sexta-feira, 6 de janeiro de 2017

O mistério das inscrições na estela sepulcral de Paderne (Melgaço)


Um dos maiores mistérios arqueológicos do nosso concelho é a da estela sepulcral de Paderne. Trata-se de uma pedra esculpida e com inscrições a assinalar um sepulcro cuja idade se desconhece com precisão. Segundo o antropólogo José Leite de Vasconcelos, que esteve em Paderne a fazer escavações arqueológicas em 1903, esta pedra encontrava-se perto do mosteiro e foi levada para o Mosteiro Etnológico Português por esta altura. Acerca desta pedra sepulcral, o autor escreveu um artigo na revista "O Archeólogo Português" em 1907 onde tenta explicar o significado das inscrições feitas na dita pedra.
No dito artigo pode ler-se: "Junto da igreja de Paderne, aldeia do concelho de Melgaço, existia há uns anos uma notável pedra lusitano-romana, com uma inscrição e figuras esculturadas, a qual fazia parte do lagedo granítico do adro, e estava pois sendo constantemente profanada e maltratada por quem lhe passava em cima. Por diligências do meu amigo, o Dr. António José de Pinho Junior, advogado de Monção, e moço ilustrado a quem os estudos da arqueologia e etnografia locais merecem particular estima, a pedra ocupa hoje lugar de honra no Museu Etnológico Português: Secção Lapidar – Minho.
Tem uma altura de um metro e 61 centímetros; de espessura, 16 centímetros; de largura, 50 centímetros. É pois uma estela. Com quanto lhe falte já a extremidade superior, pode esta lápide considerar-se dividida na superfície anterior em quatro segmentos.
O segmento superior, que, como digo, está incompleto, parece que representa um busto acéfalo, duas mãos sustentam adiante do peito, em alto relevo, um objeto indeterminável, mas muito provavelmente um vaso.
O segundo segmento é constituído por um nicho, encurvado em cima. Nele se vêem, em baixo relevo, duas toscas figuras, com feições desiguais, de pé, sem nada na cabeça – uma, a da direita aparentemente do sexo masculino, vestida de roupagem mais curta (simples tunica). A outra, a da esquerda, aparentemente do sexo feminino, vestida de roupagem que chega até quase aos pés (tunica muliebris). Cada uma das figuras tem na mão direita um objeto indecifrável e dá a esquerda à outra figura.
O terceiro segmento, separado do antecedente por um bordo, contém uma inscrição, que foi gravada no campo depois de um pouco rebaixado. Esta inscrição continua no segmento seguinte, cujo campo não foi porém rebaixado, como o terceiro. O resto  do quarto segmento era destinado a fixar o monumento no solo.
Os lados da estela são irregulares, e estão em parte quebrados. Pelas costas, a lápide foi levemente desbastada. A extremidade inferior acha-se também falha.
Veja-se a figura feita com toda a exatidão, quer quanto às figuras, quer quanto ao letreiro.
Este constava primitivamente de sete linhas. A primeira está incompleta, pelo gasto das letras. A última ocupa o quarto segmento. As letras da linha 7 são mais encorpadas que as restantes.
Inscrição
L1 - OC.. I ..F……..
L2 - C\ .. I I ……… II
L3 – ENI F A C ET
L4 – COMP VALUS
L5 – COMP ARDAE
L6 – A L HSS PENTV
L7 – COMP F C

Discussão da inscrição

L1 – L2 O que resta não me permite propor nenhuma explicação.
L4 – A 7ª  letra pode ser I ou L
L5 – A 6ª letra parece ser R.
L6 – N e T estão juntos (Nexo).
Nas linhas 3 e 4, o A não tem traço no meio, nas outras tem. Alguns dos PP são abertos.
Da discussão precedente resulta que o texto poderá interpretar-se assim: …..eni f(ilia), a(nnorum) C. et Comp. Vaius(Valus?), Comp. Ardae (filius), a (nnorum) L., h(ic) s(iti) s(unt). Pentu(s) Comp. f(aciendum) c(urauit). Isto é: Fulana, filha de um indivíduo cujo nome no genitivo termina em eni, de cem anos de idade, e Comp. Vaio (Valo?), filho de Comp. Arda, de 50 anos de idade, estão aqui sepultados. Pento Comp. mandou fazer este monumento”. Interpretei o F da 3ª linha por f(ilia), baseado em ser, como parece, feminina a figura da esquerda.
Comentarei agora rapidamente o monumento, seguindo a mesma ordem que segui até aqui.
Cipos funerários em forma de cabeça humano não são raridade na Península: em Cárquere (Beira), por exemplo, há alguns; em Lara de los Infantes (Espanha) também se conhece um. Rematados, porém, em busto não me acode nenhum à lembrança. Apenas estou no caso de mencionar aqui, a este respeito, um sepulcro (do tempo do Imperador Cláudio) que está em Roma no Museu Capitolino, e em cuja cobertura aparece entre duas volutas o busto do falecido, um rapaz de cinco anos, enfeitado com uma bula. Sendo vaso o objeto seguro pelas duas mãos, poderei comparar o nosso monumento com as figuras votivas do cerro de los Santos (Espanha), onde esse tema aparece frequentemente: o vaso na estela simbolizará libação aos deuses manes (inferiae). O busto representará o sacerdote que faz a libação, ou o próprio dedicador do monumento.
Nichos como o que está abaixo do busto vêem-se também não raro com estelas, ora com uma, ora com duas figuras, conforme o número de defuntos que se desejam simbolizar. Lembrarei mais tarde os monumentos de Cárquere. O figurar bustos em nichos de estelas é corrente em países de civilização romana ou grega e não vale a pena citar casos.
Há outros exemplos epigráficos e literários de idades provetas, como a que se menciona na linha 3. Se na linha 4, a leitura Valus é justa, temos aqui  um nome igual ao segundo elemento de palavras como Ate-valus, Cloto-valos, Lano-valus, Nerto-vali (genitivo), elemento que se tem por céltico, na aceção de “poderoso” ou “chefe”, e é comparável ao latim validus.
Às linhas 4, 5 e 7, há uma palavra comum, "COMP", em abreviatura. A repetição faz-me crer que represente, não um nome individual, mas um nome étnico, que para os contemporâneos era tão conhecido e tão fácil de entender, que bastava indicá-lo pelas suas iniciais. Não posso porém identificá-lo com nenhum conhecido. A posição do nome  étnico numa epígrafe era usualmente depois do nome do indivíduo, como nas linhas 6 e 7. O aparecer nas linhas 4 e 5 antes dele, não seria caso estranho em país bárbaro, onde muitas vezes se sai fora das normas epigráficas.
De Arda, na linha 5, há outro exemplo no Alt-celtischer Sprach-schatz de Holder: nome de homem da Gália. A palavra poderia ser céltica. São frequentes os nomes próprios de homens de homens gauleses terminados em –a, como: Atepa, Boutia, Claua, Cantusa, Carussa, Mapa, Toutissa.
A respeito da palavra Pentu(s), que se lê na linha 6, notarei que em inscrições astúricas, há PENTI FLAVI e PENTI BALAESI. Hubner, na lista de cognomina diz: genitivo “Penti Balaesi f.” e “Penti FLAVI”, indicando os genitivos por não saber se os nominativos eram Pentus e Penti(us). Mas a nossa inscrição mostra que mais prudente foi Hubner pois não há dúvida que, se Pentius era possível, também o era Pentus.
Os celtistas haviam deduzido teoricamente a forma Pentos (= Pentus) para explicarem Pentius e outros derivados (Pentilius, Pentinus, etc.). Em todo o caso, não ocultarei que, se Pentus é realidade como nome de homem, não passa de hipótese como nome de número céltico, visto que não há texto antigo que contenha tal palavra com este significado mas é hipótese muito admissível. Compreende-se que Pentos, a significar “Quinto” se aplicasse como designação de pessoa, pois é sabido que os prenomes latinos Quintos, Sextus, Decimus, etc., significam na origem ordem de nascimento (o quinto filho, o sexto, etc.). Do mesmo modo, que com Quintus se correlacionava Quintinus, Pentilius, também com Pentus se correlacionavam Pentinus, Pentilius e Pentius. Notável coincidência!

A tribo romanizada a que pertencia o monumento era, com muita probabilidade, aquela que tinha o seu oppidum num monte que fica a dois passos da igreja paroquial de Paderne, e que ainda hoje se chama a Cividade, do latim civitatem. Ali encontrei uma casa redonda, do tipo já conhecido noutros castros de Entre-Douro-e-Minho, e vários objetos de pedra (esculturas) e restos cerâmicos, tudo de origem pré-romana. O nome desta tribo começava acaso pela enigmática sílaba “Comp” que se lê três vezes na inscrição… "


Extrato retirado de:

VASCONCELLOS, José de Leite de (1907) - Estela sepulcral arcaica do Alto Minho. In:  O Arqueólogo Português, Lisboa.

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