Cão de Castro Laboreiro |
Partilho com vocês a segunda parte da reportagem sobre o Concurso Tradicional do Cão de Castro Laboreiro de 1969. "Ouço
os juízes na suas conversas de peritos e acompanho-os no seu vaivém por entre
os cães, na pequena praça de terra solta e pedregulho. Têm papéis nas mãos e
chamam pelos cães e pelos respectivos proprietários. Adianta-se uma mulher, um
vulto negro, os tamancos abater, a capa descendo pelas costas, o rosto
emergindo a custo do lenço negro. À trela, o seu cão. No pescoço do bicho, uma
coleira com pregos. Há lobos na serra.
É o
«Mondego».
-
Este tem boas mãos - diz um dos juIzes - o osso é bom, mas não acredito que
tenha só seis meses...
-
Juro-lhe, Senhor. Seis meses. Se quiser, vou buscar a vacina...
- Os
juizes cochicham:
«Este
bicho deve ter passado fome, tem sido mal tratado. Três meses, sim, é o que
parece que tem».
Outro
cão. Os mirones - quase tudo gente da terra e uma vintena de «pessoas da
cidade» que subiram à serra por gosto do espectáculo e na mira de poderem
comprar um exemplar - escutam em silêncio ou falam em voz baixa. Os juízes
continuam.
-Corra
lá com o cãozinho até àquela cruz... Isso. Agora, venha para cá. Mostre-me os
dentes do cãozinho... Assim, não: com os beiços fechados. Pronto, pode ir para
ali e esperar.
Passou
o «Mondego», passou o «Leão». Depois, o «Bobby», o «Lírio», a «Jóia», a
«Lula»... E também um cão - imagine-se - chamado «Mundano de Giela» !
-Faça
o favor de ir até à cruz.
-Quantos
anos disse que ele tinha ?
Mais
cochichos dos juízes: «Este é um rico cachorro. É pena ter aquelas brancas». E
em voz alta:
-
Ora mostre lá os grãos do cãozinho...
Os
dois Juizes sabem o que fazem. Andam para cá e para lá, conversam, escrevem
coisas nos papéis, dividem os cães para um e outro lado. E dizem: «A cabeça
deste é boa, as orelhas caem bem, são placadas, a ossada é boa...» Ou então:
«Este está muito bem para a idade. Só é pena ter a cauda um bocadinho fina, a
enrolar na ponta, exactamente por ser fina. Depois, aquelas malhitas nas
pernas. É pena...»
O
dinheiro que vem de França entra nas arcas, nos bancos, transforma-se em casas.
As casas «dos franceses», aquela gritante, maquiavélica orgia de cores que não
há, casas de telha francesa e não de colmo, como antigamente. Do meio da praça,
vejo uma única casa coberta de colmo. As outras são modernas e feias. Falta
saber, na serra, iuntar a beleza ao conforto. Mas a culpa não é dos franceses,
pois não ?
Um
dos lados da praça - o Largo do Eirado, informa-me o padre Aníbal - é tapado
por uma igreia de pedra. Estilos misturados. Há um sino grande, novo -
parece-me. A primeira pedra da igreia tem mais de oito séculos; a torre, a
capela-mór e o coro são do século dezoito (exactamente de 1755, o ano do
terramoto de Lisboa). E a pia baptismal é uma relíquia com 800 anos.
Não
se imagina a quantidade de história que há naquele largo e naqueles montes
cheios de nevoeiro e de vento, povoados por javalis e lobos e onde outrora se
acoitavam poderosos ursos. Quanto à presença humana, sabe-se - julga saber-se -
que, nas suas origens mais remotas, o povo daqueles montes e vales teria
pertencido a um fabuloso continente desaparecido sob as águas, a Atlântida;
muitos anos mais tarde, a gente da serra descendia de estraménios,
serpes, brácaros e galécios (ou galegos). E as casas de então permaneceram
iguais durante séculos, umas, redondas, outras, quadrangulares. Todas cobertas
de colmo.
Um
dia, foi construido um castelo nas alturas - e ainda lá está - e nos registos
da terra podem encontrar-se, ligados a este ou àquele acontecimento, e para
aquém dos conquistadores romanos, nomes como o de D. Afonso III, e de D. Dinis,
ligado com a transformação da Ordem de Cristo (1314)... Quanta história naquele
pequeno Largo do Eirado !
As
viúvas estão ao lado dos seus cães. Os senhores juizes chamam pelos nomes dos
bichos e dos proprietários premiados. Os mirones aplaudem. As mulheres de negro
sorriem. Uma recebe a taça, a medalha, aperta a mão ao senhor doutor, à moda da
cidade. De resto, todas aquelas pessoas parecem ter muito boas maneiras. E,
sobretudo, uma enorme tranquilidade. O dinheiro, por enquanto, só terá
estragado a arquitectura.
Uma
pessoa da cidade pergunta:
-
Então como se chama o seu cão ? -«Leou».
-
«Leou»? Você não quer dizer «Leão»?
-
Não, senhor. Quando o bicho era pequenino, pensámos que era uma cadelinha e
pusemos-lhe o nome de «Leoa». Depois, vimos que era um cachorro... E ficou
«Leou».
As
pessoas da cidade passam a história de umas para as outras e riem, com medida.
As pessoas da cidade não podem ser menos educadas do que a gente da serra. A
gente da serra vive do dinheiro que vem de França mas também cuida dos seus
rebanhos, o excelente gado barrosão, e colhe batata e centeio.
E
tem um costume curioso: divide o ano entre o tempo das verandas e das
inverneiras, correspondendo o primeiro aos meses de bom clima e o segundo aos
de frio, neve e chuva. 500 fogos civis e umas 2000 almas em Castro Laboreiro,
que depende do arciprestado de Melgaço e da diocese de Braga. O presidente da
Junta, o regedor da freguesia e o padre são as autoridades da terra.
O
Largo do Eirado vai ficando vazio de gente. As pessoas da terra partiram com os
seus cães, premiados ou não, as pessoas da cidade metem-se nos seus automóveis
e descem pela estrada que acaba e começa em Castro Laboreiro.
Caía
o pano (o nevoeiro, a noite) sobre as casas de telha francesa, sobre o Concurso
de Cães de Castro Laboreiro. No primeiro ano, tinham aparecido apenas dois
bichos autênticamente daquela raça, mas, de ano para ano, o número aumenta. E
para que serve tudo aquilo? É fácil responder: o objectivo é manter nas raças
caninas indígenas as suas características étnicas e as suas aptidões rácicas,
tendo-se em conta que «evoluções impostas por necessidades fisiológicas ou de
trabalho, por alterações das condições ambienciais ou outras, podem modificar,
funcional ou morfológicamente, as raças e provocar correcções nos seus
standards ou levar, até, à criação de novas raças ou ao ressurgir de raças
desaparecidas». Alguém poderá duvidar da utilidade de concursos como este de
Castro Laboreiro?
O nosso
grupo foi o último a deixar o Largo do Eirado. O padre Aníbal, no seu riso de
Fernandel (ou D.Camilo ? ...Ah, falta-lhe o Peppone !), acena-nos um até ao
ano. Mas já sabemos: o dia do concurso tem de ser antes da abertura da caça:
ele, padre Aníbal, não quer voltar a perder outra jornada sem uns tirinhos aos
pássaros.
E a
noite fechou-se sobre o Largo do Eirado, sobre a igreja, sobre a história.
Sobre uma amachucada bola de plástico; toda suja de lama, num canto, em Castro
Laboreiro.
In
Jornal “O Mundo Canino” – Novembro de 1969.
Para ler a Parte 1, CLIQUE AQUI
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