domingo, 18 de dezembro de 2022

Memórias do tempo do contrabando

 



A atividade do contrabando em terras melgacenses pratica-se desde tempos imemoriais. No século XX, contribuiu para tornar alguns ricos e mostrou-se um complemento de rendimento essencial para muitas outras famílias. O fim das fronteiras com a integração na então C.E.E acabou com essa fonte de rendimento. Em diversos trabalhos académicos, tem-se recolhido testemunhos orais que são essenciais para compreender a prática do contrabando na nossa região em diversos contextos políticos ao longo dos tempos. 

No trabalho da Dra. Lídia Aguiar, “Os Patrimónios Alimentares nas Rotas do Contrabando”, publicado em 2020, mostra-nos uma série de testemunhos de antigos praticantes do contrabando em Melgaço, fossem eles homens, mulheres ou crianças. Deixámos aqui um muito interessante excerto: “D. Rosalina, pacatamente, fazia renda na biblioteca de Castro Laboreiro. Com 77 anos, para lá se desloca nos dias frios de inverno, já que em sua opinião, aí está mais quentinha. Fez questão de dar o seu testemunho, frisando bem que nunca foi contrabandista, embora, como todos os habitantes desta freguesia, foi muitas vezes às compras a Espanha, tendo por isso sido vítima da violência dos guardas, principalmente dos carabineiros. Sublinhou que quando ia nunca retornava pelo mesmo caminho. Era uma questão de segurança, a guarda podia ter visto ela passar para Espanha e aguardar o seu regresso. Deste modo, quando encetava a volta a Castro Laboreiro escolhia um caminho alternativo.  

Eu nunca fui contrabandista pois tinha muito que fazer nos campos e que tratar do gado. Mas claro que ia a Espanha comprar umas coisitas que nós procurávamos sempre o mais barato. Lembro-me bem do azeite, que era mais óleo, aquilo até era branco, mas era barato. Lá íamos então ao Pereiro, à Luísa, vinha em latas de 5 litros, se nos apanhavam tiravam-nos as coisitas e os guardas espanhóis ainda nos batiam. (Rosalina Fernandes - Castro Laboreiro - 20/10/2013)  

A D. Rosalina indica-nos que nunca entrou em grandes rotas de contrabando. Praticou o ato para sustento da sua própria família. Era hábito as mulheres juntarem-se em grupo, para mais facilmente se furtarem ao controlo das autoridades das fronteiras. D. Isolinda da Luz, também abrigada do frio na biblioteca de Castro Laboreiro, entra na conversa: Eu só trabalhei no do gado e mais tarde no das bananas. Mas sei de quem trabalhasse com contrabando de azeite, farinha, milho, ovos (os ovos iam para Espanha em saias especiais que as mulheres vestiam e disfarçavam na sua roupa). Outro contrabando forte foi o do café, esse ia em mulas até à fronteira e depois os galegos vinham buscá-lo. De noite eram umas 4h a andar. E também ia dinheiro, muitas vezes escondido nas tranças do cabelo ou na roda das saias.  

Também fui muitas vezes às compras a Espanha. Mas aí tinha de vir tudo muito bem escondido e havia que escolher bem os carreiros que usar. Era bem difícil. Os guardas, quer os portugueses quer os espanhóis se nos apanhavam tiravam-nos tudo. Mas valia a pena ir lá comprar, pois era tudo muito mais barato. (Isolina da Luz - Castro Laboreiro - 20/10/2013) 

É com D. Isolina que temos acesso a indicações sobre o contrabando alimentar mais antigo e que mais perdurou na fronteira luso-espanhola: o café. Ela descreve a primeira fase deste tráfico, feito por mulheres, dissimulado em coletes costurados de forma especial, vestidos como de roupa íntima se tratasse. Quanto aos ovos disfarçados na roupa, referia-se Isolina a saias rodadas com sacos disfarçados de pregas, onde enfiavam ovo por ovo, até ao máximo de 5 ovos em altura. No que se refere ao café em maiores quantidades, como se verá posteriormente, o primeiro transporte utlizado foram as mulas. Dada a dificuldade, em breve os próprios Galegos se deslocavam através do rio Trancoso e o levavam às costas: No tempo da guerra ia para Espanha muito amendoim, açúcar e café. O meu pai é que foi do tempo mais antigo. Ele sim, fez contrabando de café para Espanha. Lembro-me que vinha muita gente buscar o café e de muito longe, até de Cortegada. Faziam com o saco do café cru, uma mochila para pôr aos ombros, mas tinham muito medo dos carabineiros e dos guardas portugueses também, que  naquela altura os guardas eram muito maus. Também levavam do café já embalado, era o Café Sical. Mas por aqui passava muita coisa, que depois da guerra havia falta de tudo em Espanha. Chegou a vir gente de Vigo, eles tinham de procurar pela vida. Quando a vida em Espanha começou a melhorar, então também passou a vir mercadorias de lá. Lembro-me das uvas passas e do bacalhau no Natal. Aqui toda a gente passou a andar nisto, era a única sobrevivência. Mas valha-me Deus, muitos morreram no rio, que às vezes ia alto e as batelas eram fraquinhas e viravam. A carne também se ia lá buscar. É verdade, que vinha muito gado para cá, mas era velho, que o nosso gado novo, esse ia para lá. Isso sei eu bem, que o meu marido ainda andou a ajudar a passar alguns. Então toda esta zona ia lá comprar a carne, mas era contrabando. Até o pão era um problema. Aqui, em Cevide, não chegava o padeiro, apesar de isto ser muito povoado, não era como agora a menina vê. Do outro lado do regato, havia uma loja que vendia e nós chamávamos a Senhora para nos trazer o pão. Atirávamos uma guita e ela amarrava e mandava assim o pão pendurado por cima do regato. Mas os guardas quando viam a guita logo a atiravam ao regato. Por vezes, já estávamos tão habituadas que ela nos atirava mesmo por cima do regato. Mas então, estávamos condenados a não comer pão? É que ir a Melgaço era muito longe e não havia transportes. (Gloria Pires - Cevide - 23/1/2014)”  

A D. Glória Pires transporta-nos para uma dupla realidade. A que ela própria viveu e a que se lembra de o pai ter praticado como grande contrabandista, na passagem de café para Espanha, ainda no tempo da Segunda Guerra Mundial. Nesta fase, por Cevide, pode-se afirmar que os patrimónios alimentares passados para Espanha foram dos mais variados, dadas as carências que o país vizinho vivia. O marido da D. Gloria contrabandeou gado, pela raia seca, pelo que ela nos informa que o gado que vinha era velho e o que ia era novo e de boa qualidade. A população sabedora que a boa carne ia para Espanha, acabava por a ir lá comprar, mesmo tendo de a contrabandear. Porém, o que mais enfatiza é a questão do pão, pois era obrigada a contrabandear, dado que o local onde habitava não tinha padeiro e do outro lado do rio, facilmente acessível se encontrava uma padaria, mas estava já em território espanhol. D. Gloria, ainda no presente não compreende a razão de não poder comprar o pão à sua vizinha, de quem até era amiga, só porque estava do lado de Espanha. Revela-se aqui a identidade de fronteira, onde os territórios muitas vezes se confundem e as barreiras alfandegarias pouco ou nada dizem para quem vive na raia. Este sentimento é comum nos dois povos da zona de fronteira e na linha cronológica em estudo.  

E isso o podemos confirmar através de quem praticou este ato até bem próximo da abertura das fronteiras. Atente-se na entrevista seguinte: “No tempo do contrabando, vinha muita gente comprar aqui na nossa loja. Tinham de passar a pé pelo rio (refere-se ao Rio Trancoso). Levavam um pouco de tudo. Já foi nos 70/80 que começaram a ir as bananas, os figos, o bacalhau e o marisco. Nós comprávamos grandes quantidades e depois os portugueses mandavam vir os moços carregar e levavam para lá, mas isso já não era connosco. Sei que levavam para Cevide, onde tinham a carrinha. Aqui só passava alimentação. Os portugueses vinham e claro, depois tinham de passar a mercadoria pelo rio. A nossa loja esteve sempre orientada para Portugal. Também cá vinha muita gente no tempo de verão, os hóspedes das termas do Peso, e esses levavam muita coisa, faziam mesmo muitas compras. Eu também ia lá buscar o café. Aqui na loja sempre aceitei escudos e francos, pois tinha um senhor de Melgaço que vinha cá e me fazia o câmbio. Mas as bananas foi mesmo a grande quantidade. Nós comprávamos e guardávamos no nosso armazém. Depois os portugueses é que as buscar para carregar pelo regato. Eram muitos rapazes. De Cevide sei que eles as distribuíam para as cidades como o Porto e outras. Quem vinha a Cevide, não era o grande patrão, era uma filha e dois empregados de confiança, que organizavam tudo. Cada caixa pesava por volta de 12 quilos. Dependia da força de cada um. Uns levavam duas, outros três, mas havia quem levasse quatro. Amarravam-nas com umas cordas, pois quantas mais levassem mais ganhavam, pois eram pagos por caixa transportada. Começavam ao escurecer e andavam toda a noite a carregar.  

Os rapazes andavam todos contentes pois ganhavam algum bom dinheiro. No tempo da fronteira fechada, isto aqui era muito movimentado. Só fechava a loja no dia 25 de Dezembro e no dia 1 de Janeiro. Para passar o regato o mais normal era porem uma árvore deitada e passarem por cima dela. Agora isto morreu. Os dois povos sempre se relacionaram. A fronteira, nada impediu. Aqui não há raças, não queremos saber se somos espanhóis ou portugueses. Claro que com a fronteira fechada sempre havia algum chato, mas nada nos impediu de nos sentir um só povo. (Isabel Fernandez  Frieira . Galiza  22/1/2014) 

Isabel Fernandez, relata-nos já um contrabando bem mais recente. Espanhola, moradora na Frieira, Galiza, onde ainda mantém a sua loja 

aberta, mas com uma frequência muito limitada, quando a compara com o negócio do tempo em que a fronteira estava fechada. Realça as boas relações entre os dois povos, que considera que sempre comunicaram como de uma só comunidade se tratasse. 

É ainda significativo o seu conhecimento das rotas até às grandes cidades, nomeando a cidade do Porto, sabendo que era em camiões carregados em Cevide, que geograficamente se situa frente a Frieira, Espanha, do outro lado do rio Trancoso, precisamente onde se situa a sua loja.  

A corroborar a sua armação, Anselmo, foi um dos que muita carga fez entre a loja da D. Isabel e os camiões em Cevide: “Eu trabalhei com as bananas, mas para o Mário Corga. Esse era um grande contrabandista, mas também um grande Senhor. Nós tratava muito bem e era muito justo a pagar e sempre nos tratou de uma forma muito humana. Era um verdadeiro Senhor. Seriamos uns 30 homens a carrejar. A minha mãe com pena, lá ia com um caneco de limonada e ali se sentava a dar um copo de limonada a cada um que passava. Eu carregava no início da noite 6 caixas amarradas com uma corda, dava uns 75 quilos, estava com muita força, depois só trazia 50 quilos, ou seja, 4 caixas. Quantas mais caixas, mais recebia. Os guardas aí já eram mais livres. Pagavam-lhe um tanto por caixa. Então eles vinham no fim contar todas as que estavam nos camiões, se ainda houvesse que carregar, também ajudavam, pois, mais caixas no camião, mais ganhos. No fim, levavam o saco do dinheiro, mais uma caixa de bananas ou bacalhau”. Antero Pires  Cevide  (23/1/2014)  

Com o testemunho de Antero, ficamos a saber que quem possuía os camiões eram contrabandistas de elevado poder financeiro, que contratavam rapazes novos para fazer o serviço duro de passar a fronteira com a mercadoria às costas. Neste caso, Antero, considera o seu patrão um homem justo, pois lhes pagaria um valor correto pelo serviço que praticavam. Constata-se igualmente que a guarda fiscal estava inserida nesta rede de contrabando. Porém, quando os camiões se afastam das zonas de fronteira torna-se difícil controlar as sucessivas brigadas que se encontra ao longo da estrada. 


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Extraído de: AGUIAR, Lídia (2020) - Os Patrimónios Alimentares nas Rotas do

Contrabando. In: Revista Turismo & Desenvolvimento, nº 33.

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