sábado, 18 de setembro de 2021

A Quinta do Reguengo e a sua ligação à Misericórdia de Melgaço



O nome "Quinta do Reguengo" deriva do facto de outrora esta quinta ter pertencido ao rei, tendo em conta que o termo reguengo significa exatamente “terra que é propriedade do rei”.

A história desta quinta vem de longe e há muitos séculos que ali se produzem os mais variados produtos agrícolas, entre os quais o vinho. Tendo sido propriedade de vários senhores feudais, era ali que os habitantes de Melgaço pagavam a dízima de tudo o que produziam. Daí a dimensão dos lagares e dos canastros existentes na quinta, de dimensões bem acima do necessário para guardar e transformar o que a Quinta produzia.

O solar encontra-se localizado nos terrenos onde existiu em tempos antigos a chamada “Quinta da Várzea”, que pertenceu aos Castros, alcaides-mores de Melgaço e Castro Laboreiro.

A designação de “Quinta da Várzea” já consta no foral de D. Manuel I a Melgaço concedido em 1513. Na época é referida como uma grande e boa propriedade de terreno fértil, belamente situada na Juradia da Várzea e no termo de Melgaço. No dito foral, podemos ler “Primeyramente tem a Coroa Real … - E na freguysia de Varzea tem ora o dito pero de crasto a quintãa da Varzea q he Reguenga. E asy as vinhas e herdades della que soyam seer dous casaaes reguegos. E quando se deer a lavradores nam ficam obrigada ao dito reguengo a prazer das partes por aquyllo que se cõcertarem sem ficar a dita quyntão posta e outra obrigaçam da paga do reguengo por seer fora dos reguegyeyros della.

Esta quinta era uma propriedade de terreno fértil e foi propriedade de várias gerações da família fidalga dos Castros de Melgaço.

Todavia, em 24 de Março de 1606, Inácio Velho de Araújo, um homem de negócios melgacense regressado da Índia, onde tinha amealhado considerável fortuna, celebrou em Lisboa um contrato de compra da Quinta do Reguengo, parte de terras livres e parte constituída em morgado. Comprou-a na sua totalidade estando ela já aforada a Fernando de Castro e esposa D. Ana de Menezes, mordomos de D. Catarina, mulher de D. João VI, Duque de Bragança. Uma parte da propriedade pertencia ao filho Jerónimo de Castro o qual levou a tribunal a questão da propriedade.

O negócio fez-se por “um conto e sinquoenta mil reis, preço desta venda o não reseberam [na frente do tabelião, entenda-se] mas confessaram o tinham em si resebido pella dita maneira em moedas de tostois e reis de prata, moeda corrente neste Reino delle comprador e estavam paguos e entregues a sua vontade do preço desta venda sem erro nem falta alguma e assim o confessaram portanto retificam a dita quitaçam e a dam como derampella maneira atras referida a elle comprador e a seus herdeiros e declararam elles vendedores que sendo caso que elles nam aiam a provisam de sua majestade dentro nos dittos dous anos para haver effeito a parte da dita quinta que está tida por de morgado elle Inácio Velho tome posse das ditas herdades na forma desta escriptura pera haver nella a ditta parte e havendo elles vendedores a dita provisam a qualquer tempo que seja ou seus herdeiros elle comprador e seus herdeiros sejam obrigados a largarem a parte que houverem das dittas herdades em satisfaçam da ditta parte de morgado e haveram a parte de morgado como se declara nesta escriptura e lhe pertence conforme a ella e declararam mais que o pam de foro de Sam Visenso e o Cotto e Casais de Sam Marcos nam entram nesta venda mas o mais si como atras fica declarado...”

Inácio de Araújo, o Velho, a quem muitos dos antepassados da Misericórdia, a principiar pelos conterrâneos, deram Velho como apelido e não como opositor a Júnior, principiando por fazer vários legados no testamento, acabando por instituir a Santa Casa da Misericórdia de Melgaço como sua herdeira. Impôs-lhe, porém, o encargo de continuar a questão judicial que, por causa da parte da quinta havida por de morgado, trazia nos tribunais com Jerónimo de Castro, filho daquele alcaide-mor, se não estivesse ela finda quando a morte levasse o testador.

Inácio Velho de Araújo foi, nas palavras de ESTEVES, A. (1957), “o primeiro grande benemérito da Santa Casa e o seu testamento ainda hoje constitui uma sublime lição”. (…) É pois, esta a primeira voz de -Alto!- a fazer-se ouvir nestes muitos anos da História da Misericórdia e por que fica bem e agrada ao nosso coração reconhecer as virtudes de Araújo Velho, meditemos todos sobre o alcance desta sublime lição de amor à pobreza, seja do nosso sangue, seja do sangue dos outros.

O referido diferendo judicial entre Jerónimo de Castro e a Santa Casa da Misericórdia de Melgaço durou ainda muitos anos e porque em Lisboa devia estar em julgamento qualquer incidente, a Misericórdia em 1625, sendo provedor o Lic. Reverendo Manuel Nunes da Costa, “mandou lá um próprio, João Pereiro, desta vila e… analfabeto” (ESTEVES, A., 1957). Pode ler-se nos registos nestes termos: “E se lhe encomendou quem fizesse e requeresse e solicitasse a justiça desta Casa como bom cristam e hirmam que era desta Casa de modo que por falta de deligencia não se perca a justiça desta Casa...”. Devia ser, de facto, um incidente processual, pois quando em 28 de Outubro de 1629, o Provedor Gregório de Castro, de Remoães, reuniu a Mesa, tendo deixado assente o seguinte: “porcoanto era partida a pellação do feito que se tratou nesta vila com Jerónimo de Castro sobre a Quinta da Bárzia de que foi escrivão Gonçalo Roiz [Rodrigues] de Araújo para a subpllicação da cidade de Lixboa para onde foi… era necessário mandar um próprio, homem de consideração e de agencia que vá solicitar por esta Casa a justiça dela no caso da ditta appelação e acordaram de mandar a Ds [Domingos] Esteves....

O tal Domingos Esteves foi para Lisboa, deu notícias do estado do processo, disse das passagens sucessivas para as mãos dos três juízes julgadores, pediu dinheiro e que o mandassem vir embora, porque a demanda corria devagar. De cá, da Misericórdia de Melgaço, mandaram-no ficar em Lisboa até decisão final e ele obedeceu. Apresentou-se à Mesa da Misericórdia em 23 de Junho de 1630 com a certidão da sentença “contra a Santa Casa”. Nesse mesmo dia, pediu liquidação do seu salário correspondente “cento e noventa e sete dias de ida, vinda e estada que em todos se monta vinte e quatro mil reis” e como era seu manifesto desejo, logo lhe foi pago.

Contudo, a querela estava longe de estar resolvida e demoraria mais dez anos até o assunto estar fechado. De facto, a questão judicial só foi liquidada em Melgaço em 1 de Maio de 1640 tendo ficado assente que “neste mesmo dia apareceu presente o Sr. Jeronimo de Castro morador na cidade de Lisboa, fidalgo da Casa de Sua Mgde. [Majestade] hora estante nesta dita vila pello coal foi ditto que porcoanto elle tinha snça. [sentença] contra esta Santa Casa da Misericórdia da Subplicação da cidade de Lisboa de parte da quinta parte diguo da parte da Quinta da Barzea em que estava condenada em certa cantia de fruitos e custas vencidas athe este ano de seis ctos. e corenta [1640] e por achar e ter informação que a ditta Santa Casa era pobre e não havia por onde se pagassem os ditos fruitos e custas vencidas athe este ditto ano de seis ctos. e corenta pello que pellos ditos respeitos e serviço de Deos nosso senhor lha fazia serviço a dita Santa Casa de lhe perdoar como de feito loguo lhe perdoou deste dia para todo o sempre jamais os dittos fruitos e custas que se achassem ella dever por qualquer via que fossem feitas e sobmente entraria a colher os fruitos da parte que lhe pertencer o anno vindouro de seis ctos. E corenta e hum [1641] e assinou aqui nas casas de António Pinheiro onde estava pousado...”

Não obstante se perder esta questão judicial, a parte da Quinta do Reguengo ou da Várzea ficou no acervo dos bens da Misericórdia, que a foi trabalhando pelos seus caseiros e a vendeu em 29 de Setembro de 1675. A venda fez-se por quinhentos e vinte mil réis e um foro de oito lampreias, que passava sobre o naceiro da Serpente da Pedrosa por dez mil réis.

O comprador da quinta foi o capitão Agostinho Soares de Castro que era cavaleiro professo na Ordem de Cristo e “capitão de cavalos e coirassos”, “tendo sido o primeiro Senhor da Casa e Quinta do Reguengo, situada na Juradia da Várzea, termo de Melgaço” (ESTEVES, A., 1989).

Por seu pai, Miguel de Castro Soares Azevedo, primeiro senhor da Casa da Granja, sita junto da Ponte da Folia, na freguesia de Remoães, e provedor da Santa Casa da Misericórdia da vila de Melgaço em 1629, descendia dos nobres Castros, alcaides-mor de Melgaço, desde que em tal cargo D. João I investiu Diogo Gonçalves de Castro.

O capitão Agostinho de Castro era neto de Tristão de Castro Azevedo, abade da freguesia de Rouças, tendo sido também provedor da Santa Casa da Misericórdia de Melgaço em 1591, ano em que deu a avultada esmola de quatro mil réis para a pintura de retábulo da igreja da confraria melgacense.

Foi depois da compra da quinta à Misericórdia melgacense que o capitão Agostinho Soares de Castro mandou construir este bonito solar que ainda hoje podemos contemplar.

Sabemos que em 1759 morava lá Agostinho Soares de Castro, provavelmente filho do capitão com o mesmo nome anteriormente citado, juntamente com a sua esposa Benta António da Silva Sottomayor (ROCHA, J., 2009).

Entretanto, em 12 de Novembro de 1766, estala na Santa Casa da Misericórdia de Melgaço, uma onda de críticas à venda desta Quinta do Reguengo, concretizada quase um século antes. Segundo ESTEVES, A. (1957), essas críticas eram completamente infundadas e extemporâneas. As críticas aparecem descritas numa carta achada num altar da igreja e dirigida ao provedor e mais irmãos da mesa. Mas “toda a gente sabia encontrar-se na lei então vigente a obrigação de a vender e no livro dos acórdãos do tempo a clara prova da legalidade do meio empregado para a alienação daqueles prédios”. (idem)

Temos notícia que em 1868, a quinta e o solar pertenciam a José de Sá Sottomaior, antigo presidente da Câmara Municipal.

Atualmente, o solar alberga um hotel rural de elevada qualidade e na quinta produz-se um excelente vinho alvarinho. O solar, que ainda hoje é admirado na sua traça primitiva, espaçosa, elegante, em forma de U, com galeria para o sul e escadas bem lançadas a ladeá-la. À esquerda do observador ostenta-se o brasão de armas do fidalgo e à direita o de um dos últimos morgados.

O mesmo encontra-se inserido em meio rural, e enquadrado por grandes vinhedos e precedido de portal com vãos abertos, estando o central ladeado de jambas pilastradas sobre as quais assentam dois leões esculpidos. É construído em cantaria de granito rebocada e pintada a branco, exceto cunhais, cornijas, molduras e ornamentos, sacadas, galeria e escadaria que apresentam pedra à vista.


4 comentários:

  1. Boas.
    Actualmente a quinta da Várzea fica situada nos limites da vila de Melgaço entre a vila e Galvão (prado) foi cortada ao meio pela estrada que vai para o centro de estágio.
    Curiosamente, actualmente é da minha família.

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    1. Olá Marco. A Quinta da Várzea a que se refere que diz pertencer à sua família é uma outra quinta com o mesmo nome mas que não tem que ver com a antiga Quinta da Várzea. Esta assim se chamava por se localizar na primitiva Juradia da Várzea, que se estendia desde o sítio da Várzea, junto ao Peso, até Remoães.

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  2. A quinta do Reguengo pelo que sempre ouvi falar era a Quinta da Vessada

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    1. Desconheço essa informação. A quinta era designada de Quinta da Várzea, conforme se diz no artigo e vem referido no foral manuelino de 1513.

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