sábado, 19 de setembro de 2020

O velho sonho da estrada de Melgaço a Castro Laboreiro (1931)

 



A construção da estrada nacional que liga a vila de Melgaço a Castro Laboreiro foi um sonho que demorou décadas a concretizar-se. Os planos e os primeiros estudos foram feitos ainda em finais do século XIX, sendo que a estrada inicialmente ia ser construída passando por Fiães, tal como o antiquíssimo caminho que ligava as duas sedes de concelho. Posteriormente, o novo projeto, elaborado já no século XX, já previa o itinerário que hoje apresenta, atravessando as freguesias de Roussas, S. PaioPaderne, Cubalhão e Lamas de Mouro 

Em meados da década de 30 do século passadoa estrada  se encontrava construída até ao Castelo dSante. Em 1938, já chegava a Cubalhão e apenas em meados da década de 40 é que chegou efetivamente a Castro Laboreiro. 

No jornal “Notícias de Melgaço”, na sua edição de 16 de Agosto de 1931, o Padre Domingues escreve o seguinte: “Acordei de manhã, muito cedo, lembrei-me do sonho que tivera durante o repouso noturno e senti-me agradavelmente impressionado: uma grande satisfação enchia todo o meu ser – exultava de alegria. Uma viagem em automóvel a Castro! Numa manhã amena do mês de Julho o carro a deslizar suavemente, docemente, através da encosta que se sobrepõe à nobre, velha, prática e tradicional Vila de Melgaço. Como era agradável sentir aquele suave e alegre canto das aves nos pequenos bosques que revestem essa encosta, como era surpreendente aquela paisagem do Vale do Minho salpicado de casas brancas, cortado pelo mesmo rio e além as paisagens galegas não menos formosas, não menos atraentes. 

Conversava-se, ria-se e caminhava-se, ouvindo o alegre canto da pastora que apascentava o seu rebanho, do lavrador que rasgava a terra com arado puxado por possantes e pachorrentos bois, até às alturas de Pomares, onde a paisagem sofre uma grande modificação. Aqui deixa-se a sonhadora paisagem do Rio Minho, com as suas margens revestidas de arvoredo coberto de viçosa folhagem, para contemplar um pequeno regato que, ousada e atrevidamente, com ímpetos de ferocidade, se precipita entre montanhas ásperas, elevadas e quase desprovidas de arvoredo, caminhando nesta visão até Lamas de Mouro, atravessando a freguesia de Cubalhão. 

Chegados aqui, e mais propriamente a Solar de Muros, a paisagem é quase completamente outra. Solar de Muros, uma pequena e estreita garganta entre duas grandes elevações de penedos, sobrepostos irregularmente, é a passagem à entrada para a freguesia de Castro Laboreiro, onde a paisagem perde o carácter do Minho para se aproximar das terras transmontanas. É um planalto extenso, extensíssimo até, cercado de serras elevadas sem variedade de vegetação. Apenas o seu solo é revestido de giestas, urzes, carrascos, e os campos de centeio e batatas. É uma freguesia populosa; mas a população é muito infeliz porque o solo é ingrato à agricultura, já porque o clima é excessivamente frio, já – e talvez principalmente – porque a composição da terra tem como elemento predominante a areia proveniente da fragmentação das rochas. 

Cheguei finalmente à chamada vila que, em outros tempos, foi capital do concelho de Castro Laboreiro, depois de caminhar uns bons 7 km da freguesia, calcado por elevadas penedias em cujas bases se veem alguns campos para cultura de centeio e batata, únicos produtos da malfadada terra de Castro.  

E na vila, então, sofri um desgosto profundo. É a capital da freguesia com a sua igreja paroquial muito mal tratada e vergonhosamente adornada, tendo à sua frente um cura d’almas, Petrus in cunctisnihil in omnibus, a quem os castrejos cognominam “governador” do castelo e da praça, quando pretende propalar urbi et orbi a sua importância pessoal, nobiliárquica e científica, e a quem conhecem pelo simples nome de bruto, quando se lembra de prelecionar sobre o Código Civil e as suas posturas paroquiais. É juiz, é regedor, e é não sei que mais, até vê mosquitos na lua e uma tempestade num copo de água. Quando se procedia à retirada acordei e entrei na realidade da vida, isto é, reconheci que só cavalgando por íngremes caminhos e subindo ásperas montanhas se poderá conseguir um tal passeio.» 

Cerca de um mês depois, o Padre Domingues continua lamentar-se no “Notícias de Melgaço” de 6 de Setembro de 1931, da falta que faz uma estrada que ligue Melgaço a Crasto e de como é difícil viver em terras castrejas dizendo que “ é uma freguesia pobríssima de Melgaço; não é, contudo, pobríssima porque os seus habitantes se poupem a trabalhos os mais custosos e os mais penosos, é pobríssima porque o seu solo é infrutífero e incultivável. Nada há que ali se possa desenvolver – nem as árvores florestais. Os seus montes são escarpados e nus de vegetação, vivendo com dificuldade o próprio carvalho que pobremente os reveste.  

Existem pontos no solo português mais elevados, mais frios; mas não existem com elementos tão pobres como o terreno de Castro. Aquele povo laborioso, profundamente económico, nasce na miséria, vive na miséria e morre na miséria, e o poder público [parece] comprazer-se em os ver sofrer os maiores trabalhos e as maiores dificuldades da vida. Não queremos referir-nos aos senhores da atual situação, nem aos das situações anteriores, como não queremos referir-nos à República ou à Monarquia, mas sim a todos, porque todos têm a mesma culpa, todos têm manifestado por Castro Laboreiro o mesmo abandono e a mesma culpa pela sua pobreza, pelo seu analfabetismo e finalmente pela sua infelicidade. Ainda ninguém levantou uma voz que se fizesse ouvir nas altas regiões do Estado; somente um ou outro gemido, quase apagado, costuma aparecer a público nas humildes colunas deste semanário, e, somente, de tempos-a-tempos. Que triste situação é ser habitante de Castro Laboreiro! Os seus habitantes têm de abandonar o seu solo para irem a longínquas terras ganhar o pão quotidiano para poderem viver e os seus, e isto continuamente e sempre. Não se emigra para saciar o desejo do ouro ou da riqueza, emigra-se por necessidade de ganhar o pão quotidiano, e emigra-se desde os doze aos vinte anos, e emigra-se todos os anos e todos os meses, podendo somente descansar um, dois meses, cada ano. É uma vida verdadeiramente insuportável, e o que ainda é mais triste e penoso é o isolamento a que o habitante de Castro está condenado – a única estrada que lhe fica mais próxima (20 km) é a EN n.º 1, que passa por Melgaço à fronteira. Esta freguesia é servida por caminhos velhos, destruídos, verdadeiramente intransitáveis, e, contudo, o movimento destes caminhos é grande, porque a freguesia é muito populosa e importa todos os géneros de consumo de 1.ª necessidade, desde o pão e o vinho, até à própria fruta. Em Castro não há uma única árvore frutífera, não há hortaliça, não há pão, não há vinho, e tudo isto que lá se consome é transportado à distância de 20 km, por caminhos aspérrimos, às costas dos humanos, ou ao dorso da mula. E esta situação não encontrará um ser humano que a lastime, e nas regiões do poder não haverá um ser humanitário que queira remediar tão grande mal, tão deplorável situação?! / Uma estrada para Castro minorava de alguma forma a lastimável situação do seu habitante pelas seguintes razões: 1.ª – Fornecia-lhe trabalho para na sua terra ganhar o pão quotidiano. 2.ª – Facilitava-lhe a condução dos géneros de 1.ª necessidade. 3.ª – Como belo ponto de turismo, facilitava a visita de quem se entrega a esse sporte. 4.ª – Pela convivência, tornava o castrejo mais sociável, abrindo-lhe horizontes mais largos para exercer a sua atividade intelectual. 5.ª – Não só era útil a Castro como o era às freguesias de Lamas de Mouro, Cubalhão, Cousso, Paderne e São Paio, que corta quase em meio, sendo também útil às freguesias de Parada e Gave, das quais muito se aproxima. 6.ª – E principalmente utilizava a capital do concelho, Melgaço, porque o tornava ponto força de passagem dos povos galegos de além de Castro a comunicar com o comboio que sobe a margem direita do Rio Minho, ou com o nosso, que parece estacar eternamente em Monção. Indiretamente favorecia as nossas praias e termas, cuja comunicação era mais fácil aos referidos povos galegos do que as suas. Muitas mais utilidades se poderiam apresentar, mas isto será chover no molhado, como diz o ditado popular”. O artigo termina no “Notícias de Melgaço” de 13 de Setembro de 1931, nestes termos: “Terminamos o artigo anterior sobre este assunto com a transcrição do ditado popular (…) chover no molhado e temos a certeza moral de que mais uma vez terá este ditado a plena confirmação, contudo isso não obsta a que uma e muitas vezes tratemos a necessidade absoluta da referida estrada, e dizemos necessidade absoluta pois cremos que em todo o nosso Portugal não há outra que se possa antecipar a esta. Realmente não pode admitir-se que uma freguesia com aproximadamente 4.000 habitantes que povoam uma superfície de terreno talvez superior a 300 km2, esteja desligada de todo o convívio social por falta de uma estrada! Não pode admitir-se que nestes tempos que vão decorrendo se submeta à escravidão um tal número de viventes humanos e não se faça algum esforço para minorar a infelicidade daquela pobre e humilde gente. Os poderes públicos fariam uma grande obra humanitária se procurassem amenizar um pouco aquele triste viver quase selvagem dos habitantes de Castro. Como? Haja boa vontade e Castro produzirá para a actual população e para o dobro da mesma população. Dediquem-lhe alguma atenção e o progresso será um facto em poucos anos. (…) Procure-se fazer um exame minucioso à composição química do seu solo nos diversos pontos da sua superfície, estude-se a temperatura nas quatro estações do ano, e assim preparados com estes elementos povoem-se os montados com arvoredos próprios daquele clima e da composição do terreno e Castro fornecerá enorme quantidade de madeiras que hoje têm grande valor. Procure-se também adaptar-lhe cereais próprios dos mesmos terrenos e climas e ensine-se aos habitantes o cultivo dos mesmos e teremos mais do que o necessário para a vida dos seus habitantes. Forneçam-lhe as primeiras sementes e obriguem-se os proprietários dos terrenos a fazer o cultivo conforme lhes for ordenado e eles mais tarde agradecerão os benefícios prestados pelo bom resultado que usufruirão dos seus trabalhos. Somos de opinião e (…) sabemos que em Castro pode haver magnífica produção de trigo, centeio, milho e muitos e variados frutos, e até algum vinho. E que quantidade de gados ali se podem criar se as ervas bravas que povoam o solo forem substituídas pouco a pouco por outras pastagens mais suaves, mais agradáveis ao paladar e sobretudo mais nutritivas. Coadjuvem os poderes públicos aquela pobre gente no amanho do seu solo, dirijam-nos no processo de cultivo, façam-lhe uma estrada, e terão a consolação de um dever cumprido. Continuando neste estado em que se tem encontrado há centenas de anos, o habitante de Castro não pode ter dedicação pela sua pátria, que o considera um filho espúrio, nem interesse pelo poder, que o considera de facto um verdadeiro escravo, um verdadeiro ente desprezível. Sabemos que estas palavras não alteram o procedimento dos poderes constituídos e por isso continuamos a lastimar a situação dos habitantes de Castro e aconselhamos-lhes que vão amenizando a sua triste vida ouvindo e apreciando as asneiras do seu cura de almas, entidade com que a Providência parece também querer castigá-los, de mãos dadas com os homens que mandam na Terra. Entretanto aproveitem o seu cura na caça aos lobos, que bastante prejuízo lhes causa nos rebanhos; já que outra utilidade não tem, [poderá substituir] ao menos os antigos guardas do rebanho, que se defrontavam peito a peito com tais feras, e se quiserem podem também aproveitá-lo para delatar para as altas esferas as mentiras que o armazém do seu duro crânio procura inventar”. 

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