Vista para o Santuário da Senhora da Peneda |
"NO MINHO PITORESCO - A CÉLEBRE ROMARIA DA PENEDA
Nos subúrbios de Guimarães, S. Torcato, um
dos celestes ímans milagreiros com mais créditos granjeados no espírito do povo
minhoto, pela tradição de bastantes séculos, atrai anualmente ao seu templo
milhares e milhares de visitantes.
E é por isso que nos dias de festa lá afluem
aos terraços e espaçosas alamedas inúmeras peregrinações de devotos, na ânsia
de se abeirarem daquele santo, para
assim cumprirem as promessas solenemente feitas em horas de indizíveis
atribulações ou nos transes dolorosos duma doença grave. Entretanto, a romaria
de S. Torcato, apesar da concorrência
assombrosa dos forasteiros, nada tem de característico ou peculiar,
destacando-se apenas pelo grande formigueiro humano que vai procurar ali o
folguedo compensador das habituais canseiras da lavoura, depois de contemplar
com acafamento próprio de uma crença inveterada os restos mumificados do santo
vimaranense. A Senhora da Peneda, porém, alapardada entre distanciadas
montanhas, cujas cristas parecem topetar nos astros, sem proporcionar aos
crentes ou aos turistas meios razoáveis de comunicação ou facilidade de
transporte, indubitavelmente exerce na religiosidade do povo uma ação magnética
superior à do consócio S. Torcato, arrastando por serranias inóspitas, por
barrancos e despenhadeiros escabrosos, e por fraguedos de perigoso acesso, a
massa anónima das aldeias galegas e minhotas. O aprazível local da romaria é
defendido por um castelo natural em que as serras parecem fazer o papel de
muralhas impermeáveis ao influxo osmótico da modernidade e civilizadora. É por
isso que, enquanto S. Torcato, nos arredores
Guimarães, nos dá a impressão duma romaria atualizada, a Senhora da
Peneda, pelo contrário, conserva como primitivas características aquelas
práticas constantes dum ascetismo grosseiro, sobejamente evidenciadas nas
exibições grotescas da crendice popular.
E é por isso que a
Peneda, não obliterando a linha tradicional das suas usanças religiosas, se nos
afigura mais interessante para quem quiser, em viagem de estudo e observação,
ajuizar das antigas costumeiras litúrgicas, fossilizadas nas populações ruraes
do Minho e da Galiza.
Quem decidiu o
autor destas linhas a afoutar-se às contingências duma caminhada morosa e
estopante para atingira a meta desejada - o santurio da Peneda - foi o
incansável engenheiro agrónomo deste distrito, Sr. Conde de Bobone, que anceia
conhecer “de visu” toda a área constitutiva da sua esfera de ação profissional
para depois falar, com os elementos fornecidos pela observação, dos serviços
agronómicos que mais convéem à região a seu cargo.
Ele, o seu amigo
António Pereira da Cunha, filho e neto de dois ilustres poetas do Minho, e eu
partimos desta vila dos Arcos de Valdevez, na tarde do dia 4 do mês corrente,
transpondo sucessivamente as freguesias de Giela, Azere, Grade e Cabana Maior, e,
depois de vaguearmos, incertos, no Alto do Mesio, já com os membros lassos e o
estômago a recordar a fábula de Menenu Agripa, fomos
saborear a conhecida hospitalidade do abade de Soajo, hospitalidade que previamente
haviarnos impetrado. Ao entrarmos no povoado principal da freguesia, vimos com
surpresa extinguirem-se as
luzernas que mais de longe se divisavam nos rústicos casebres. Com uma noite
caliginosa, a percorrer lobregos caminhos velhos, sem a cooperação de um guia
experimentado e sem uma frouxa lanterna que rasgasse uma linha de luz na
espessa escuridão noturna, talvez fosse impossível ultimar o itinerário até à residência
paroquial de Soajo se, depois de várias chamadas infrutíferas à porta duma
casa, não obtivéssemos a ansiada resposta.
- Ó mulherzinha,
venha cá ! Olhe que está aqui o administrador dos Arcos.
A portada duma janela abriu-se, enfim, e uma soajeira assomou então a
atender a interpelação dos viandantes.
- Então porque foi que vossemecês apagaram a luz quando nós nos
aproximávamos? - inquiriu curioso o sr. conde de Bobone.
- Nós -, tartamudeou indecisa a mulherzinha, - temos ouvido dizer que anda por aí tudo
revolvido...
Feita esta bronca alusão à conspirata fronteiriça e cedidas umas
lumieiras de colmaço - improvisadas fachos a produzirem mais incomodativo fumo
que benéfica luz - chegámos à residência.
Finem dedit Deus magnis
itineribus ab illo die! A afabilidade do polido pároco de Soajo e uma ceia reparadora,
naquelas alturas, indemnizaram os caminheiros dos dispêndios de energia que
uma viagem em estafados rocinantes implacavelmente exigia. Depois, custa a crer
que entre serras, onde a viação não faz progressos, os tenha feito entretanto a
culinária, proporcionando as delícias duma bem servida mesa a esfomeados
adventícios. Aquela residência foi também a nossa pousada noturna, onde o sono
reconfortante nos insuflou novos alentos para a caminhada do dia imediato. Com
efeito, na manhã seguinte, orientados por melhores guias, com o abade e regedor
de Soajo a desbravar caminhos, prosseguimos na continuação do nosso longo itinerário,
cujo percurso, sem espalhafatosas gloriolas, chega a ser um ato heróico de
resistência desportiva. Ao atravessarmos a serrania, o Sr. Conde
de Bobone preconizava a necessidade imediata de se submeterem ao regime florestal
os montes circunjacentes, arborizando-os para futura riqueza daquela região acidentada.
- Isso daria lugar
a um levantamento do povo, - atalhou o regedor do Soajo convicto.
- Onde é que nós haviamos
de ir buscar o pasto para o gado e o roço para o adubo das terras?
Então o Sr. Conde de
Bobone, mostrando mais uma vez ter sido na agronomia que a sua inteligência
especializou os seus conhecimentos científicos, começou a dizer-lhe que a arborização
se faria parcialmente, por lotes de terreno, a fim de que a freguesia se não
ressentisse da falta de montados, durante o período de proteção às plantas.
Passada a capela do
Senhora da paz e o lugar de Adrão, começamos a escalar o Alto do Miradouro.
Como eu recordei então a frase de Aníbal, quando ele exortava, ao atravessar os
Alpes, as tropas cartaginesas:
- Lembrai-vos,
soldados, que galgando estas cumeadas alpinas, vós escalais os muros da própria
Roma!
E nós também
prosseguimos, afoitos. Já da parte superior de uma encosta se defrontava,
perto, a povoação de Olelas, na Galiza, quando o abade nos referiu:
-Aqui, estiveram
descansando, extenuados pela fadiga, aqueles doze conspiradores que fugiram de Valença,
sob o comando do Marujinho... E acolá, junto daquela cruz, já se lobriga, no fundo,
o santuário da Peneda.
Com efeito, ao longe,
na garganta da serra, alvejava o anelado término da jornada.
Mas que interminável
peregrinação pelas montanhas. De Soajo ao Senhor da Paz, do Senhor da Paz a
Adrão, de Adrão a Tibo, de Tibo ao Baleiral...
sempre a nossa caravana a quilometrar distancias em alimarias de passo lento, o
único compatível com a escabrosidade daqueles caminhos, apenas trilhados nas
outras épocas do ano por bestas de carga e respetivos almocreves. Todavia,
recordando mais tarde estas dificuldades de trajeto por invias fragas, forsam
et hoec otim meminissa juvabil, como dizia Eneias, segundo a passagem de
Virgílio.
Depois do Baleiral, em três quartos de hora de caminho, atingimos a
meta desejada. Até que enfim! Entrámos ufanos num dos espaçosos largos da
Peneda. O edifício da filial do Grande Hotel dos Arcos, onde se está
confortavelmente, dá-nos a impressão de que o progresso para ali só poderia ser
remetido... em aeroplanos.
Entretanto, a multidão apinha-se, a música toca com retumbância, os
caixões de “pseudo defuntos” desfilam aos nossos olhos curiosos, outros
penitentes rastejam em ascéticas jenuflexões, e por fim a procissão do Terço,
levantando o estrondoso clamor dos fieis, evoca a Lourdes do cosmopolitismo católico.
Falta aqui um Lasserre para fazer a história da Senhora da Peneda e um Zola
para fazer a descrição da “gritaria” fervorosa dos peregrinos. Quando os
avanços da meteorologia permitirem o estudo completo das correntes atmosféricas
e quando os aeroplanos sulcarem com segurança o oceano aéreo, a Senhora da
Peneda será visitada pela gente de Lisboa e de Madrid.
Afora o templo, a Senhora possui uma loja comercial que está
aberta durante os dias festivos. Esse estabelecimento encontra-se bem provido de
caixões, mortalhas, rosários, estampas e medalhinhas. E para haver a
equiponderação dos tributos, lá está uma balança decimal onde os miraculados se
costumam ir pesar a cera e a cobre. Só falta à Senhora da Peneda um curral para
nele meter as vacas e as juntas de bois que o povo de Hespanha e de Portugal
lhe costuma levar de promessas. Estava eu a pensar nestas coisas, verificando
que cada um pagava o milagre na proporção do peso do seu corpo, quando
um padre coxo, português, se abeirou dum médico galego dirigindo-se-lhe em hespanhol.
O Hipocrates da Galiza olhou, sobranceiro, para o interlocutor e respondeu, empertigado:
- Hable usted en su lengua que ya no hace poco, pues mi idioma no es
para todos los hombres.
- Desculpe, - replicou o padre. Eu sou realmente um bruto por ter para
consigo a deferência de lhe falar na própria língua. Mas você é outro bruto por
corresponder a uma amabilidade minha com uma grosseria sua. Somos, portanto,
dois brutos.
- Bien contestado, conveio o médico de
Entrimo.
E a situação explicava-se explicava-se com bom senso e com bom humor, sem
que o génio hespanhol e português tivessem de derimir pleitos no campo da batalha.
Arcos de Val-de-Vez, Setembro de 1912."
Arcos de Val-de-Vez, Setembro de 1912."
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