Vila de Castro Laboreiro (início do século XX) |
No jornal “Diário
Illustrado”, na sua edição de 10 de Julho de 1886, encontrámos uma bonita
passagem do romance “A Guerra das Carolinas”. A personagem principal, a Morgada do Pico, estabelece-se em Castro Laboreiro
à procura de um reencontro consigo própria, no meio da paz que as terras
castrejas lhe poderiam oferecer. Entretanto, deixa-se encantar pelas terras do Laboreiro e pelas gentes locais...
“Pela terra e pelo Azul
Uma tarde, a morgada do
Pico, havia dois dias hospedada numa choça de Castro Laboreiro, saiu a pé através
das asperezas da serra.
O escabroso do solo dava
ao cavalo da intrépida amazona um sueto forçado. Relâmpago descansava, se bem
que, parecendo dispor de músculos de aço, não precisasse de descanso.
Notavelmente inteligente e dedicado, aquele cavalo parecia preferir a morte a
ter que ser ser abandonado algum dia pela gentil dama a cujos caprichos
obedecia cegamente lançando-se por despenhadeiros que o obrigavam a prodígios de equilíbrio.
A morgada compreendia a
dedicação de Relâmpago, que ela afagava de vez em quando, como para premiar-lhe
a canseira, e que ela pensava por sua própria mão solicitamente. Nunca o Relâmpago
tivera umas férias tão longas, de quarenta e oito horas apenas.
Mas o aspecto montanhoso
de Castro Laboreiro, a solidão agreste da serra, a rusticidade quase primitiva
dos seus habitantes tinham conseguido demorar por dois dias essa infatigável
écuyere para quem a equitação se tornara um hábito e a solidão uma necessidade.
Longe do mundo, entre
gente inteiramente indiferente e desconhecida, a morgada do Pico podia respirar
ali livremente, furtar-se a olhares curiosos, a perguntas impertinentes. Umas
vezes ia sentar-se junto às muralhas do castelo, quase sempre coroado de
névoas, porque é húmido e frio o o clima. A aridez do panorama, em que o
arvoredo escasseia, achando-se a cultura reduzida a pequenas searas, harmonizava-se,
numa consonância pungente, com a aridez desolada da sua alma, crestada pelo
bafo ardente de paixões violentas e malogradas.
Outras vezes, próximo da
raia, quedava-se cismando junto ao
nicho, aberto em rocha viva, da Senhora de Anamão. A solidão era
profunda, silenciosa, morta. O olhar da morgada parecia fixar-se, de tempos a tempos,
na imagem da Virgem, e ninguém poderia
dizer ao certo se nesse olhar fuzilava uma blasfémia ou soluçava uma prece,
teria aquela desgraçada mulher, cujo coração o amor dilacerava sem esperança, o
lenitivo supremo da oração? Não sei. O seu caráter não possuía, como sabemos, a
transparência cristalina que deixa sondar os segredos da alma. Fechava-se
habitualmente na sua própria tortura. Foi preciso que a paixão a alucinasse,
para que a morgada do Pico tivesse um momento de expansão explosiva na presença
da Creixomil, quando a procurara em Guimarães.
Em Castro Laboreiro,
vivia tão independentemente como num país estranho. Os marialvas minhotos
perderam-lhe o rasto, quando ela se internou naquela região montanhosa, que os
nevoeiros tocavam...
A gente do sítio, tão
boçal como bisonha, não chegava a incomodá-la. Vive ali como ainda na infância
da humanidade. A pureza dos costumes tradicionais encontra sempre nas montanhas
um baluarte inexpugnável que a defende do contacto da civilização.
A vida é sóbria e simples.
O caráter do povo austero e sofredor. O trajo primitivo não foi ainda
remodelado pela invasão do figurino. Os montanheses de Castro Laboreiro vestem
de brixe ou saragoça, usam polainas de burel e calçam chancas apresilhadas
sobre o peito do pé por estreitas correias que se entrecruzam. As lutas da
ambição não agitam os ânimos naquela montanha. A população é pobre. No Inverno,
a maior parte dos homens emigra para Trás-os-Montes. Dá-se na terra o nome de tapizas a estes “boémio” do rude trabalho dos campos, que na História dos costumes
portugueses, fazem pendant aos
colonos da Beira que pelo tempo das colheitas vão em chusma ceifar nos campos
do Alentejo. Os tapizas do norte
correspondem aos ratinhos do sul.
Não era esta uma
poplação que pudesse constranger a morgada do Pico, amante da solidão liberrima
dos alcantis e do despovoado. Os serranos de Laboreiro viviam numa animalidade
pré-histórica, que se mantinha numa ignorância secular da reportagem das
gazetas, ainda não inventadas para eles.
Não sabiam quem fosse
aquela mulher, que em tão pouco tempo principiara a ser adorada, porque dava
dinheiro à crianças e aos velhos.
Era uma louca ou uma
desgraçada? Não sabiam, e não tinham a quem perguntá-lo, porque as suas
relações com o mundo limitavam-se ao âmbito da sua montanha natal.
Era compassiva e isso
bastava. Não era um intruso que incomodasse, mas pelo contrário, um hóspede que
se impunha agradavelmente pela caridade.
Nessa tarde em que a
morgada metera ao acaso pelos atalhos da serra, o seu espírito atribulado
parecia achar nas torturas do sofrimento uma voluptuosidade dolorida, que lhe
tornava menos pesada, nesse dia, a cruz do seu destino.
Do fragmento em que fora
alcandorar-se, via as casas da vila que se agrupavam a pequena distância do
castelo. Notou que junto à igreja paroquial, esse humilde templo, outrora
visitado por Frei Bartolomeu dos Mártires e Frei Caetano Brandão, havia um
movimento extraordinário de serranos, o fluxo de uma pequena onda de vida, que
fenomenalmente animava a paisagem.
- Talvez um funeral?,
pensara a morgada. Ah!. Como deve ser bom morrer aqui na tranquila ignorância
dos grandes dramas sociais, que acidentam a vida dos povos civilizados. Morreu
talvez um tapiza, que sucumbira ao duro trabalho do último Inverno, e que não
ambicionava senão vir entregar a sua alma rude e boa ao silêncio da montanha em
que nascer e amara. A morte não é ainda aqui um facto indiferente. Tem as
honras de um acontecimento local, porque todo este povo constitui uma só
família. Nas cidades morre-se sem os vizinhos darem por isso. Que se saia de
casa vivo ou morto, pouco importa. Mas neste ermo agreste, onde a vida é
patriarcal, cada falecimento provoca um luto público, cuja dor a pobreza do
morto torna insuspeita na sinceridade das lágrimas que o pranteiam.
Mas, a breve trecho, o
sino da igreja repicara festivamente. A hipótese de um funeral fora posta de
parte. Devia ser um batizado ou um casamento. Em todo o caso, um acontecimento
anormal, uma festa da povoação.
Mulheres, com o seu
traje caraterístico, surgiam em formigueiro à porta do templo. Corriam atrás
delas, em enxame revolto, as crianças do sítio, rolando-se no chão, gritando
numa alegria quase selvagem, expansiva e bronca.
Depois, o sino repicara
apressado, num alegro vertiginoso, como se anunciasse aos ecos da serra o
momento próximo da cerimónia religiosa.
Então a morgada do Pico pode
ver um rancho de homens e mulheres que se encaminhavam para o templo. À frente,
uma mulher e um homem pareciam ser o alvo da ovação estridula, atroadora, que
lhes vinham fazendo, - uma espécie de celeuma em que os gritos festivos da multidão
podiam dar a ideia de uma boda de indígenas no sertão africano.
Era, reconheceu-o a
morgada, uma noce de Castro Laboreiro,
profundamente caraterística, sem véu e grinalda na cabeça da noiva, sem traine de faille branco roçagando majestosamente, sem o cortejo nupcial enluvado e engravatado que, no Porto ou
em Braga, fazia séquito aos noivos.
Fora grande a impressão
que esse inesperado espetáculo produzira na alma da morgada do Pico. Podia
ser-se feliz ali!, pensara ela, chegar tranquilamente à santificação do amor
pelo casamento. Como devia dilatar-se, cheio de serenidade, o coração
satisfeito, na amplidão daquelas serras!
E o seu pobre coração dilacerado, que não conhecia
esperança nem descanso, soluçou um queixume tão brando e tão mavioso, que
explodiu num plácido orvalho de lágrimas, pequenas pérolas de pranto como aquelas
que o azul do céu, alumiado pelo sol nascente, chora às vezes no calix das
boninas.
A morgada do Pico
chorara!
E a solidão de Castro Laboreiro guardou o segredo
destas lágrimas furtivas, talvez as primeiras de uma vida de sofrimento
concentrado.”
Texto de Alberto Pimentel.
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