sexta-feira, 4 de janeiro de 2019

O sonho da luz elétrica em Melgaço há um século atrás




Em Melgaço, os primeiros acessos à luz elétrica remontam há mais de um século. Contudo, para a generalidade da população não passava de um sonho nessa época. O Dr. António Augusto Durães, enquanto administrador do concelho entre 1913 e 1914, terá sido dos primeiros a pugnar pela luz elétrica para Melgaço ainda que nunca tenha conseguido que tal se concretizasse durante o seu mandato.
O Peso e Castro Laboreiro seriam dos primeiros locais, em Melgaço, a possuir engenhos de produção de energia elétrica para diferentes fins em meados da segunda década do século XX. Em terras castrejas, foi Abílio Alves Carabel o primeiro a ter acesso a energia elétrica na sua fábrica de chocolate. Até então, as primitivas instalações que ocupavam parte do edifício em pedra do atual Núcleo Museológico de Castro Laboreiro, não tinham ao tempo energia elétrica, e o carvão, a que o pai Domingos Carabel sempre recorrera, onerava os custos. Abílio Carabel consegue então autorização dos Serviços Hidráulicos, onde chegou a trabalhar, para um barracão no rio Laboreiro, e aproveita a força motriz da água para gerar energia para a sua nova fábrica de chocolate.
No Peso, em 1913, as termas e os hotéis estão muito concorridos mas necessitam de se modernizarem. O complexo termal sonha com a luz elétrica. No jornal "Correio de Melgaço", na sua edição de 1 de Junho desse mesmo ano de 1913, podemos ler acerca de Cícero Solheiro que aspirava a instalar no Peso um cinematógrafo para a projeção de cinema e para isso precisava de energia elétrica: “Há indivíduos que pela sua ilustração e inteligência se impõem à nossa consideração e estima; outros, que pelo seu espírito verdadeiramente regional e empreendedor se impõem à nossa veneração. Neste caso está (…) Cícero Cândido Solheiro, que heroicamente trabalha para o engrandecimento material deste concelho, a quem adora, não se cansando de (…) lhe introduzir os melhoramentos indispensáveis à vida provinciana. O ano passado comprou (…) um magnífico camion para transporte de passageiros e bagagens, de Valença a esta Vila, e vice-versa, melhoramento de capital importância, já pela rapidez relativa da viagem, já pela comodidade com que nos transportamos, estradas em fora, numa distância de 42 kms. A sua actividade, porém, não parou aqui. Cícero Solheiro, estendendo as suas vistas de águia, reconheceu a necessidade de mais um camion, para quando houvesse grande movimento para as Águas do Peso e além disso poder facultar aos (…) hóspedes anuais digressões cómodas e agradáveis. Efectivamente, mais um luxuoso e elegante “Berliet” foi adquirido por este nosso amigo, melhoramento importante para o concelho, extraordinária e vantajosa comodidade para os seus hóspedes, que se podem transportar para onde lhes apraza, com a rapidez e conforto indispensáveis. Mas o Peso, dizia o bom do nosso Cícero, não tem uma única distracção, onde os aquistas possam relembrar a vida das cidades, onde passem algumas horas de ócio, despreocupadas e alegres. O Peso não tem outra distracção que não seja a beleza do nosso solo, tapetado de verdura e coberto de luxuriante vegetação. Dotar o Peso com luz eléctrica e um cinematógrafo era a ideia que mais o preocupava e que pôs imediatamente em execução, mandando-o construir e aplicar-lhe os mais aperfeiçoados aparelhos que a Companhia Cinematográfica Portuguesa pode fornecer e com cujo mecanismo fornecerá, de luz eléctrica, não só o salão cinematográfico, mas também os hotéis e estância das águas, caso queiram tal melhoramento, o que é muitíssimo plausível. Para deliciar os amadores de música adquiriu um lindíssimo e completo piano eléctrico, que também pode ser manual, ao qual adaptará belas composições musicais, ficando assim o Peso, até aqui de uma monotonia aldeã, transformado numa aprazível e encantadora estância. Sabemos que em 15 de Junho (…) será inaugurado o cinematógrafo, onde todos iremos, como verdadeiros regionais e amantes do progresso deste lindo rincão, prestar a nossa homenagem de consideração, veneração e estima, a esse novo, mas corajoso e intrépido trabalhador, a quem Melgaço deve todos os melhoramentos que possui. Mas a nossa veneração aumenta de intensidade ao lembrarmo-nos que Cícero Solheiro se não fora o grande amor pela sua terra (…), podia gozar despreocupado e sem canseiras, os seus avultados rendimentos. Mas não! Cícero Solheiro quer melhorar a sua terra, por cujo engrandecimento trabalha afanosamente, crendo nós bem que não haverá nenhum melgacense que ao pronunciar o seu nome não sinta por ele a veneração devida aos beneméritos da sociedade. Receba o nosso Cícero os cumprimentos do “Correio de Melgaço” pelo seu gesto dum verdadeiro patriota, dum sincero e desprendido regional”.
O sonho do Sr. Cícero Solheiro apenas se realizou em parte. Para tal, podemos dar uma leitura no referido jornal “Correio de Melgaço”, na sua edição de 24 de Agosto de 1913, que nos conta que “Inaugurou-se ontem, no Peso, com extraordinária concorrência, este belo salão cinematográfico… É uma bela casa de recreio, dotada de todos os aperfeiçoamentos modernos e requisitos indispensáveis a edifícios desta natureza; profusamente iluminado a luz eléctrica e pintado com muito gosto artístico. Admira-se ali um magnífico piano-concerto accionado a electricidade, que também pode ser tocado por qualquer pianista – sensacional novidade entre nós. Hoje há quatro sessões, que prometem muito, pela variedade e importância das fitas: às 14, 16, 20 e 22 h, que corresponderão à carreira de automóveis, entre a Vila e o Peso, pelo preço de 50 centavos, ida e volta, com direito a uma sessão. Há sessões todas as noites”.
Contudo, o complexo termal do Peso apenas iria ter luz elétrica nos espaços públicos e nos hotéis em 1931. Esse momento marcante é-nos contado no jornal “Notícias” de Melgaço”, na sua edição de 17 de Maio desse mesmo ano onde nos relata a instalação da electricidade em vários prédios desta estância: 500 lâmpadas no Hotéis Rocha, Quinta do Peso e filiais, no Parque e avenidas da empresa das Águas. Anunciava a inauguração para os primeiros dias de Junho sendo a energia fornecida pela Companhia do Tambre com sede na vila de Noia, província da Corunha, Espanha.
Amiudadas vezes faltava a luz, como refere o correspondente no Peso daquele jornal: “É raríssima a noite em que nesta localidade se conserve a luz eléctrica toda a noute sem por vezes se apagar, o que causa grandes prejuízos não só à casas particulares, como aos hotéis, casas de pensão e casas comerciais… Assim é que os hoteleiros e casas de pensão são obrigados a ter em depósito em sua casa de caixas de velas”.
O emprego da electricidade possibilitou a que se fizessem no balneário aplicações de diatermia, para o que foi adquirido um aparelho; ampliou-se também a secção de banhos carbo-gasosos. O balneário ficou provido de um serviço completo de banhos de imersão, carbo-gasosos, duchas escocesas e sub-aquáticas. Em 1935 começou a direção clínica “a empregar sistematicamente as curvas glicémicas como meio de investigação dos efeitos das águas na diabetes”.
Com maior frequência o Parque, o Pavilhão das Águas, os salões dos hoteis se animaram com as galas de iluminações nocturnas, as harmonias de bandas de música e orquestras, a elegância dos bailes e a alegria das quermesses. Era a beneficência, o melhor incentivo das festas, segundo as boas tradições das estâncias portuguesas. Contribuir para a filial que a Associação Protectora dos Diabéticos Pobres, em 1931, instalou no Peso, contribuir para o hospital da Misericórdia de Melgaço, contribuir para os pobres, tornou-se pretexto para amiudadas festas”.
Em 28 de Agosto de 1932 o “Notícias de Melgaço” descrevia assim a animação na estância que agora se prolongavam durante o período noturno até à madrugada: “As 9 horas da manhã deu entrada no Peso a afamada Banda dos Bombeiros Voluntários de Melgaço, com um primoroso passo dóbli e depois de executar várias peças do seu vasto reportório no Parque do Grande Hotel Ranhada, dirigiu-se para o parque das Águas, e aí permaneceu até à noite, tendo início dentro do Pavilhão das Águas e fora, um concorridíssimo baile que se prolongou até às três horas do dia 29. Durante a tarde houve jogos variadíssimos e diferentes divertimentos. A ordem era mantida por uma patrulha de marinheiros fardados e devidamente armados, comandada pelo Sr. E. P. de Mendonça, que devido à boa educação de todo o povo que foi assistir a estes festejos, não foi alterada a ordem da força acima referida”.
Três dias depois houve, no Peso, um outro baile, “por iniciativa de alguns hóspedes no Grande Hotel Ranhada e realizou-se a convite, visto encontrarem-se ali as damas mais distintas não só da vila de Melgaço como também desta localidade. O baile correu animadíssimo até às 2 horas da madrugada; foi oferecido às damas à meia noute um explêndido chá. A música constava de um quarteto composto de uma concertina, violão, flauta e violino, dirigido pelo Sr. Dinis de Brito, que fez executar com a inteligência e exactidão inumeráveis peças do seu grande reportório”.
O Parque do Grande Hotel do Peso conheceu também noites animadas como a da ‘Festa da Caridade’ realizada em 17 de Setembro de 1932, “por iniciativa das Ex.mas Sras. D. Judit Alheas, D. Maria José Nascimento e D. Sara Brou da Rocha Brito que foi abrilhantada com Iluminação, Bailes, Quermesses, Barracas de chá e petiscos nacionais servido por gentis senhoras com trajes a carácter. As Barracas muito originais e de um fino gosto artístico foram obra do Ex.mo Sr. Lino do Nascimento tendo como auxiliar o incansável Ex.mo Sr. Rocha Brito.
Às vinte e duas horas, entrou com um primoroso passo doble a banda de Valadares que depois de dar entrada no seu respectivo coreto, ali se conservou executando inúmeras peças do seu vasto reportório até às três da madrugada”.
No concelho de Melgaço, além do Peso, em 1931, foi também montada a iluminação pública com luz elétrica na vila de Melgaço. Até esta altura, existia na vila de Melgaço ou em Castro Laboreiro, iluminação pública fornecida por candeeiros a gás. Para instalar luz elétrica nas ruas de Melgaço, a Câmara Municipal pediu autorização, à Secretaria Geral das Finanças, para contrair um empréstimo de 150 contos para financiar tal operação. Numa missiva enviada pelo Governador Civil de Viana do Castelo ao Secretário Geral do Ministério das Finanças em 9 de Janeiro de 1930, podemos ler:

Ex.mo Sr. Secretário Geral do Ministério das Finanças

Tendo sido autorizado por Sua Ex.a, o Ministro do Interior, um empréstimo de 150.000$00 a contrair pela Câmara Municipal de Melgaço para a instalação da iluminação pública na Vila sede de concelho e encontra-se o respetivo processo nesse Ministério, venho solicitar a Vossa Ex.a se digne mandar submeter este assunto a despacho com a urgência que for possível.
Saúde e Fraternidade.
Viana do Castelo, 9 de Janeiro de 1930.”

O empréstimo recebeu o aval do Secretário Geral do Ministério das Finanças em 22 de Maio de 1930. A iluminação pública seria inaugurada em 1931. A energia elétrica da rede pública será assegurada pela empresa espanhola J. Valverde & C.ª. Esta empresa galega, mais tarde, vai obter da Câmara Municipal a concessão da exploração da rede elétrica no concelho. A energia que alimentava esta rede elétrica era proveniente de Espanha através de uma linha de transporte. A dita empresa manterá esta concessão até Setembro de 1962, quando a Empresa Hidro-Eléctrica do Coura, Lda, a empresa já concessionária em quase todo o distrito, assume essa função.
A luz elétrica só chegou à última aldeia de Melgaço já no século XXI.

Fontes consultadas: 
- Correio de Melgaço, edição de 1 de Junho de 1913;
- Correio de Melgaço, edição de 24 de Agosto de 1913;
- FIGUEIRA, João José (2012) - O estado da eletrificação portuguesa. Dissertação de Doutoramento apresentado à Faculdade de Letras da UC; Coimbra.
- Notícias de Melgaço, edição de 17 de Maio de 1931;
- Notícias de Melgaço, edição de 28 de Agosto de 1932;
- Carta do Governador Civil de Viana do Castelo ao Secretário Geral das Finanças.

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