Em 1932, na publicação brasileira "Revista Feminina", o escritor Júlio Dantas publicou um conto cujo enredo se passa em Castro Laboreiro e onde uma das personagens recorda uma visita a terras castrejas quarenta anos antes. A história tem o título "Uma mulher" e diz assim...
"Uma Mulher
Era
quase noite quando o velho Pedro Lindoso e eu, depois de duas longas
horas a cavalo pela serra, chegámos a Castro Laboreiro. O meu
provecto amigo, apesar dos seus setenta e três anos feitos, firme
na montada como um rapaz, mantinha com aprumo as suas tradições de
marialva, mestre de picaria, saboneiro e espotrejador dos melhores do
seu tempo. Uma leve aragem fazia ramalhar, num cicio brando, a fronde
dos castanheiros patriarcas. O sol, como um disco de cobre em brasa,
rolava sobre o friso roxo do horizonte.
Das
bandas de Hespanha chegava, às lufadas, um cheiro acre de mato
queimado.
— Já
não vinha aqui há quarenta anos! — disse Lindoso, numa expressão
de melancolia que contrastava com o seu feitio ordinariamente jovial.
Na
volta duma castinceira brava, as primeiras casas assomaram cabrejando
na encosta, toscas, cobertas de colmo hirsuto, com as suas
características varandas debruçadas sobre bárbaros pilares de
pedra e as suas lumieiras baixas donde se exalava um bafo morno de
curral. Aproximei o cavalo duma das frestas: uma luz de candeia
bruxoleava; junto duma mancha ruiva e buliçosa de gado, numa tarimba
suspensa, três vultos humanos roncavam, de borco. Atada pelo
cabresto a um argolão de ferro chumbado nos pilares de granito, cada
casa tinha, espojada à porta, a sua cavalgadura, inquieta sob a
mordedura dos tabões e dos moscardos. Aqui e além, uma figura
bronca de castrejo, como uma pincelada negra, escoava-se na sombra.
Dir-se-ia que atravessávamos um povoado medieval.
— Onde
é a estalagem? — perguntou o meu companheiro a uma mulher de
capeirete negro que caminhava ao nosso encontro atrás dum porco
gelatinoso e enorme.
— Mais
além, na casa do arco.
— Ainda
é na casa do arco?
Continuámos
a marcha. Descobria-se já, para os lados de Hespanha, o clarão da
queimada. Da Sutra banda, vista através da renda negra de um pinhal,
a última palpitação luminosa do ocaso tinha uma vaga tonalidade de
ouro verde. Começavam a ouvir-se uivar e latir os cães, os fortes
molossos de Castro Laboreiro, cruzados de cadela e de lobo. Coágulos
espessos de sombra davam-nos a impressão inquietante de que
atravancavam o caminho. Por fim, parámos diante duma casa maior do
que aquelas que tínhamos visto até ali, com telhado amouriscado em
vez de cobertura de colmo, uma varanda mais larga sobre cachorros, e
um arco de grosseiras aduelas dando acesso a um pátio onde, numa
promiscuidade selvagem, à luz duma lanterna, dormiam homens e gado.
— É
aqui que nós ficámos? — perguntei eu, com manifesto
descontentamento.
— Se
isto ainda estiver como há quarenta anos, hás-de ficar melhor do
que julgas, — disse o velho apeando-se do seu ruço rodado.
Daí
a pouco, amantados os cavalos, eramos conduzidos, a pedido do meu
companheiro, ao melhor quarto da estalagem, cujas portas só se
abriam, de anos a anos, para receber um hóspede de qualidade. Depois
do que vira no pátio, esperava tudo, confesso, menos aquela relativa
opulência.
Era
uma quadra ampla, caiada, com os cantos, junto à sanca, enegrecidos
de teias de aranha, o soalho mal tratado e sujo, e, contrastando com
este
abandono, dois leitos que podiam considerar-se ricos: um, alto,
largo, de bilros, montado sobre estrado de honra de dois degraus e
coberto duma colcha antiga de damasco vermelho; o outro, simples
barra conventual, com pés de bicho e espaldar entalhado onde se viam
as armas de São Bento, peça talvez proveniente do próximo mosteiro
de Fiães. Tinha sido armada em tempo (aquela alcova — dizia-se —
para lá .dormir o senhor arcebispo de Braga, em visita pastoral.
Sentámo-nos em duas tripeças, abancados a uma mesa tosca de
castanho, sobre a qual ardiam os três lumes dum candeeiro de latão.
Pedro Lindoso, depois de encomendar ao moço da hospedaria uma ceia
frugal de caldo de galinha e broa, fechou a porta. Quando nos
encontrámos sós, disse-me!, depois de um momento de concentração:
— Há
quarenta anos, neste mesmo quarto, iam-me matando a tiro de clavina.
— A
ti?
— Por
causa duma mulher. Por pouco não fiquei estendido, como um cão.
Olhei
o velho Lindoso. A sua face rapada, dura, de um tom forte de terra de
Siena, contrair-se. Os seus olhos brilhavam. Enrolou um cigarro,
acendeu-o, levantou-se, e a passear pela casa, as esporas de ferro
de Guimarães tilintando nas sapatorras, contou-me aquela aventura
dos seus tempos de rapaz. Tinha pouco mais de trinta anos, em 1892,
viera a Castro Laboreiro, com duas pistolas nos coldres e um saco de
libras na bolsa do arção, concluir certo negocio de compra de umas
terras que entestavam com a Hespanha. O vendedor, um castrejo rico,
preparara as coisas para que o fidalgo fosse bem aposentado,
sendo-lhe feita a cama no "quarto do arcebispo", onde já
tinham dormido — se era verdadeira a fama — além do antistite,
um ministro de Estado e outras grandes personagens. A estalagem do
arco era já então o que é agora com a diferença dos cães que há
quarenta anos formavam uma verdadeira matilha, ululante e feroz,
presa de dia aos argolões de ferro do pátio e solta de noite para a
guarda da casa. O próprio "quarto do arcebispo" nada
mudara em quase meio século, conservando os dois leitos, com as suas
colchas de damasco, a mesa de castanho em que havia então um
candelabro de prata mareada de dois lumes, e as teias de aranha
pojando aos quatro cantos da alcova, — embora presumivelmente,
quarenta anos antes, as aranhas devessem ser outras. O estalajadeiro,
homem ruivo, gigantesco, mal encarado como os cães, perguntou ao
hóspede o que queria para a ceia e disse-lhe que mandaria a filha
servi-lo. Assim foi. Passado pouco tempo (com que comoção ele o
recordava!) bateram de mansinho à porta, e Genoveva apareceu. Trazia
uma toalha branca e uma malga de caldo nas mãos. Pedro Lindoso ficou
tão deslumbrado a olha-la, que não atinou com uma só palavra para
lhe dizer. Era uma maravilha. Não o tipo vulgar das belezas
crassamente plebeias, mas a castreja de raça pura, tipo delgado e
esbelto, pelle suave tocada de tons doirados como um marfim antigo,
olhos enormes que pareciam, prolongar-se num traço negro para as
fontes, mãos delicadas e brancas, e os peitos fortes arfando sob o
gracioso coletinho encarnado que as mulheres da serra então usavam e
cuja moda hoje se perdeu.
Ninguém
a diria filha daquele pai. Enquanto Genoveva punha a mesa, olharam-se
ambos: ele em êxtase, ela a furto, perturbada. Quando começou a
comer, Pedro pediu-lhe que se assentasse ao seu lado, ela sorriu e
recusou. Naquele silêncio feito de inexplicável ansiedade, cada um
deles tinha a impressão de que sentia bater o coração do outro. A
única janela do quarto, debruçada sobre o pátio interior — então
cheio de fardos de palha — estava aberta. O vento entrava às
lufadas. Como a toalha se levantasse, enfunada pela aragem a filha do
hospedeiro apressou-se a compo-la, e esse movimento aproximou-a de
Pedro.
De
repente, uma lufada mais áspera apagou a vela acesa do candelabro de
prata. Sem saber como, na escuridão, Genoveva encontrou-se nos
braços do fidalgo, debateu-se, ia sucumbir sufocada pela boca
ardente desse rapaz de trinta anos, mas resistiu, libertou-se, e
desapareceu, descendo de escantilhão a escaleira até ao pátio. Foi
o estalajadeiro que veio acender a luz e acabar de servir a ceia. Os
movimentos do homem eram bruscos, o olhar desconfiado, e as suas mãos
possantes, eriçadas de pelos ruivos, tinham atitudes de pata de
fera. Pedro deitou-se mas, excitado e receoso, não ponde dormir. A
sensação desse belo corpo que por instantes palpitara de encontro
ao seu, e, mais ainda, o temor de qualquer surpresa, porque o quarto
não tinha chave e o estalajadeiro. parecera-lhe hostil, não o
deixaram conciliar o sono. Atento ao menor ruído, apalpava de vez em
quando as pistolas escondidas sob o cabeçal do leito, e, de luz
acesa, tinha os olhos fitos na porta, barricada com as duas tripeças,
uma sobre a outra, para darem sinal. A certa altura, pareceu-lhe que
alguém subia a escada. Duas tábuas rangeram; sentia-se,
distintamente, o resfolegar duma respiração opressa. Pedro aperrou
uma pistola, e gritou: — "Quem está ahi?"
Ferrolhou
a aldabra, a porta abriu-se: era Genoveva, descalça, quase nua, um
xaile preto pelos ombros. Mas as duas tripeças caíram: no silêncio
da noite, o ruído atroou a casa; ladraram infernalmente os cães
soltos no pátio; e, daí a pouco, ouviu-se a voz do estalajadeiro,
bradando:
— "Genoveva!
Genoveva!" Abraçada ao fidalgo, a tremer, a pobre moça, que
ele, no primeiro momento, suspeitara de traição, balbuciava numa
súplica: — "Fuja, que o meu pai mata-o!" Mas fugir, por
onde? Descer a escada era cair nas mãos do estalajadeiro; saltar
pela janela, sobre os fardos de palha, era ser devorado pelos cães,
piores do que lobos. Foi então que Genoveva teve uma inspiração
salvadora. Quando já seu pai subia a escada, ela atirou o xaile pela
janela e precipitou-se dum salto.
— "Que
é de minha filha?" — uivou o estalajadeior, assomando à
porta, de clavina na mão. Mas Genoveva respondeu-lhe, de baixo, numa
voz clara: — "Que quer vocemecê, pai?" o homem deixou
cair a arma, já apontada ao peito do hóspede, e murmurou, humilde:
— "Queira
perdoar. Cuidei que a minha filha estava aqui!"
— Como
tu vês — concluiu o velho Lindoso, sentando-se a enrolar outro
cigarro — neste mesmo quarto de estalagem, há quarenta anos, a
mesma mulher me ia perdendo e me salvou! — Demoraste-te ainda?
— No
dia seguinte, de madrugada, fechei o negócio com o castreja, montei
a cavado, e, escoltado por dois criados que ele mandou armar, pus-me
a caminho.
— E
Genoveva?
— Nunca
mais a vi.
— Nem
soubeste dela?
— Nem
soube dela. Ah. Meu amigo! Quem pudera, mesmo com perigo de morte,
mesmo com uma clavina aperrada aos peitos, voltar quarenta anos
atrás!
Nisto,
bateram, levemente à porta do quarto. Uma velha entrou, com uma
toalha branca e uma malga vidrada de Darque, onde o caldo fumegava.
Tinha
a cabeça branca, o corpo franzino envolto no capeirete de lã negra
das castrejas, e uns olhos grandes, escuros, porventura restos de
antiga formosura.
Pedro
fitou-a, num movimento de interrogativa surpresa. Depois, enquanto a
mulher estendia a toalha sobre a pequena mesa de castanho, eu e o meu
companheiro trocámos um olhar cuja significação só nós podíamos
ter compreendido. — Vive nesta casa há muito tempo? — perguntou
à castreja Pedro Lindoso, cuja voz tremia de comoção.
— Nasci
aqui.
— Como
se chama?
— Genoveva.
— Não
se lembra de mim?
A
mulher encarou o fidalgo, que se levantara, olhou-o, tornou a
olhal-o, e respondeu, com uma expressão de naturalidade que nos
gelou:
— Não
tenho ideia, meu senhor.
Quando
Genoveva saiu, Pedro Lindoso murmurou apenas, baixando a cabeça,
para que eu não lhe visse os olhos rasos de lágrimas:
— Ainda
tu dizes, meu amigo, que as mulheres têm a memória do coração!"
TEXTO DE JÚLIO
DANTAS.
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