quarta-feira, 8 de outubro de 2014

Recuamos aos tempos da ACADEMIA no Peso (Melgaço, 1908)

Peso (Melgaço) - Início do século XX

A 2 de Maio de 1909, António Rocha Peixoto, notável naturalista, professor, antropólogo, etnólogo e escritor faleceu em Matosinhos, vítima de tuberculose aguda seguida de uma crise.
Em 1908, passou uma temporada em Melgaço, nas Águas do Peso, onde fundou um grupo de tertúlia e reflexão que ele chama de Academia. Depois da sua morte, em 23 de Maio desse mesmo ano, o seu amigo Avelino Dantas escreve no jornal poveiro “Estrella Povoense” um texto de homenagem onde recorda a marcante passagem por Melgaço no ano anterior e as animadas sessões da Academia. O texto diz o seguinte:
“Faz um ano em Agosto que, no local da nascente das Àguas Minerais do Peso de Melgaço, encontrei o abalisado homem de ciência Rocha Peixoto.
Feito os meus cumprimentos, a que ele correspondeu, risonho, com um acolhedor “Viva, amigo”, perguntou-me logo por notícias da sua terra e, em seguida, quis que eu lhe dissesse o motivo que me levava ali. Disse-lho, e como quer que ele visse em mim sintomas de neurastenia, aconselhou-me a que viajasse e visitasse de preferência lugares, onde há muito que admirar e aprender.
Ao mesmo tempo, estava na pitoresca estância de águas minhotas um considerado médico de Chaves, o Dr. Teixeira de Sousa, com quem Rocha Peixoto falava muito e de que o saudoso extinto me disse gostar pelo seu feitio gracejador e leal de transmontano.
Dias depois apareceram, um quase após outro, primeiro o Dr. Silva Gaio, secretário da Universidade de Coimbra e festejado homem das letras e, posteriormente, o distinto pintor portuense António Carneiro, que Rocha Peixoto cumulava de atenções, tratando-o como a pessoa de valor e a que se rende culto.
Todos os dias, de manhã e à tarde, à hora de tomar as águas, era certo o grupo dos quatro em animada palestra, que só se interrompia para confortar o estômago e para dormir.
Ordinariamente, quem mais falava era Rocha Peixoto. Erudito e fluente, dispondo, como se sabe, de uma soma enorme de conhecimentos bem assimilados e, o que não é vulgar em homens de ciência, expondo tudo com muita facilidade e clareza, todos o ouviam com manifesto prazer, e só se separavam quando ele dizia que a sessão ficava interrompida por tantas horas, isto é, o espaço de tempo decorrido desde o almoço até à hora do tomar águas, de tarde, e desde o jantar até ao dia seguinte, de manhã cedo.
Às vezes, a sessão interrompia-se por momentos. Era quando se efetuavam-se digressões de recreio e de estudo, mas mais de estudo do que de recreio, aos templos românicos dos concelhos de Melgaço e Monção. Neste: a matriz da vila e a igreja de S. João de Longos Vales; em Melgaço, a matriz da vila, a igreja de Paderne e a capela de Nossa senhora da Ourada.
Como é óbvio, essas digressões, de que jamais me esquecerei, eram planeadas pelo insigne português Rocha Peixoto e feitas por ele, os cavalheiros acima citados e pelo autor destas linhas, ao grupo dos quais Rocha Peixoto graciosamente chamava a Academia.
Era de ver o carinho e o entusiasmo com que o ilustre homem de ciência preleccionava sobre os característico do estilo românicos nos templos de Monção e Melgaço que visitamos. Nestes expressava a sincera indignação com que verberava o obra dos bárbaros restauradores, quando acaso nesses monumentos se lhe deparavam semelhantes provas de falta de educação cívica e carência de perfeito sentimento artístico.
Uma vez, no alto do Castelo de melgaço, onde subiu a Academia para gozar o lindo panorama que dali se descobre e, sobretudo, para se remontar a uma época em que a força era tudo, Rocha Peixoto, em conversa com dois padres que lá estavam, disse-lhes que eles podiam fazer muito em prol da conservação do nosso espólio artístico sobrevivente do passado, opondo-se a que as juntas da paróquias, na sua fúria inovadora, ultrajassem, estragando, o que tão digno é de respeito.
Dotado de invulgares faculdades de trabalho e de uma força de vontade inquebrantável, nem mesmo ali, naquela estância de Melgaço, onde os outros vão apenas para fazer a sua cura de águas, o saudoso homem da ciência descansava.
Vendo-o, assim, todo votado à sua tarefa de gigante, quem diria que, em menos de um ano, ele sucumbiria ao peso dessa mesma tarefa, que afinal tão demasiada era para a sua compleição!
Ah! Como, por vezes, é triste a realidade das coisas! Como é cruel!
Ainda há pouco, nos primeiros dias de Fevereiro, ele me disse em Matosinhos, que era preciso que a Academia se reunisse este ano em Melgaço para continuarmos as nossas palestras e as nossas digressões, e nem pela cabeça me passou a ideia de que era essa a penúltima vez que o via vivo... “

Rocha Peixoto no jardim de sua casa

Extraído de:

- DANTAS, Avelino (1966) – Rocha Peixoto (Depoimentos e Manuscritos). Edição da Câmara Municipal de Matosinhos, Matosinhos.

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