sábado, 3 de junho de 2023

O caso das crianças da Áustria acolhidas em Melgaço depois da Segunda Guerra Mundial



 

Poucos, entre os vivos, se lembrarão das crianças da Áustria que foram acolhidas em Melgaço, depois da Segunda Guerra Mundial, em 1948. 

Temos, antes de mais, que contextualizar este episódio da nossa História contemporânea que envolveu também a nossa terra. A Áustria foi um dos países mais destruídos durante o conflito. Temos que ter em conta que este país do centro da Europa foi anexado pela Alemanha nazi em 1938, antes do início da guerra. Assim, durante o conflito, o seu território foi palco de intensos combates e bombardeamentos por ambas as partes e acabou ocupada pelos aliados no final da guerra. Todavia, o país, como outros da região, ficou com as suas infraestruturas bastante destruídas, a sua economia paralisada e as condições de vida da sua população eram extremamente delicadas. 

Posteriormente, depois do fim da guerra, foi posto em prática um ambicioso programa de acolhimento temporário de crianças austríacas, entre outros, noutros países da Europa. Com o país da Europa central profundamente afetado pelas consequências da guerra, Portugal abriu as portas a crianças destas orgens, que para cá vieram passar temporadas junto de famílias portuguesas. No nosso país, o programa de acolhimento foi coordenado pela Caritas. 

Na totalidade, terão sido mais de 5500 crianças austríacas que, entre 1947 e 1958, foram acolhidas por famílias e instituições portuguesas no quadro de uma ação da Cáritas, conforme já aludimos. Escapando, assim, durante algum tempo, à miséria de uma pátria devastada pela guerra, encontraram em Portugal guarida e afeto. Uma vez em Portugal, os pequenos austríacos, que pouco mais possuíam que a roupa que vestiam, foram entregues às suas famílias anfitriãs. Muitas crianças regressaram, mas outras ficaram, tornando-se portuguesas.

Os contactos calorosos entre as "crianças Cáritas", entretanto adultas, e as "suas famílias portuguesas" perduraram ao longo das décadas e das gerações, constituindo uma forte corrente de amizade entre a Áustria e Portugal.  

Em Melgaço, foram acolhidas quatro crianças daquele país e chegaram à terra em Abril de 1948. Na edição da “Voz de Melgaço” de um de Maio desse ano, podemos ler a seguinte notícia: “No passado sábado, dia 17 do corrente, chegaram a esta Vila quatro crianças austríacas (duas de cada sexo) das 500 que vieram para Lisboa, as quais vêm passar uma temporada de sossego e restabelecimento ao nosso país visto que a Áustria como muitas outras nações estar ocupada e passar muitas privações e maus bocados. São todas muito interessantes encantadoras e traquinas. Mostram grande aproveitamento físico, intelectual e religioso apesar de virem famintas são o encanto das famílias que as receberam assim como dos outros. Pena é que haja tão pouco quem as compreenda. Ainda assim, temos alguém.” 

Nas semanas seguintes, na edição de 15 de Maio de 1948, contava-nos o mesmo periódico que “Continuam de saúde e muito satisfeitas as crianças austríacas hospedadas aqui. Já têm melhor cor e muito mais peso. Têm boa constituição, mas vinham mal alimentadas devido às privações por que passam esses países da Europa”. 

Em Julho deste ano, Melgaço e estas quatro crianças austríacas tiveram uma visita ilustre, tal como nos conta a imprensa local: “Também há dias esteve aqui, em visita às crianças austríacas, Sua Alteza Real a Princesa do Liechtenstein, que foi muito bem impressionada com o bom acolhimento prestado às vítimas da guerra”.

A permanência destas crianças em Melgaço prolongou-se até inícios de Outubro desse ano de 1948. Nessa altura, as famílias de acolhimento e o bom povo da vila de Melgaço se despediram destas quatro crianças, de acordo com o noticiado na Voz de Melgaço de 15 de Outubro do mesmo ano: “No dia cinco do corrente, retiraram para a sua pátria as quatro criancinhas austríacas, que durante seis meses foram hospedadas em quatro das melhores famílias desta vila. Foram elas; Sr. Dr. João de B. Durães, Sr. Carlos R. Lima, D. Deolinda A. P.a Carneiro (em sucessão de sua falecida filha Maria A. C. Esteves), e a Sra. D. Maria Teresa Alves. 

Todas elas trataram as crianças a primor; nada lhes faltou desde o alimento (o mais necessário para elas, que vinham famintas) ao vestuário e à educação. Transformaram-se completamente. 

Quem as viu à chegada em Abril e quem as viu à partida! 

Que transformação! É para ver quanto vale o cuidado e o carinho aliados a uma constituição robusta. 

Que todos aprendam a cuidar das crianças com se deve e que todos os qu podem melhor, vão em socorro dos que não podem. 

Muita gente assistiu à partida. Viam-se lágrimas em muitos olhos, pois as crianças eram muito simpáticas, apesar da sua turbulência. Também elas partiram cheias de saudades da nossa terra, que as encantou…. Acompanharam-nas até Viana o Rev. Pároco, e e até ao Porto os Srs. Dr. Durães e Carlos Lima. À maneira das andorinhas, foi engrossando pelo caminho a caravana infantil até se juntarem todas em Fátima, a implorar com a sua oração inocente, a paz para o mundo e proteção para as suas pátrias. 

Daí partiram em comboios especiais para França e Áustria... 

A última referência às crianças da Áustria em Melgaço data de Novembro de 1948 na edição de 1 desse mês e ano na “Voz de Melgaço”: “Andorinhas que voaram pela nossa terra - Lá se foram as belas criancinhas austríacas que alegraram a nossa terra durante alguns meses. 

Lá se foram... 

Quais andorinhas que poisam nos umbrais das nossas casas e nos deixam, quando da abalada, as saudades de tão meiga e alegre companhia, assim as crianças austríacas que nos trouxeram a beleza dos jardins de Viena, a graça das águas do Danúbio e a vida daquela majestosa cidade. 

Quanto sofreram antes de chegarem à nossa terra!... 

O que terão de sofrer, depois de haverem alcançado a saudosa e querida Pátria de Strauss e de Dolfuss (…) 

Vimo-las partir: foram andorinhas que voaram pela nossa aterra... 

Que Deus as acompanhe. 

Recentemente, durante a pandemia, a Áustria ofereceu-se para acolher doentes de covid-19 de Portugal, para ajudar o nosso país a lidar com a pandemia. No passado, os papéis estiveram invertidos, quando Portugal acolheu milhares de crianças austríacas a recuperar dos traumas e problemas deixados pela Segunda Guerra Mundial.

Melgaço, como noutros momentos, esteve do lado certo da História!... 


Sem comentários:

Enviar um comentário