Castro Laboreiro (Melgaço), início do século XX |
Há cerca de 130 anos, José Augusto Vieira, autor do livro "O Minho Pitoresco" percorreu alguns caminhos das terras de Melgaço. Subindo por Fiães e Alcobaça, foi conhecer Castro Laboreiro. Deixa-nos no livro as suas impressões e deixa-se impressionar com os usos e os costumes das gentes castrejas, deixando contudo transparecer algum choque com algumas particularidades. Ora leia: "Retrocendo pelo caminho andado eis-nos de novo junto de
Alcobaça e desta vez em direcção seguida para Castro Laboreiro.
O rio Trancoso esgotou-se já e a raia seca principia, delimitada
de distância em distância por uns marcos quadrilongos de granito. Que impressão
fez em nós essa pedra humilde, colocada entre as estevas da serra, ao mesmo
tempo espanhola e portuguesa!
A raia líquida parece ainda uma separação natural. A
gente compreende a sua independência. O nosso pensamento como que vai formulando
a frase: De cá nós! De lá vós!
Mas quando essa fronteira natural termina, e quando em plena
serra se encontra apenas um ou outro marco colocado pela mão do homem, sem que a
vegetação se diferencie, ou sem que a paisagem seja diversa, o espirito mal pode
seguir essa linha ideal de separação, e como que desejaria que aquele curso de
água, ainda há pouco tão humilde, tivesse continuado a acompanhar-nos para murmurar
a cada passo, na voz ciciante da sua corrente, a palavra patriótica de Independência.
Além está Castro!— apontou-nos o guia— aquillo é o castelo!
Estávamos num alto. A vegetação luxuriosa do Minho era para
nós um sonho já. Nem uma árvore de fruto, nem uma pequena mata de pinheiros. O cavallo
era raquíitico, um metro apenas de altura, as urzes estendiam-se por toda a
parte, onde as fragas lhe não impediam o desenvolvimento.
Penedos caprichosos, aglomerações graníticas de formas
fantásticas à direita e à esquerda, em frente de nós e pela rectaguarda. Uma verdadeira
garganta de granito. E lá ao fundo, como um vulto sombrio, o castelo de Castro,
eriçado nas suas arestas agudas.
A paisagem melancólica, o céu brumoso, a pedra aflorando por
toda a parte, um ou outro boisinho barrozão equilibrando-se por entre as
estevas! Nem o gorgeio duma ave, nem o cântico panteísta da
água corrente.
Atravessamos a Portelinha, cujas casas são já como as de
Castro cobertas pelo colmo e giesta e depois, num piso mais regular, em dois ou
três quilómetros de vale, serpenteado por um riacho, em cuja margem apenas os vidoeiros
vegetam, alcançamos as primeiras casas de CASTRO LABOREIRO, da vila, como nos indicou
orgulhosamente o primeiro castrejo que encontrámos.
A nossa casa de refugio foi o posto fiscal. Graças à obsequiosidade desses humildes funcionários, ali desterrados,
conseguimos alojar os animais e relacionarmo-nos com aquela pobre gente semi-selvagem
e desconfiada, que nos olhava como a personagens raros e curiosos, e que se perguntava
uma á outra— o que iríamos nós ali fazer — como se gente civilizada não visitara
a sua terra, senão para atentar contra alguma imunidade local.
O tempo urgia e enquanto
João d'Almeida, o desenhador destas páginas, se curvava sobre o seu álbum para apanhar
um grupo de crianças e duas ou três raparigas que se prestaram a poser rodeado pelos mirones que afluíam em
volta do seu banco de trabalho e dos seus lápis coloridos, eu estudava o interior
duma daquelas cubatas, onde o fumo quase me asfixiou a princípio e conversava
com uma pobre mulher doente, coberta com o seu manto de burel, sentada ao lar, onde
se aconchegava com fortes calafrios de febre.
Nada mais sórdido que um desses interiores de Castro e nada
mais humilde também! Num ângulo da parede, quase sempre uma rocha
viva, forma-se o leito, o mais económica e singelamente que é possível; dois barrotes
de madeira unidos entre si em ângulo recto, formam com as paredes um quadrilátero,
sobre que ele assenta. A um desses barrotes está apenso um banco, ao outro um quadrado
que serve de guarda-roupa, formando tudo como que uma só peça inteiriça, de que
a gravura dá uma ideia bem clara.
Nesses leitos não havia lençóis! É um luxo de civilização,
que o castrejo ainda não conhece. As mantas grosseiras de burel constituem as únicas
roupas, com que se cobre! A um dos lados, numa cova aberta na terra, está o lar,
à volta do qual ficam os escabelos, em que a família se senta para conversar ou
comer. Como os tectos são de colmo ou giesta e não há tiragem por meio de chaminés,
usam, para evitar os incêndios, alguns ramos interpostos entre o fogo e o tecto,
que recebem as primeiras faíscas de lume, onde ordinariamente se convertem em fuligem,
e que rapidamente são retirados, se acontece de incendiarem-se.
Anexo a este interior, o que há de mais sórdido, de mais negro
pelo fumo, e de mais anti-higiénico, ficam as cortes para os gados.
A castreja, com quem conversávamos, assim como todas as que se relacionaram connosco, era de trato afável e simples, modesta
e com uma fisionomia expressiva. Em todos encontrámos uma regularidade de traços,
formando um conjunto agradável e simpático, repelente apenas pela porcaria, que
era principio estabelecido e comum. O vestuário é grosseiro, burel oupicoto,
segundo o termo local e tecido ali mesmo. As de Alcobaça são, como já vimos, as
melhores tecedeiras, e nesta localidade usa-se por isso a roupa branca nas
camas.
O nosso cromo dá uma ideia exacta do costume, cujas peças
mais originaes são a monteia, espécie de lenço para a cabeça, o
colete, o manteu largo deitado desde os hombros até aos joelhos, as piugas e os
tamancos, que dão à castreja a pequenez do pé, como acontece na China com os borzeguins
das altas damas. Chamam-lhe na linguagem local alabardeiros e deles dá uma ideia
exata a nossa gravura de texto.
Perguntámos por industria local. Não havia senão a da cultura
da terra nas proporções miseráveis que logo veremos.
— E manteiga não fabricam?
——Isso, sim senhor, mas só nas povoações do alto.
——Boa?
— Bonita e fresca, como olho de galo— respondeu-me em imagem pitoresca e viva.
— E o pão, como fabricam vocês o pão?
— É com centeio e algum milho. As mulheres amassam em casa,
fazem as bolas e levam-nas depois para casa do padeiro.
Pedimos para ver uma. Eram de forma mamilar, e grosseiro o
seu fabrico. Depois de amassadas, colocam-as numa tábua e conduzem-as
à cabeça para a casa do forno, que é comum à povoação, concorrendo todos para o
seu concerto, quando disso ele necessita.
Além destas broas, fazem ainda no rescaldo do lar uns bolos,
que servem enquanto não chega o pão do forno. Almeida tirara já
os seus croquis e eu desejava mais tempo para os meus. Precisávamos, porém, dum
esboceto do castello e roía-nos o desejo de visitar essa velha ruína da civilização
romana, que tínhamos a uns 500 metros da povoação. A tarde avançava e o nosso estômago
principiava a revelar umas certas impaciências pelo abandono a que o votávamos.
O grito geral era, porém, -Ao castelo! - e força foi que por
esta vez o estômago condescendesse…"
::::::::::::::::::::CONTINUA::::::::::::::::::::
Extraído de:
- VIEIRA, José Augusto (1886) - O Minho Pittoresco, tomo I, edição da livraria de António Maria Pereira - Editor, Lisboa.
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