Concurso do Cão de Castro Laboreiro (1969) |
A publicação "O Mundo Canino", numa edição de 1969, conta-nos numa reportagem, como foi o Concurso Tradicional do Cão de Castro Laboreiro desse ano, realizado nesta localidade. Na dita peça jornalística, podemos ler que "Aquele
ia ser um dia diferente, mesmo dentro da concepção do que deve ser o quotidiano
de um jornalista: observação, retenção, descrição - e, eventualmente, crítica -
de acontecimentos vários, originais, inesperados. E ia ser diferente porque não
é vulgar, no contexto multimodo da profissão, um jornalista ocupar toda a sua
jornada de trabalho com uma reportagem em que o cão é o assunto. Mais do que o
cão, um cão. E por causa de um cão específico me levantei mais cedo e
jordaneei, pela fresca, Portugal acima, rolando com o mar à esquerda, até
chegar ao ponto onde um rio é fronteira e, depois, acompanhando o rio no
sentido leste, rumar à vila de Melgaço, onde começaria a trepar para a povoação
de Castro Laboreiro. Era aí que me esperava o meu cão.
Concurso do Cão de Castro Laboreiro (1969) |
A
viagem, com muitos atractivos paisagísticos e a breve paragem para o almoço,
num afamado restaurante de Monção, foram pormenores acessórios da empresa; o
objectivo era Castro Laboreiro e a anunciada cerimónia em que os cães que da
terra tiveram o nome iriam ser vedetas.
Por
isso, e contra o que seria normal, não demos ouvidos à voz do mar, ignorámos as
sugestões da folhagem cor-de-fogo e dos povos de casas baixas, antigas e
sólidas, atentámos no nevoeiro apenas porque a sua presença em farrapos húmidos
nos permitia, unicamente, visões parceladas do caminho e, quando o destino
estava próximo, um contacto mais íntimo com as fugidias pessoas e coisas que já
sabíamos fazerem parte do «habitat» do nosso «herói» da jornada, o Cão de
Castro Laboreiro.
Mas
que ia passar-se, afinal, em Castro Laboreiro? Para quê toda esta história de
viagem com fim determinado, na senda de um cão?
Tudo
principiara com uma conversa, uma alusão, um convite. Em Castro Laboreiro, lá
para a serra, ia reallzar-se um concurso anual de cães. Não um desses certames
muito reclamados e muito elegantes onde o desfile das damas e donzelas pretende
rivalizar, em porte, elegância, distinção e raça, com o próprio desfile dos
galgos, dos «caniches», dos «podengos», dos «danois» e dos «foxes». Este era um
concurso especial, tão puro como a serra, tão inocente como as pessoas, que com
os cães, iriam desfilar. Tal promessa me houvera sido feita, na véspera deste
dia diferente em que subi aos píncaros de Castro Laboreiro, acima do nevoeiro e
para lá - ou antes - da civilização e dos seus complicados rituais.
E
pronto, eis-nos chegados ao fim da estrada, ao cume da terra, à povoação
pendurada chamada Castro Laboreiro, que é onde um certo cão «tem o seu solar» e
«donde tirou o nome».
O
padre Aníbal, abrindo um sorriso com tantos dentes como há nos sorrisos de
Fernandel, dirigia a festa.
Após
as apresentações, ficou-se a saber que o padre Aníbal era um apaixonado pela
Natureza, um devoto de Santo Huberto («Dou os meus tirinhos, gosto de os dar -
aos pássaros, não às pessoas, evidentemente!», dizia o padre, num grande
sorriso) e um dos responsáveis pelo brilho já tradicional daquele concurso
quase ignorado.
Quase
ignorado, é verdade, mas sem que isso impeça que o Concurso de Cães de Castro
Laboreiro se realize há dezasseis anos consecutivos, e com progressivo aumento
de interesse e repercussão. Conforme se pode ler no Regulamento do Concurso,
este é «organizado pela Intendência de Pecuária de Viana do Castelo, de acordo
com o Regulamento Oficial de Exposições Caninas e com o patrocínio do Clube
Português de Canicultura, na sede da freguesia de Castro Laboreiro, do concelho
de Melgaço», admitindo a inscrição de cachorros (entre 6 e 12 meses de idade) e
de todos os animais da raça «Castro Laboreiro» com idade superior a 12 meses,
estes numa «classe aberta».
E
ali estava eu, no meio duma praça de aldeia, debaixo dum céu de chumbo e
rodeado de nevoeiro aos farrapos, a olhar o povo aglomerado, na expectativa da
função. Os cães, esses entretinham o tempo com o que é próprio dos cães: davam
ao rabo, esticavam as trelas e conversavam, ladrando.
Seriam
vinte, talvez vinte e cinco. À primeira vista, um leigo diria serem todos
iguais, ou quase todos, mas o mesmo sucede quando a gente vê desfilar, sem
preocupação de pormenor, as «misses» de um qualquer Concurso de Belezocas:
todas tão certinhas e tão «misses» como se da mesma forma houvessem saído, para
venda nos bazares a um preço fixo.
O
caso é que - manda a lógica pensá-Io - se concurso havia, existiriam
diferenças. Como com as «misses». E já se veria.
Os
juizes eram dois: o Dr. António Cabral, presidente do Clube Português de
Canicultura, que tinha vindo expressamente de Lisboa para o efeito, e o Dr.
Teodósio Antunes, veterinário em Viana do Castelo. Eles decidiriam quais os
bichos que mereceriam distinção gradual e prémio consentâneo. Sim, porque ali
havia taças, medalhas e dinheiro à vista em disputa.
Agora,
os concorrentes. Vinte, disse? Vinte e cinco? Por aí. E todos rigorosamente
«Castro Laboreiro», de pelo grosso, liso curto, na cor mais habitual e
preferida...
Os
cães estavam pela mão dos donos. Coisa curiosa: percentagem esmagadora de
mulheres, dois homens, e um rapazinho. Os homens eram velhos, cansados, lentos.
As mulheres estavam todas (bem, menos uma) vestidas de preto, saia e blusa,
capa barrosã pelos ombros e meias pretas (em certos casos, protegidas com uma
espécie de safões curtos); nos pés, umas botinas de couro, rijas e cardadas,
com aspecto de intermináveis. Coisa para gastar os trilhos da serra.
E as
caras dessas mulheres, dessas raparigas, dessas meninas sem idade! Todas com
menos anos do que poderia supor-se pelas caras queimadas, marcadas, riscadas de
rugas, modeladas pelo vento, pelo frio pelo nevoeiro, pela monotonia, pela
espera...
Pela
espera de quê? De quem?
Dos
homens delas, dos pais delas, dos filhos delas. Em 1918, após a Primeira Guerra
Mundial, os homens de Castro Laboreiro desceram a serra, encafuaram-se no
comboio e foram para França. As primeiras centenas de escudos ganhos com o suor
do emigrante vieram como compensação das ausências e como chamariz de mais
homens. As mulheres foram ficando sozinhas. E começaram a vestir-se de preto.
A
certa altura, os homens deixaram-se ficar descansados na serra. Depois, voltaram
a partir. Hoje, quase todos os homens de Castro Laboreiro estão em França a
fazer casas muito altas, a calcetar ruas, a sonhar e a ganhar fortunas. As
mulheres deles, em Castro Laboreiro, são todas viúvas. Não só as
mulheres-esposas: também as mulheres-filhas, as mulheres-mães. Viúvas, todas
elas, viúvas de homens vivos..." (CONTINUA)
Extraído de: O Mundo Canino (1969)
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