Há cerca de 80 anos, é publicada num jornal
no Brasil, uma estranha história acerca do Solar do Reguengo de Melgaço. Nessa
narrativa, o escritor Júlio Dantas descreve-nos o solar nessa época e fala-nos
de uma história maldita relacionada com o local onde as chaves do solar teriam
sido enterradas, mais concretamente junto a um cipreste, situado ao lado do
casarão. Tanto quanto parece, a história é ficcional. Trata-se de um conto publicado no jornal brasileiro "Gazeta de Notícias" na sua edição de 9 de Junho de 1035. Como tal, não tem relevância histórica!
A história é a seguinte:
“História de um velho solar
Em certo
rincão do Alto Minho, a dois passos do rio que nos separa de Espanha, há um
velho solar pertencente a um dos ramos dos Castros Menezes, - solar que, como
quase todos os desta região, têm a sua história. Quando lá estive, fui vê-lo.
Atravessaram-se uns campos de milho, descendo um côrrego estreito entre latadas
verdejantes. Chega-se a um terreiro em meia laranja, onde dois leões de pedra,
com a humildade de cachorros, dormem sobre socos esverdeados de mugre. E ao fim
de uma rua lageada, sombria de parreiras, em cujas valetas, corre a água viva,
o solar surge, de súbito, diante dos nossos olhos, com o ar ao mesmo tempo
solene e carinhoso, magestoso e acolhedor, de todas as moradas fidalgas do
norte de Portugal.
Está
fechado: o aspeto é vetusto, as paredes ameaçam ruína. É uma construção maciça
dos fins do século XVII, de largos cunhais de silharia e telhados amouriscados
de quatro águas, formada por um corpo central, com o seu alpendre envidraçado,
apoiado sobre colunas de granito e por dois corpos laterais, perpendiculares ao
corpo principal, limitando um terreiro solarengo quase todo ocupado por uma
escada nobre, exterior, que dá acesso à galeria alpendrada sobre cujo lintel
repousa a pedra-de-armas dos Castros-Menezes. A ala direita, constituída em parte
pela capela, em no seu prolongamento, para as traseiras do edifício, o antigo
paço medieval, cujos restos se vêem ainda, representados por dois botaréus
possantes e por uma janela geminada ogival, que olha, como uma vigia esperta,
para as bandas de Espanha.
Em volta,
nada de particularmente interessante. Campos de milho, com o seu canastro
abençoado pela tradicional cruz de pedra na empena. Um cipreste, no terreiro
fronteiro, nota melancólica comum a muitos solares minhotos. Uma arribana em
cuja sombra se adivinham, pela grande porta aberta, manchas ruivas e buliçosas
de gado. Subi a larga escada senhorial para ver melhor a paisagem. As montanhas
longínquas, quase roxas no declinar da tarde: os pinhais imóveis e
verde-negros, as latadas e os milhos alegres por onde escorria a baba de oiro
do sol, - tudo parecia revestir-se duma serenidade virgiliana. Não se ouvia um
ruído. Impressionado pelo silêncio da natureza e pelo abandono daquele velho
paço desabitado. Ia retirar-me quando uma voz me interpelou:
- Deseja
alguma coisa?
Procurei
com o olhar a pessoa que se me dirigia. Não vi ninguém. Quando desci a escada,
um velho, vestido de negro, meio oculto na sombra, encostado a uma das grossas
colunas de granito que suportam a galeria envidraçada, olhava interrogativamente
para mim. Era um padre. Pálido, curvado, senil, por certo octogenário, a batina
no fio, a volta branca do pescoço esfarrapada, um chapéu mole, tão velho como
ele, enterrado na cabeça, o homem singular que me aparecia harmonizava-se, pelo
seu abandono, pela sua decrepitude e até pela serena dignidade da sua figura,
com o aspeto confrangedor daquele palácio em ruínas. Dirigi-me a ele, de chapéu
na mão:
- Pode
visitar-se o solar?
- Não
pode.
- Está
habitado?
-
Perderam-se as chaves há sessenta anos.
- Mas
Vossa Reverência não vive aqui?
- Que lhe
importa ao senhor a minha vida?
O proveto
sacerdote tinha razão. Eu viera perturbar, com a minha presença a paz sepulcral
daquelas ruínas, de que ele fazia parte integrante. Mas a hostilidade com o
pobre velho me recebeu não conseguiu senão aumentar a minha curiosidade a seu
respeito. Tirei um cigarro e ofereci-lhe a cigarreira aberta. Pintou-se na
fisionomia uma tal expressão de júbilo, e com tanta avidez a sua mão decrepita,
incerta, amarela, como um pergaminho antigo, avançou para os cigarros que –
confesso – me comoveu.
Dei-lhe
lume. O padre sorveu de olhos fechados, voluptuosamente, as primeiras fumaças.
Depois, tirou o chapéu, e humilde, curvando a cabeça – um crânio pequeno,
redondo, cujos cabelos rasos, duma brancura resplandecente, davam a impressão
de um solideu de prata murmurou:
-
Obrigado. Já não fumava há dois dias. O tabaco está muito caro.
Daqui a
pouco, eu e o padre Matheus – era o seu nome – sentados num poial de pedra,
conversávamos mão a mão, como dois amigos. Contou-me ele, então que vivia ali,
nas dependências da capela, por favor dos caseiros da quinta. Havia dois anos,
ainda dizia missa. Depois, os últimos paramentos podres da humidade do arcaz,
foram-se desfazendo aos poucos, os caseiros precisaram da capela para
enceleirar o milho porque não cabia no espeigueiro, as pernas inchadas não lhe
permitiam celebrar o santo sacrifício e – acrescentou o pobre velho – para ali
se entretinha, agora, a ensinar doutrina e a ver qual das duas ruínas desabava
primeiro, se ele, se o solar.
- Mas, de
quem é este palácio – perguntei ao padre Matheus.
- Era da
senhora morgada do Couto de Ruivães, Dona Angélica de castro Menezes de Sousa e
Vasconcellos, que Deus haja em sua santa glória. Está desabitado desde que ela
morreu.
- Há
quanto tempo?
- Há
sessenta e três anos. Tinha eu vinte e dois anos, e era, havia um ano, capelão
da casa.
- Mas a
senhora morgada não deixou descendentes?
- Uns
primos de Braga. Logo que ela morreu, vieram aqui, com uma escolta de criados
armados armados, levaram em carros de bois e em azémolas toda a mobília. Pratas
e alfaias, e não voltaram. Deram depois, de arrendamento, a quinta a um antigo
feitor.
- E o
feitor, onde mora?
- Morreu.
Morava numas casas, além adiante. No solar, nunca mais ninguém entrou, há
sessenta anos.
-
Apareciam almas do outro mundo?
- Não
senhor. Perderam-se as chaves.
- E, há
sessenta anos, ainda não tiveram tempo para mandar fazer outras?
Padre
Matheus, sentado no poial, defronte de mim, olhou-me longamente. A sua face
pergaminhada pareceu-me mais pálida ainda. As mãos tremiam-lhe sobre os
joelhos. Tirou do bolso um lenço vermelho de Alcobaça, passou-o pela testa onde
borbulhava o suor, sacudiu a cabeça, como a afugentar um maus pensamento, e,
depois de um demorado silêncio, disse-me encolhendo os ombros:
Há coisas
que parecem mais fáceis do que realmente são. O senho vê ali aquele cipreste?
- Vejo.
- Pois
dizem que as chaves estão enterradas ali.
- Nesse
caso, porque não as desenterraram?
- Porque
quem tentar desenterrá-las, morre.
Não pude
deixar de sorrir. A convicção com que aquele sacerdote octagenário, que devia
conhecer a vida, se fazia eco dessa lenda ingénua, chegou a enternecer-me. A
intenção dos herdeiros da morgada de Ruivães, ao inventar a história das
chaves, era evidente. Não lhe convindo que alguém ali fosse, ou porque lá
deixaram alfaias que não puderam transportar, ou porque suspeitavam de que as
paredes, ou debaixo dos soalhos, houvesse tesouros escondidos, os primos de
Braga tinham posto de sentinela ao solar o mais vigilante de todos os guardas:
o medo da morte.
O senhor
não acredita, - continuou o padre Matheus.
- Mas é
verdade. Dois, vi-os eu cair mortos, como se os fulminasse a ira de Deus. Um
foi o feitor Justino. Parece que o estou ver. Honrado, valente como as armas! A
mulher queria meter aquela porta dentro, e ele não deixou.
- Não. A
porta dos fidalgos não se arromba”.
Mais
tarde, começou a correr que as chaves estavam enterradas ali, ao pé do
cipreste. O feitor ria-se, como o senhor. Um dia, perguntou-me ele:
- Padre
Matheus, porque não há-de a gente ver?
Despiu a
jaleca, remangou duma enxada, e quando ia descarregar o primeiro golpe na terra
(já se passaram sessenta anos e ainda parece que vejo faiscar o ferro, ao sol)
caiu de borco, de braços estendidos, como se o tivesse varado uma bala.
- Alguma
congestão, naturalmente.
- Só Deus
o sabe. O certo é que, durante muitos anos, ninguém mais se atreveu, sequer, a
pisar a terra em volta daquela árvore de morte. Aquele chão era sagrado. Uma tarde,
porém, parou aqui um almocreve, homem ruivo, mal encarado, que fazia pela
serra, a recovagem do Lindoso, e ouviu falar nas riquezas do solar e nas chaves
enterradas. Contra o seu costume, porque nunca se albergava cá, pediu pousada
aos criados nessa noite. Na manhã seguinte, foram dar com ele morto, ao pé do
cipreste, com uma sachola nas mãos, já meio devorado pelos cães. Bem feito, que era um ladrão! Estes foram os que
eu vi. Mas houve outros. Um deles – moço de lavoura do feitor novo – ainda não
se cumpriram dez anos sobre a sua morte. O feitor queria o paço todo para
celeiro, mas não se atrevia a procurar, por suas mãos, os chaveirões na terra.
- Vou lá
eu, patrão! – gritou o moço, travando da enxada. Estava ali, ao pé da arribana.
Mal deu dois passos para a árvore , caiu por terra em convulsões, que parecia
possesso do demónio. - Deus me perdoe! – e, dois dias andados, dava o corpo à
terra, no adro de Paderne.
Ora o
senhor quer ver o o solar, não é verdade? Pois bem. Vá buscar as chaves, onde
elas estão, se é capaz.
Ri-me,
encolhi os ombros com a fácil superioridade das pessoas que não acreditam
nestas coisas, dei outro cigarro ao padre Matheus, e mudamos de assunto. Mas –
confesso-o – apesar de ter a certeza de que, ao pé daquele cipreste, não se encontravam
nenhumas chaves, eu ainda hesitaria antes de desbravar a terra, para as
procurar.”
Fonte: Jornal
“Gazeta de Notícias”, edição de 9 de Junho de 1935.
Sem comentários:
Enviar um comentário