sábado, 16 de julho de 2016

Estórias de uma morgada em Castro Laboreiro

Vila de Castro Laboreiro (início do século XX)
No jornal “Diário Illustrado”, na sua edição de 10 de Julho de 1886, encontrámos uma bonita passagem do romance “A Guerra das Carolinas”. A personagem principal,  a Morgada do Pico, estabelece-se em Castro Laboreiro à procura de um reencontro consigo própria, no meio da paz que as terras castrejas lhe poderiam oferecer. Entretanto, deixa-se encantar pelas terras do Laboreiro e pelas gentes locais...
Pela terra e pelo Azul
Uma tarde, a morgada do Pico, havia dois dias hospedada numa choça de Castro Laboreiro, saiu a pé através das asperezas da serra.
O escabroso do solo dava ao cavalo da intrépida amazona um sueto forçado. Relâmpago descansava, se bem que, parecendo dispor de músculos de aço, não precisasse de descanso. Notavelmente inteligente e dedicado, aquele cavalo parecia preferir a morte a ter que ser ser abandonado algum dia pela gentil dama a cujos caprichos obedecia cegamente lançando-se por despenhadeiros que o obrigavam a prodígios de equilíbrio.
A morgada compreendia a dedicação de Relâmpago, que ela afagava de vez em quando, como para premiar-lhe a canseira, e que ela pensava por sua própria mão solicitamente. Nunca o Relâmpago tivera umas férias tão longas, de quarenta e oito horas apenas.
Mas o aspecto montanhoso de Castro Laboreiro, a solidão agreste da serra, a rusticidade quase primitiva dos seus habitantes tinham conseguido demorar por dois dias essa infatigável écuyere para quem a equitação se tornara um hábito e a solidão uma necessidade.
Longe do mundo, entre gente inteiramente indiferente e desconhecida, a morgada do Pico podia respirar ali livremente, furtar-se a olhares curiosos, a perguntas impertinentes. Umas vezes ia sentar-se junto às muralhas do castelo, quase sempre coroado de névoas, porque é húmido e frio o o clima. A aridez do panorama, em que o arvoredo escasseia, achando-se a cultura reduzida a pequenas searas, harmonizava-se, numa consonância pungente, com a aridez desolada da sua alma, crestada pelo bafo ardente de paixões violentas e malogradas.
Outras vezes, próximo da raia, quedava-se cismando junto ao  nicho, aberto em rocha viva, da Senhora de Anamão. A solidão era profunda, silenciosa, morta. O olhar da morgada parecia fixar-se, de tempos a tempos, na imagem da Virgem, e  ninguém poderia dizer ao certo se nesse olhar fuzilava uma blasfémia ou soluçava uma prece, teria aquela desgraçada mulher, cujo coração o amor dilacerava sem esperança, o lenitivo supremo da oração? Não sei. O seu caráter não possuía, como sabemos, a transparência cristalina que deixa sondar os segredos da alma. Fechava-se habitualmente na sua própria tortura. Foi preciso que a paixão a alucinasse, para que a morgada do Pico tivesse um momento de expansão explosiva na presença da Creixomil, quando a procurara em Guimarães.
Em Castro Laboreiro, vivia tão independentemente como num país estranho. Os marialvas minhotos perderam-lhe o rasto, quando ela se internou naquela região montanhosa, que os nevoeiros tocavam...
A gente do sítio, tão boçal como bisonha, não chegava a incomodá-la. Vive ali como ainda na infância da humanidade. A pureza dos costumes tradicionais encontra sempre nas montanhas um baluarte inexpugnável que a defende do contacto da civilização.
A vida é sóbria e simples. O caráter do povo austero e sofredor. O trajo primitivo não foi ainda remodelado pela invasão do figurino. Os montanheses de Castro Laboreiro vestem de brixe ou saragoça, usam polainas de burel e calçam chancas apresilhadas sobre o peito do pé por estreitas correias que se entrecruzam. As lutas da ambição não agitam os ânimos naquela montanha. A população é pobre. No Inverno, a maior parte dos homens emigra para Trás-os-Montes. Dá-se na terra o nome de tapizas a estes “boémio” do rude trabalho dos campos, que na História dos costumes portugueses, fazem pendant aos colonos da Beira que pelo tempo das colheitas vão em chusma ceifar nos campos do Alentejo. Os tapizas do norte correspondem aos ratinhos do sul.
Não era esta uma poplação que pudesse constranger a morgada do Pico, amante da solidão liberrima dos alcantis e do despovoado. Os serranos de Laboreiro viviam numa animalidade pré-histórica, que se mantinha numa ignorância secular da reportagem das gazetas, ainda não inventadas para eles.
Não sabiam quem fosse aquela mulher, que em tão pouco tempo principiara a ser adorada, porque dava dinheiro à crianças e aos velhos.
Era uma louca ou uma desgraçada? Não sabiam, e não tinham a quem perguntá-lo, porque as suas relações com o mundo limitavam-se ao âmbito da sua montanha natal.
Era compassiva e isso bastava. Não era um intruso que incomodasse, mas pelo contrário, um hóspede que se impunha agradavelmente pela caridade.
Nessa tarde em que a morgada metera ao acaso pelos atalhos da serra, o seu espírito atribulado parecia achar nas torturas do sofrimento uma voluptuosidade dolorida, que lhe tornava menos pesada, nesse dia, a cruz do seu destino.
Do fragmento em que fora alcandorar-se, via as casas da vila que se agrupavam a pequena distância do castelo. Notou que junto à igreja paroquial, esse humilde templo, outrora visitado por Frei Bartolomeu dos Mártires e Frei Caetano Brandão, havia um movimento extraordinário de serranos, o fluxo de uma pequena onda de vida, que fenomenalmente animava a paisagem.
- Talvez um funeral?, pensara a morgada. Ah!. Como deve ser bom morrer aqui na tranquila ignorância dos grandes dramas sociais, que acidentam a vida dos povos civilizados. Morreu talvez um tapiza, que sucumbira ao duro trabalho do último Inverno, e que não ambicionava senão vir entregar a sua alma rude e boa ao silêncio da montanha em que nascer e amara. A morte não é ainda aqui um facto indiferente. Tem as honras de um acontecimento local, porque todo este povo constitui uma só família. Nas cidades morre-se sem os vizinhos darem por isso. Que se saia de casa vivo ou morto, pouco importa. Mas neste ermo agreste, onde a vida é patriarcal, cada falecimento provoca um luto público, cuja dor a pobreza do morto torna insuspeita na sinceridade das lágrimas que o pranteiam.
Mas, a breve trecho, o sino da igreja repicara festivamente. A hipótese de um funeral fora posta de parte. Devia ser um batizado ou um casamento. Em todo o caso, um acontecimento anormal, uma festa da povoação.
Mulheres, com o seu traje caraterístico, surgiam em formigueiro à porta do templo. Corriam atrás delas, em enxame revolto, as crianças do sítio, rolando-se no chão, gritando numa alegria quase selvagem, expansiva e bronca.
Depois, o sino repicara apressado, num alegro vertiginoso, como se anunciasse aos ecos da serra o momento próximo da cerimónia religiosa.
Então a morgada do Pico pode ver um rancho de homens e mulheres que se encaminhavam para o templo. À frente, uma mulher e um homem pareciam ser o alvo da ovação estridula, atroadora, que lhes vinham fazendo, - uma espécie de celeuma em que os gritos festivos da multidão podiam dar a ideia de uma boda de indígenas no sertão africano.
Era, reconheceu-o a morgada, uma noce de Castro Laboreiro, profundamente caraterística, sem véu e grinalda na cabeça da noiva, sem traine de faille branco roçagando majestosamente, sem o cortejo nupcial enluvado e engravatado que, no Porto ou em Braga, fazia séquito aos noivos.
Fora grande a impressão que esse inesperado espetáculo produzira na alma da morgada do Pico. Podia ser-se feliz ali!, pensara ela, chegar tranquilamente à santificação do amor pelo casamento. Como devia dilatar-se, cheio de serenidade, o coração satisfeito, na amplidão daquelas serras!
E o seu pobre coração dilacerado, que não conhecia esperança nem descanso, soluçou um queixume tão brando e tão mavioso, que explodiu num plácido orvalho de lágrimas, pequenas pérolas de pranto como aquelas que o azul do céu, alumiado pelo sol nascente, chora às vezes no calix das boninas.
A morgada do Pico chorara!
E a solidão de Castro Laboreiro guardou o segredo destas lágrimas furtivas, talvez as primeiras de uma vida de sofrimento concentrado.”

Texto de Alberto Pimentel.

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