O contrabando no rio Minho |
As memórias do contrabando costumas encantar-nos com
narrativas que parecem retiradas de
romances picarescos: as mil e uma artes de ludibriar as autoridades, as reações
de esperteza face a desafios imprevistos, a passagem de camiões desmontados nas
pequenas embarcações do rio Minho, as solidariedades espontâneas ou as
bizarrias de um companheiro. Mas existe uma outra face que espreita por entre
estas palavras. O contrabando implicava uma vida de risco, de esforço e de
sacrifício. As cargas eram pesadas e mal jeitosas. Uns não se davam bem com o
sabão, outros com a chapa, outros com os couros, outros com a amêndoa, outros,
ainda, com a tripa. Os sustos de outrora ainda agora arrepiam: uma turbulência
no rio escuro ou a intercepção brusca de um agente da PIDE. Apesar da boa
organização e do estreito entendimento com as autoridades, não deixava de haver
apreensões, multas, dívidas, humilhações, perseguições, prisões, e, até mortes.
Mulheres foram encarceradas em cadeias tão distantes como a de Orense. As mortes
no rio Minho, às mãos da natureza ou das autoridades, portuguesas ou
espanholas, não eram raras. Atente-se na notícia que segue, publicada na década
de 1950 num jornal de Melgaço:
“Aparecimento de cadáver – Em 27 do mês findo, apareceu
na Valinha, a boiar nas águas do rio Minho, o cadáver de José Fernandes, mais
conhecido pelo “Zé do Diabo”, de Penso, que uns quinze dias antes, quando
pretendia passar uma pequena porção de café para a Galiza, foi abatido a tiro
pelos carabineiros”
Uma entre muitas tragédias. Por exemplo, dois jovens
foram mortos a tiro, vítimas, segundo testemunhos, de uma denúncia que os
descreveu, ao arrepio da verdade, como perigosos e armados. As denúncias, as
ganâncias, os conflitos e as rivalidades também eram fruta da época. Acrescente-se
que havia quem se sentisse, direta ou indiretamente, prejudicado nos seus
negócios, por sinal legais, com os efeitos do contrabando. A memória desses
tempos tem sombras.
O contrabando é uma atividade oportunista que tira
partido das vicissitudes da fronteira. Constitui, portanto, um fenómeno
bastante instável. Depende do muito que acontece, perto e longe, em Espanha, em
Portugal e na relação entre os dois países. O mundo do contrabando é feito de
mudança. Em poucos anos, sofre transformações radicais. Ora é mais num sentido,
ora se inverte. Um dado produto, como o azeite, ora vai, ora vem. Tal produto
ora dá, ora deixa de dar, ora volta a dar. Uma fase, como o do gado, sucede a
outra, como a do café. Entretanto, os locais privilegiados de passagem deslocam-se
do rio Minho para a raia seca. As vacas, antes “cordeadas” através do rio,
caminham, agora, pelos planaltos. Num canto, fecham-se as pequenas lojas, no
outro, proliferam as garagens para estacionamento de gado. Mudam os próprios
protagonistas: os “patrões” , os “lugar-tenentes”, os “transportadores”, os
fornecedores e os clientes deixam de ser os mesmos.
O balanço
dos efeitos do contrabando suscita um consenso bastante alargado. Apesar de
lucrativo, o negócio do contrabando gerou poucas riquezas. E estas, tal como os
filhos, acorreram às cidades e às áreas metropolitanas. O investimento
produtivo local resultou deveras escasso. O contrabando não sustentou a
descolagem do desenvolvimento económico local, mas garantiu a sobrevivência condigna
a uma população ameaçada pela miséria.
Esta espécie de balanço
global não deve, no entanto, menosprezar o impacto local do contrabando. Basta
percorrer a paisagem para o sentir. Antes da quebra recente, vários “oásis” do
contrabando, como S. Gregório (na freguesia de Cristóval), eram animados por um
rodopio de pessoas em busca de algum negócio ou de alguma oportunidade.
Entretanto, a azáfama desertou, os comércios fecham, as propriedades vendem-se e
a população diminui.
Convém
não dissociar o contrabando da emigração. Por um lado, como reparou um
entrevistado, “mal o contrabando dava sinais de esmorecer, logo a emigração
recrudescia. Todos os dias, partia alguém”.
Por outro lado, o contrabando, tal como a febre do volfrâmio, preparou o
terreno para o surto emigratório dos anos 1950 e 1960. Ambos contribuíram para
retirar parte da população da rotina do trabalho agrícola. Independentemente
desta ou daquela lufada de prosperidade, ambos acalentaram ambições, abriram
expetativas e alargaram horizontes. Uma vez dado o passo, ninguém concebia
regressar ao antigamente. O volfrâmio e o contrabando propiciaram, também,
vivências, conhecimentos e relações passíveis de mobilização noutros contextos
e noutras paragens.. Proporcionou-se, em suma, um sentimento de inquietude com
asas de esperança, umas das molas mais decisivas da emigração. Não é,
certamente, por acaso que Melgaço primou, ao nível do país, tanto pelo
contrabando como pela emigração. E, cada um a seu modo, ambos semearam a
realidade atual.
Extraído de: GONÇALVES, Albertino (ano de publicação desconhecido) -
Caminhos de inquietude: A organização do contrabando no concelho de Melgaço. O
Miño, uma corrente de memória.
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