segunda-feira, 7 de julho de 2025

São Paio (Melgaço) e o antigo culto à "Senhora da Raposeira"

 



Ler os textos do Sr. Manuel Igrejas, ao longo de largos anos na “Voz de Melgaço, leva-nos em viagens ao passado desta terra, à procura das estórias que fazem um pouco da História de Melgaço do século passado.  

Entre assuntos mais sérios, por vezes as suas estórias contavam factos um pouco insólitos como este que escreveu para a “Voz de Melgaço”, na sua edição de 15 de Outubro de 1990. Transporta-nos aos anos trinta do século passado, onde para os lados das Raposeiras, na freguesia de São Paio, se desenvolveu um estranho culto a Nossa Senhora... Ora leia o texto que é deveras curioso: “Era domingo. Um bonito domingo de Verão. Acho que era Verão pois fazia calor e os homens andavam de mangas de camisa, com o casaco às costas, já se vê como era uso. Após o jantar (almoço), muita gente em caminhar de passeio, sem pressa dirigiu-se para o lugar da Raposeira, em Rouças. Aquele lugar andava na boca de todo mundo já algum tempo. Eu só me dei conta disso naquele domingo. Devia ter oito ou nove anos e morava com o Tio Emiliano que disse que íamos à Festa da Senhora da Raposeira. Falou em festa, era comigо mesmo. Ele, o tio Emiliano, era o maior da família mas também tinha de as frequentar por obrigação. Era o arrematante dos impostos e tinha de fiscalizar a cobrança do imposto indireto sobre tudo o que se comercializasse na romaria. Dois tostões ou três das doceiras, de acordo com o tamanho do cesto das roscas; cinco tostões das tendeiras, ou mais, conforme os pipotes de vinho que tinham para vender e por aí a fora. No caminho encontramos o meu pai e a minha mãe, o meu irmão Augusto e outros familiares. Na minha já razoável experiência de festas notei que aquela era diferente, ninguém levava merendeiro. Era isso, todos iam por curiosidade. Todos não. Aquilo era novidade no calendário festivo do concelho. E por ser uma devoção nova, pessoas aparentemente desligadas das coisas religiosas também iam testar os poderes da nova evocação da Mãe do Céu. A Mamá Pires com a Naná e o João também iam e isso me causou grande admiração; não eram habituais nas festividades. E mais, a Da. Carlinda (a Mamá), levava uma garrafa de azeite para oferecer a N. Senhora, como pagamento de uma graça alcançada. Aquilo era demais para a minha compreensão. Mesmo assim deu para entender que a evocação não era tão recente: assim pois já houve pedidos e tinham sido atendidos como confirmava aquele azeite. O lugar da Raposeira me pareceu muito acanhado. Uma capela espremida entre vertentes do monte sem amplidão de Fiães ou Peneda que era o que sempre me ocorria para comparação. A capelinha, não lembro se era recente ou já existia era bem espaçosa. No esfumado do tempo aparece tendo côro e púlpito. Era grande о público que acorria e a maioria da vila, até o senhor Armando Soalheiro viera. O tio Emiliano confidenciou para o meu pai que a presença do Solheiro era oficial. Na qualidade de autoridade municipal vinha certificar do que se tratava: festa religiosa sem padre. A capela estava superlotada. E eu também estava lá dentro ao lado do meu pai. No altar uma bonita imagem de Nossa Senhora que intitulavam da Raposeira, mas que, mais tarde verifiquei ser Nossa Senhora das Graças, muito venerada no Brasil. Lá pelas tantas entre Menezes, muito emproado, ar beático, enfiado no robe, bonito e espalhafatoso roupão de cetim azul claro com florões que lhe chegava até aos pés, atado na cintura com um cordão de seda. O homem postou-se no púlpito, não tenho certeza se era púlpito, o que sei é que ele estava em plano elevado e dominava toda a assistência. Desfiou um sermão. Não prestei atenção ao que ele disse nem ficamos muito tempo, o meu pai retirou-se. Cá fora notei que as pessoas trocavam impressões com ar de mofa e deboche. E o homem não estava muito bem da cabeça, comentavam. Aquele domingo fora o ápice e a derrocada da Raposeira como lugar de veneração. Dias depois o Menezes foi chamado à Administração e admoestado. Ficou constatado, entre tanto, que o homem no excesso de seu zelo religioso tinha enlouquecido. Se algum respeito lhe era tributado até então, a partir daí passou a ser alvo de chacota e apelidado de Chico da Raposeira, um maluco. O seu comportamento degenerou. Cada vez mais o seu fervor era disparatado culminando por amputar o que ele chamava de causador do pecado. Tudo começara na segunda metade dos anos trinta. O Francisco Menezes retornou do Brasil para onde tinha emigrado muito moço e ao voltar fixou-se no seu lugar de origem, na casa da família. Na bagagem levou para Melgaço alguma cultura e muita religiosidade. Além da imagem de Na. Sra. das Graças também levou um projector de cinema de 16 mm e alguns filmes. O projector era alimentado por um magnete acoplado movido a manivela quer dizer, produzia a sua própria electricidade, coisa evoluída para a época. Acompanhado da esposa, não me lembro se tinha filhos, andava o Menezes pelas aldeias exibindo os filmes, o de maior êxito. 

Aquela aparelhagem de cinema, a esposa levou para o Papá Pires tentar vender. Enquanto esteve por lá, o Neca exibia os filmes para nós vermos, eu e os irmãos dele. Eram comédias do «Caralinda», o antecessor doPamplinas” e do “Charlot”. 

A nossa homenagem ao Chico da Raposeira que contribuiu para a cultura da nossa terra. Texto de Manuel Igrejas. 

Fomos vasculhar a imprensa melgacense para vermos se encontrávamos alguma referência a estes factos e demos com um artigo no “Notícias de Melgaço” de 5 de Novembro de 1935, onde se pode ler:A festa das Raposeiras - No penúltimo domingo realizou-se mais um grande pagode no lugar das Raposeiras, freguesia de São Paio, deste concelho, onde um maníaco mandou construir uma capela, para explorar, com a imagem de uma santa que adquiriu no Brasil, as crenças do nosso povo. No sábado houve iluminação, foguetes e batuque até altas horas da noite, tocando no local os gaiteiros de Barbeita, Monção. No domingo a assistência ao pagode foi grandiosa, tanto da Vila como das freguesias circunvizinhas, parecendo tratar-se de uma autêntica romaria. Concorreram romeirinhos entoando cânticos, oferecidos à “Senhora das Raposeiras” pela Sr.ª D. Rufina Cândida Pinto, de Galvão. O tal maníaco, que se chama Francisco Gomes, por alcunha o “Menezes” ou “Chico Chauffeur”, por ter exercido por algum tempo a profissão de chauffeur, apesar de não saber ler nem escrever, foi chamado à presença da digna autoridade administrativa, sendo porém depois mandado em paz. Ao regressar da Vila, os seus adeptos romperam às vivas ao novo Messias, levando-o em triunfo até à capela, onde o “Chico” deu entrada de tamancos, colocando-se ao órgão e principiando a função com a recitação do terço e diversos cânticos que eram acompanhados pela assistência que enchia a capela. O pagode prolongou-se pela tarde fora, até à noite, tendo o “Menezes” convidado os seus adeptos para um repasto, que constou de carneiro assado, nozes, castanhas e vinho a granel. E assim terminaram as “Festas das Raposeiras”, na melhor ordem e harmonia, trazendo os romeiros gratas recordações da pândega a que assistiram. O “Chico Menezes” conseguiu uma boa maneira de ir levando a vidinha, com as suas rezas e sermões. O povo vai caindo com as suas esmolas em dinheiro e em géneros, as quais vai chegando para o “Chico” ir vivendo e a família. Chamem-lhe tolo! 

Curiosa esta estória... 

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