Um dos maiores mistérios arqueológicos do nosso concelho é a da estela sepulcral de Paderne. Trata-se de uma pedra esculpida e com inscrições a assinalar um sepulcro cuja idade se desconhece com precisão. Segundo o antropólogo José Leite de Vasconcelos, que esteve em Paderne a fazer escavações arqueológicas em 1903, esta pedra encontrava-se perto do mosteiro e foi levada para o Mosteiro Etnológico Português por esta altura. Acerca desta pedra sepulcral, o autor escreveu um artigo na revista "O Archeólogo Português" em 1907 onde tenta explicar o significado das inscrições feitas na dita pedra.
No dito artigo pode ler-se: "Junto da igreja de Paderne, aldeia do concelho de Melgaço, existia há uns anos uma notável pedra lusitano-romana, com uma inscrição e figuras esculturadas, a qual fazia parte do lagedo granítico do adro, e estava pois sendo constantemente profanada e maltratada por quem lhe passava em cima. Por diligências do meu amigo, o Dr. António José de Pinho Junior, advogado de Monção, e moço ilustrado a quem os estudos da arqueologia e etnografia locais merecem particular estima, a pedra ocupa hoje lugar de honra no Museu Etnológico Português: Secção Lapidar – Minho.
Tem uma altura de um metro e 61 centímetros; de
espessura, 16 centímetros; de largura, 50 centímetros. É pois uma estela. Com
quanto lhe falte já a extremidade superior, pode esta lápide considerar-se dividida
na superfície anterior em quatro segmentos.
O segmento superior, que, como digo, está incompleto,
parece que representa um busto acéfalo, duas mãos sustentam adiante do peito,
em alto relevo, um objeto indeterminável, mas muito provavelmente um vaso.
O segundo segmento é constituído por um nicho, encurvado
em cima. Nele se vêem, em baixo relevo, duas toscas figuras, com feições
desiguais, de pé, sem nada na cabeça – uma, a da direita aparentemente do sexo
masculino, vestida de roupagem mais curta (simples tunica). A outra, a da
esquerda, aparentemente do sexo feminino, vestida de roupagem que chega até
quase aos pés (tunica muliebris). Cada uma das figuras tem na mão direita um
objeto indecifrável e dá a esquerda à outra figura.
O terceiro segmento, separado do antecedente por um
bordo, contém uma inscrição, que foi gravada no campo depois de um pouco
rebaixado. Esta inscrição continua no segmento seguinte, cujo campo não foi
porém rebaixado, como o terceiro. O resto
do quarto segmento era destinado a fixar o monumento no solo.
Os lados da estela são irregulares, e estão em parte
quebrados. Pelas costas, a lápide foi levemente desbastada. A extremidade
inferior acha-se também falha.
Veja-se a figura feita com toda a exatidão, quer quanto
às figuras, quer quanto ao letreiro.
Este constava primitivamente de sete linhas. A primeira
está incompleta, pelo gasto das letras. A última ocupa o quarto segmento. As
letras da linha 7 são mais encorpadas que as restantes.
Inscrição
L1 - OC.. I ..F……..
L2 - C\ .. I I ……… II
L3 – ENI F A C ET
L4 – COMP VALUS
L5 – COMP ARDAE
L6 – A L HSS PENTV
L7 – COMP F C
Discussão
da inscrição
L1 – L2 O que resta não me permite propor nenhuma
explicação.
L4 – A 7ª letra
pode ser I ou L
L5 – A 6ª letra parece ser R.
L6 – N e T estão juntos (Nexo).
Nas linhas 3 e 4, o A não tem traço no meio, nas outras
tem. Alguns dos PP são abertos.
Da discussão precedente resulta que o texto poderá
interpretar-se assim: …..eni f(ilia),
a(nnorum) C. et Comp. Vaius(Valus?), Comp. Ardae (filius), a (nnorum) L., h(ic)
s(iti) s(unt). Pentu(s) Comp. f(aciendum) c(urauit). Isto é: Fulana, filha
de um indivíduo cujo nome no genitivo termina em eni, de cem anos de idade, e Comp. Vaio (Valo?), filho de Comp.
Arda, de 50 anos de idade, estão aqui sepultados. Pento Comp. mandou fazer este
monumento”. Interpretei o F da 3ª linha por f(ilia), baseado em ser, como
parece, feminina a figura da esquerda.
Comentarei agora rapidamente o monumento, seguindo a
mesma ordem que segui até aqui.
Cipos funerários em forma de cabeça humano não são
raridade na Península: em Cárquere (Beira), por exemplo, há alguns; em Lara de
los Infantes (Espanha) também se conhece um. Rematados, porém, em busto não me
acode nenhum à lembrança. Apenas estou no caso de mencionar aqui, a este respeito,
um sepulcro (do tempo do Imperador Cláudio) que está em Roma no Museu
Capitolino, e em cuja cobertura aparece entre duas volutas o busto do falecido,
um rapaz de cinco anos, enfeitado com uma bula. Sendo vaso o objeto seguro
pelas duas mãos, poderei comparar o nosso monumento com as figuras votivas do
cerro de los Santos (Espanha), onde esse tema aparece frequentemente: o vaso na
estela simbolizará libação aos deuses manes (inferiae). O busto representará o
sacerdote que faz a libação, ou o próprio dedicador do monumento.
Nichos como o que está abaixo do busto vêem-se também não
raro com estelas, ora com uma, ora com duas figuras, conforme o número de
defuntos que se desejam simbolizar. Lembrarei mais tarde os monumentos de
Cárquere. O figurar bustos em nichos de estelas é corrente em países de
civilização romana ou grega e não vale a pena citar casos.
Há outros exemplos epigráficos e literários de idades
provetas, como a que se menciona na linha 3. Se na linha 4, a leitura Valus é justa,
temos aqui um nome igual ao segundo
elemento de palavras como Ate-valus, Cloto-valos, Lano-valus, Nerto-vali
(genitivo), elemento que se tem por céltico, na aceção de “poderoso” ou “chefe”,
e é comparável ao latim validus.
Às linhas 4, 5 e 7, há uma palavra comum, "COMP", em
abreviatura. A repetição faz-me crer que represente, não um nome individual,
mas um nome étnico, que para os contemporâneos era tão conhecido e tão fácil de
entender, que bastava indicá-lo pelas suas iniciais. Não posso porém
identificá-lo com nenhum conhecido. A posição do nome étnico numa epígrafe era usualmente depois do
nome do indivíduo, como nas linhas 6 e 7. O aparecer nas linhas 4 e 5 antes
dele, não seria caso estranho em país bárbaro, onde muitas vezes se sai fora
das normas epigráficas.
De Arda, na linha 5, há outro exemplo no Alt-celtischer
Sprach-schatz de Holder: nome de homem da Gália. A palavra poderia ser céltica.
São frequentes os nomes próprios de homens de homens gauleses terminados em –a, como: Atepa, Boutia, Claua, Cantusa,
Carussa, Mapa, Toutissa.
A respeito da palavra Pentu(s), que se lê na linha 6,
notarei que em inscrições astúricas, há PENTI FLAVI e PENTI BALAESI. Hubner, na
lista de cognomina diz: genitivo “Penti Balaesi f.” e “Penti FLAVI”, indicando
os genitivos por não saber se os nominativos eram Pentus e Penti(us). Mas a
nossa inscrição mostra que mais prudente foi Hubner pois não há dúvida que, se
Pentius era possível, também o era Pentus.
Os celtistas haviam deduzido teoricamente a forma Pentos
(= Pentus) para explicarem Pentius e outros derivados (Pentilius, Pentinus,
etc.). Em todo o caso, não ocultarei que, se Pentus é realidade como nome de
homem, não passa de hipótese como nome de número céltico, visto que não há
texto antigo que contenha tal palavra com este significado mas é hipótese muito
admissível. Compreende-se que Pentos, a significar “Quinto” se aplicasse como
designação de pessoa, pois é sabido que os prenomes latinos Quintos, Sextus,
Decimus, etc., significam na origem ordem de nascimento (o quinto filho, o
sexto, etc.). Do mesmo modo, que com Quintus se correlacionava Quintinus,
Pentilius, também com Pentus se correlacionavam Pentinus, Pentilius e Pentius.
Notável coincidência!
A tribo romanizada a que pertencia o monumento era, com
muita probabilidade, aquela que tinha o seu oppidum num monte que fica a dois
passos da igreja paroquial de Paderne, e que ainda hoje se chama a Cividade,
do latim civitatem. Ali encontrei uma casa redonda, do tipo já conhecido
noutros castros de Entre-Douro-e-Minho, e vários objetos de pedra (esculturas)
e restos cerâmicos, tudo de origem pré-romana. O nome desta tribo começava
acaso pela enigmática sílaba “Comp” que se lê três vezes na inscrição… "
Extrato retirado de:
Extrato retirado de:
VASCONCELLOS,
José de Leite de (1907) - Estela sepulcral arcaica do Alto Minho. In: O Arqueólogo Português, Lisboa.
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