainda que num falso socorro, os usos da convivência obrigaram-no a lançar uma bóia de salvação para a tempestade atlântica daquele olhar, um pouco de humor, bem para todos os males:
– Mas que beleza decadente tão linda! Dava um filme! Quem é que escolhia para interpretar o papel de vagabundo? – perguntou, com um sorriso corriqueiro.
– Meu caro – interrompeu o Freguês Segundo, grave –, ainda não percebeu onde é que eu quero chegar. Eu sou esse pai e esse filho, ao mesmo tempo, mas controvertidamente: em parte sou esse pai, sem o incómodo de estar morto; em parte sou esse filho, sem a benesse de uma esmola. E quão longa tem de ser uma vida, ou as suas pernas, para se assumir estados de espírito tão heterogéneos! Longas demais – suspirou –, longas demais...
Acto contínuo, voltaram a emparelhar conversa e não deram tréguas ao silêncio, mas abordando temas mais leves, mais quotidianos, menos metafísicos. Falaram como quem troca segredos em voz baixa e pontuaram os discursos com aforismos que envidenciavam uma grande comunhão de ideias. Riram muito, partilharam ansiedades, conjuraram memórias, elencaram fobias: em suma, flanquearam-se, exposeram as fraquezas com o tipo de confissões preliminares que atestam uma empatia imediata e costumam ser, em não raros casos, prelúdio de amizades duradouras.
A conta ia num copo de água da torneira e nove gin-tónicos, sem contar com aqueles três que o Freguês Primeiro consumira de aperitivo, quando a música cessou e as luzes se acenderam, iluminando a pedra, revelando que os pilares eram rematados por capitéis jónicos, até então ocultos em sombras.
Quando saíram para a rua, Cevide amanhecia. Um passáro ibérico executava um solo de bico em G menor, inspirado pelos matizes arroxeados da manhã. Os fregueses, o Primeiro e o Segundo, estacaram à porta do Finisterra porque iam para caminhos opostos, e acenderam um último cigarro, adiando com bafuradas o fim inevitável de uma noite que desejavam ser imensa, até que o Freguês Segundo, esfregando as mãos por não ter nada melhor para fazer com elas, tomou a palavra:
– Parece que é a hora da despedida.
– Parece que sim – respondeu o outro, conformado.
– Amanhã à mesma hora? – perguntou o Freguês Segundo, com um sorriso que logo se desfez.
– Indubitavelmente que não! Não se esqueceu? Somos misantropos, o senhor e eu, é essa a nossa natureza. Todas as lutas travadas contra a natureza são lutas perdidas...
O outro, desconsolado, anuiu em silêncio – eram-no, de facto.
– Estamos condenados a viver sozinhos, não é? – suspirou.
– É o nosso fado. Mas, por favor, sem dramatismos teatrais! Decerto que não ignora, tal como eu, a inutilidade das despedidas!
De súbito, o Freguês Segundo sentiu-se duplamente só, se é que dentro da solidão cabem multiplicidades: duplamente porque, antes de tudo mais, já o era, de antemão; e como se já não bastasse apenas sê-lo, tinha sido abandonado. Endireitou as costas, solene, e um sopro de vento assobiado da Galiza sacudiu-lhe as roupas e os cabelos – mas também as folhas secas que jazem mortas, por varrer, nos claustros interiores da alma onde os pensamentos se arrastam como serpentes na floresta – e de mão estendida, perguntou:
– Como disse que se chamava?
– Não me cheguei a apresentar. Diabo. E o senhor?
– Deus.”
 (Conto: Lugar de Culto"; Autor: António Pacheco Costa; extraído de http://www.cim-altominho.pt/fotos/editor2/no19lugardeculto.nestorsaraiva.pdf)

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