domingo, 25 de agosto de 2024

Quando a era do automóvel chegou a Melgaço


 


Em Melgaço, no início do século passado, as temporadas termais, entre Junho e Setembro, traziam à terra uma quantidade absurda de visitante à procura das águas termais do Peso. Com alguns desses visitantes, chegaram, muito provavelmente, os primeiros automóveis que circularam pelas estradas deste concelho.

Em nenhuma altura do ano se viam tantos automóveis como durante as temporadas termais. A agitação provocada pelos visitantes das termas do Peso era tanta que um jornal melgacense chega a queixar-se do excesso de velocidade dos automóveis na vila de Melgaço, coisa ainda rara e estranha por estas paragens. Uma notícia breve no "Jornal de Melgaço", na sua edição de 25 de Junho de 1908, refere que “Nestes últimos dias tem sido grande o trânsito de automóveis, provavelmente para as águas do Pezo. Não podemos deixar de lamentar a velocidade que levam ao passar nesta villa, podendo isso causar algum desastre. 

Na edição do dito periódico de 23 de Julho do mesmo ano de 1908, o redator do jornal melgacense volta à carga e lembra aos automobilistas os limites de velocidade segundo a lei na época: “Circulação de automóveis - É frequente, durante a estação aquista do Pezo, percorrerem a estrada real e ruas desta villa, alguns automóveis, a maior parte de delles sempre com grande velocidade, o que é expressamente prohibido pelo artigo 35º  do decreto de 3 de outubro de 1901, que dizem: «a velocidade dos automóveis não deverá exceder, normalmente, 10 kilómetros por hora dentro das povoações e 30 kilómetros fora dellas». «Estas velocidades devem ser diminuídas em circunstâncias especiaes, e sempre que a segurança da circulação o exija, especialmente nos fortes declives, nos cruzamentos de estradas e ruas e nas curvas apertadas». 

Pois apesar de tão expressa determinação, é frequente, repetimos, ver os taes automóveis em carreira vertiginosa, o que facilmente pode occasionar qualquer desgraça.  

Suponhamos que um automóvel causa a morte de um boi ou duima creança? Nada mais natural do que dar isso logar a um sério conflito, e uma desgraça dessas entre nós é tão fácil de acontecer como se bebe um copo d'água, porque os nossos lavradores trazem constantemente o gado solto e muitos pais de família têm o péssimo costume de deixar andar os seus filhos sós, pelas ruas, ainda que sejam de tenra idade. Ainda não ha muitos dias que, já de noite, aqui passou um automóvel vindo de S. Gregório com grande velocidade o qual ia matando uma criança na estrada real, junto da capelinha de S. Benedicto [Calçada] e por pouco não o ia levando o diabo por causa de um gado que se espantou com a sua passagem.  

Haja pois mais cuidado e menos pressa. De vagar se vae ao longe. E se teimarem não se queixem.” 

E continuamos a falar da “revolução do automóvel” que começava a chegar a Melgaço. Isto porque pela primeira vez na imprensa, em finais de 1908, faz-se referência a uma carreira de autocarro entre Melgaço e Valença, fazendo a ligação ao comboio. De facto, no “Jornal de Melgaço”, de 17 de Dezembro desse ano, pode ler-se: “Carreira de automóveis - Garantem-nos que na próxima primavera será estabelecida uma carreira regular de automóveis entre Valença e o Pezo de Melgaço para o transporte de passageiros, estando assegurado um valioso auxílio pela Empreza daquelas águas e pelos nossos amigos Srs. José João de Sousa e José Joaquim Esteres, dignos proprietários dos hotéis Rio Minho e Quinta do Pezo, respectivamente.  

Desde alguns annos que se vem fallando neste reclamado melhoramento para os aquistas que se destinam às estâncias minero-medlcinaes de Monsão e Pezo. Agora, porém, tudo parece combinado e assente porque à frente do serviço se encontra a acreditada empreza Auto-Motora do Porto que se arroga à montagem de carreiras diárias com vehículos comportando vinte passageiros e por preços relativamente módicos. Deus permitia que assim seja.”

Por volta de 1912 iria surgir a primeira empresa de camionagem cá da terra: a Auto-Melgaço, propriedade de Cícero Cândido Solheiro, que assegurava ligação entre o comboio e o Peso, a vila de Melgaço e São Gregório.

quinta-feira, 8 de agosto de 2024

A Guerra da Restauração também passou pelas fronteiras de Melgaço


A Restauração da Independência a 1 de Dezembro de 1640 marca o fim de 60 anos do domínio filipino em Portugal. Recuperada a independência, D. João IV é aclamado rei em Lisboa e vão seguir-se quase três décadas de guerra com Espanha. 

Nas fronteiras de Melgaço, decorreram algumas ações bastante violentas, particularmente ao longo da fronteira do rio Trancoso, mas também em Lamas de Mouro ou em Castro Laboreiro. O lugar de Alcobaça bem como outras aldeias em Paços, Cristóval ou Castro Laboreiro (Melgaço) foram incendiadas e saqueadas. Temos notícias que os de cá também destruíram e incendiaram alguns lugares (Crespos e Monte Redondo), em Padrenda. Era o estalar da Guerra da Restauração. Estes e outros episódios são narrados com um certo detalhe no livro "História do Portugal Restaurado", publicado em 1751. O dito livro conta-nos que, aí pelo ano de 1641, "...Nestes dias, andando em Melgaço, rondando as sentinelas junto do rio, o Capitão de Infantaria Francisco de Gouvea Ferraz, estimulado de ouvir da outra parte do rio a um soldado galego algumas palavras contra o decoro del rei, se lançou impetuosamento ao rio, e passando a nado, se achou da outra parte sem oposição, porque o galego, medroso, do seu lado se retirou, antes que ele chagasse, podendo facilmente tomar vingança da sua ousadia. Tornou da mesma forma a voltar a Melgaço, e logrou o merecido aplauso da sua resolução. 

De Janeiro até Julho se passou de uma e outra parte sem mais empresa do que estas primeiras ameaças de guerra. Em Julho quando se rompeu a guerra no Alentejo, conhecendo El Rei que menear as armas só para a defesa era multiplicar o perigo, e era a paz que se desejava e que se havia de conseguir fazendo guerra, ordenou aos governadores para dar armas de todas as províncias, que entrassem em Castela. Não dilatou D. Gastão a obediência e deu logo ordem a Frei Luiz Coelho da Sylva, Cavaleiro da Ordem de S. João, que com a gente de Viana, embarcada numa galeota, duas lanchas e alguns barcos passasse a queimar a vila da Guardia, situada defronte de Caminha. Mandou a D. João de Souza, Capitão Mor de Melgaço, que entrasse ao mesmo tempo pela Ponte das Várzeas (próximo a S. Gregório); António Gonçalves de Olivença pelo Porto dos Cavaleiros; por Lindoso, Manuel de Souza de Abreu e pela Portela do Homem, Vasco de Azevedo Coutinho. Todas estas entradas se executaram em lugares muito distantes uns dos outros e toda esta gente não levava mais disposição que a do seu valor. Porém ignorar os perigos que buscava, a fazia mais resoluta, achando a fortuna favorável, que costuma pôr-se da parte dos temerários. D. Gastão passou à Insula, pouco distante da Guardia, para observar deste sítio o sucesso dos Vianenses, de que não resultou mais, que voltarem-se com dois barcos de pescadores. Irritou-se muito D. Gastão deste desconcerto, como se as disposições desta empresa não insinuaram o sucesso dela. Na Insula, mandou D. Gastão levantar um reduto, parecendo-lhe sítio acomodado e que necessitava de segurança. Os mais que entraram em Castela saquearam e queimaram algumas aldeias e trouxeram despojos, que os obrigou a se animarem a maiores empresas. Governava o Reino de Galiza, o Marquês de Val-Paraíso. As prevenções e disciplina daquela parte não excediam muitas muito as nossas e só havia diferença de se haverem nomeado oficiais, que entendiam a guerra, de que resultava terem os soldados melhor notícia dela. 

Poucos dias depois de retirada a nossa gente, mandou o Marquês de Val-Paraíso 800 infantes à freguesia de Cristóval (Melgaço), que é na raia junto ao rio Várzea (rio Trancoso), e queimaram algumas aldeias, sem perdoar o insulto ao sagrado das igrejas. Passaram à freguesia de Paços que segue a Cristóval. Acudiu D. João de Sousa e Francisco de Gouveia, o que havia passado o rio a nado, e trazendo consigo só 70 homens, ocuparam a passagem do rio e obrigaram os galegos a que se retirassem perdendo 40 homens. Estas entradas, que pareciam mais de bandoleiros que de soldados, se alternavam de uma e outra parte com pouca vantagem nos sucessos. Com a notícia da entrada que os galegos fizeram, tornou D. Gastão a convocar a gente, tornou D. Gastão a convocar a gente que havia dividido, e deu ordem ao Sargento Mor Simão Pita que entrasse na Galiza, pela Ponte das Várzeas, e Manuel de Souza de Abreu pelo Porto dos Cavaleiros. Simão Pita teve notícia que o inimigo engrossava por aquela parte o poder, e susteve a entrada. Manual de Souza passou o Porto dos Cavaleiros com três mil infantes e 40 cavalos e sabendo que o inimigo ocupava o lugar do Facho (Cristóval), por onde forçosamente havia de passar, mandou avançar António Gonçalves de Olivença com 400 infantes a desalojar os galegos, que se achavam com 400 infantes e 150 cavalos. Investiu-os valorosamente António Gonçalves e obrigou-os a se retirarem. 

Sem embargo desta desordem, marchou Manuel de Sousa para o lugar de Monte Redondo (Padrenda), grande, rico e fortificado, com duas companhias pagas e outras da ordenança que guarneceu. Chegando ao lugar, mandou avançar as trincheiras pelos Capitães D. Vasco Coutinho, Cristovão Mouzinho e Luíz de Brito, entraram valorosamente e queimaram o lugar à custa das vidas de muitos galegos. A pressa, e o exemplo da gente de António Gonçalves inculcou a desordem porque muitos dos portugueses, que sabiam as veredas, se retiraram para suas casas com os despojos que colheram. Os galegos que saíram do lugar ocuparam a aspereza de um monte, que era o caminho por onde Manuel de Sousa forçosamente havia de passar. Vendo ele que era necessário vencer esta dificuldade, deu ordem a que avançasse toda a gente a desocupar aqueles sítios e não havendo melhor disciplina que a da competência, disse que aquele que chegasse primeiro, lograria o aplauso daquela ocasião. O valor de todos dissimulou este desconcerto. Porque avançando intrépidos por todas as partes, obrigaram os galegos com morte de alguns a largarem o posto. Aos que se retiravam, se uniram outros, que dos lugares vizinhos acudiram ao rebate e chagando ao número de mil infantes e 200 cavalos, e se formaram num vale, mostrando que desejavam pelejar. Facilmente lograram intento, se Manuel de Sousa se não achara com menos duas partes da gente que havia levado à empresa. Retirou-se queimando de caminho algumas aldeias. D. Gastão não estimou tanto o bom sucesso, como sentiu a desordem dos que se retiraram e castigando os que tiveram culpa e dando prémios aos que procederam com acerto, foi pouco a pouco reduzindo a melhor forma a gente daquela província e ao mesmo passo que ensinava, aprendia. Porém aqueles a que sucede serem primeiro generais que soldados, dificilmente saem grandes mestres na escola militar. 

Dois dias depois do sucesso referido, entrou o inimigo pelo Porto dos Cavaleiros com dois mil infantes e 300 cavalos e derrotou os Capitães António de Barros, que com duas companhias pagas, guardavam aquele porto. Vindo-se retirando os socorreu a Capitão Mathias Ozório, a que dava apoio o Sargento Mor Simão Pita. Fizeram alto os galegos com perda de alguns oficiais e os soldados voltaram sobre o concelho de Laboreiro, e o lugar de Alcobaça, que destruíram e queimaram. A nossa infantaria recolheu ao Convento de Fiães de frades de S. Bernardo que com esta guarnição ficou livre dos danos que os galegos determinavam fazer-lhe."

LINK PARA O LIVRO - História do Portugal Restaurado (1751)

Mais curiosa ainda é a referência a Melgaço e a Lamas de Mouro nesta mesma guerra num livro de poesia publicado em 1649 com o título “O Phaenix da Lusitania, ou, Aclamaçam do serenissimo Rey de Portugal D. Ioam IV”. No mesmo, o autor celebra a Restauração da independência de Portugal e os feitos na guerra com Espanha. Faz alusão à existência um reduto de defesa em Lamas do Mouro, bem como à morte de quatro irmãos da família de fidalgos dos Castros de Melgaço. Pode o caro leitor conferir abaixo nesta página 226, na estrofe 35, a referência ao tal reduto de Lamas de Mouro.


Conforme referimos atrás, também há, neste livro, uma referência à morte de quatro irmãos da família fidalga dos Castros de Melgaço durante esta guerra. Confira, o ilustre leitor, na página 255, estrofe 121, mostrada abaixo:


LINK PARA O LIVRO - O Phaenix da Lusitania (1649)


Fontes consultadas: 

- MENEZES, Luiz de (1751) – História de Portugal Restaurado. Tomo I; Oficcina de Domingos Rodrigues; Lisboa.

- TOMÁS, Manuel (1649) - O Fênix da Lusitânia, ou, Aclamaçam do sereníssimo Rei de Portugal Dom Ioam IV. do nome: poema heroico. Impresso em Ruam: Por Lourenço Maurry.