A vila de Melgaço na época
José Saramago, Prémio Nobel da Literatura, no seu livro "Viagem a Portugal", de 1981, descreve a vila de Melgaço nestas palavras: "Melgaço é vila pequena e antiga, tem castelo, mais um
para o catálogo do viajante, e a torre de menagem é coisa de tomo, avulta sobre
o casario como o pai de todos. A torre está aberta, há uma escada de ferro, e
lá dentro a escuridão é de respeito. Vai o viajante pé aqui, pé acolá, à espera
de que uma tábua se parta ou salte rato. Estes medos são naturais, nunca o
viajante quis passar por herói, mas as tábuas são sólidas, e os ratos nada
encontrariam para trincar. Do alto da torre, o viajante percebe melhor a
pequenez do castelo, decerto havia pouca gente na paisagem em aqueles antigos tempos. As ruas da parte
velha da vila são estreitas e sonoras. Há um grande sossego. A igreja é bonita
por fora mas por dentro banalíssima: salve-se uma Santa Bárbara de boa estampa.
O padre abriu a porta e foi-se às obras da sacristia. Cá fora, um sapateiro
convidou o viajante a ver o macaco da porta lateral norte. O macaco não é
macaco, é um daqueles compósitos medievos, há quem veja nele um lobo, mas o
sapateiro tem muito orgulho no bicho, é seu vizinho.
Logo adiante de Melgaço está a Nossa Senhora da Orada.
Fica à beira do caminho, num plano ligeiramente elevado, e se o viajante vai
depressa e desatento, passa por ela, e ai minha Nossa Senhora, onde estás tu?
Esta igreja está aqui desde 1245, estão feitos, e já muito ultrapassados,
setecentos anos. O viajante tem o dever de medir as palavras. Não lhe fica bem
desmandar-se em adjetivos, que são a peste do estilo, muito mais quando
substantivo se quer, como neste caso. Mas a Igreja da Nossa Senhor da Orada,
pequena construção românica decentemente restaurada, é tal obra-prima de
escultura que as palavras são desgraçadamente de menos. Aqui pedem-se olhos,
registos fotográficos que acompanhem o jogo de luz, a câmara de cinema, e também
o tacto, os dedos sobre estes relevos para ensinar o que aos olhos falta. Dizer
palavras é dizer capitéis, acantos, volutas, é dizer modilhões, tímpanos,
aduelas, e isto está sem dúvida certo, tão certo como declarar que o homem tem
cabeça, tronco e membros, e ficar sem saber coisa nenhuma do que o homem
é. O viajante pergunta aos ares de onde
são os álbuns de arte que mostrem a quem vive longe esta Senhora da Orada e de
todas as Oradas que por este país fora ainda resistem aos séculos e aos maus
tratos da ignorância ou, pior ainda, ao gosto de destruir. O viajante vai mais
longe: certos monumentos deveriam ser retirados do lugar onde se encontram e
onde vão morrendo, e transportados pedra por pedra para grandes museus, edifícios
dentro de edifícios, longe do sol natural e do vento, do frio e dos líquenes
que corroem, mas preservados. Dir-lhe-ão que assim se embalsamariam as formas;
responderá que assim se conservariam. Tantos cuidados de restauro com a
fragilidade da pintura, e tão poucos com a debilidade da pedra.
Da Nossa Senhora da Orada, o viajante só escreverá mais
isto: viram-na os seus olhos. Como viram, do outro lado da estrada, um rústico
cruzeiro, com um Cristo cabeçudo, homenzinho crucificado sem nada de divino,
que apetece ajudar naquele injusto transe.
Vai agora o viajante iniciar a grande subida para Castro
Laboreiro..."
Extraído de: SARAMAGO, José (1981), Viagem a Portugal. Edições Caminho, Lisboa.
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