sexta-feira, 2 de dezembro de 2016

Visitando Castro Laboreiro há 130 anos (Parte III)

A vila de Castro Laboreiro, ao longe

Em terras de Castro Laboreiro, o autor da mítica obra “O Minho Pittoresco”, conta-nos como percorreu aqueles caminhos naquela época: “O professor Pinho Leal descreve, no livro “Portugal Antigo e Moderno” publicado uns anos antes (1874), refere-se aos costumes castrejos nos funerais. Fala no uso das comesainas mortuárias em casa dos doridos, e fala dos enterros, nos quais diz ser o féretro conduzido por mulheres, por não haver muitas vezes homens na freguesia, e ser seguido por uma comitiva delas, umas com broas, outras com açafates de bacalhau e diversos alimentos, que na igreja entregam ao pároco.
Perguntámos por esse uso, mas disseram-nos que não existia, pelo menos tal como o descreve o autor mencionado.
É certo que à falta de homens, o féretro é conduzido muitas vezes por mulheres, e que uma vai na frente do préstito levando um cesto com uma broa. Mas não existem depois os banquetes, como ainda são de uso em outras partes da província, e que teremos ocasião de ver.
Avizinhava-se a noite a largos passos e afiançavam-nos os guardas e os do povoado, que era temeridade a horas tais empreender a marcha através da serra, pois nada mais fácil que o encontro pouco amigo de qualquer alcateia de lobos.
O nosso guia, porém, que detestava Castro Laboreiro, falava-nos como um poeta lírico das blandícias do luar, e informava desfavoravelmente sobre a vila, onde não havia pouso para os animais, nem alojamento para nós.
— E que hão de os senhores comer? — perguntava solicitamente, como — se a pergunta não devera ser antes formulada: Que havemos nós de comer?
O pobre homem tinha apenas almoçado algumas cerejas com pão de milho e, ás 7 horas e 30 minutos da tarde, é crivel que o seu estômago tivesse exigências fortes, visto que o nosso se revoltava intransigente contra a perspectiva dumas novas cinco léguas a cavalo, sem ter conhecido o menu de Castro Laboreiro.
Apesar da minha boa vontade de ficar, para passar uma noite conversando à lareira com as castrejas, cujos usos se me oferecia ocasião asada para conhecer, não houve remédio senão ceder às instâncias da caravana e dizer por aquela vez adeus às cantigas que esperava recolher, às lendas, aos contos de carochinha da tradição local, a todos os apontamentos enfim que poderiam alçar a minha individualidade obscura aos olhos ávidos do folclorismo nacional.
Percorremos rapidamente as ruelas estreitas da vila e parámos para ver a igreja, cujo pórtico se achava de luto por ter pouco antes morrido o velho pároco da freguesia. O templo nada oferece de notável. Quando estávamos nesse ponto, um adventício, que não era evidentemente um castrejo, se acercou de nós pedindo esmola. Cumpre dizer que ninguém de Castro, mulher, homem ou criança, nos incomodou nesse sentido.
Quando mesmo Almeida tirava o croquis do rapazito trabalhador, que encontrámos no regresso do castelo e que figura no primeiro cromo, só depois de instado este aceitou de nós algum dinheiro, não obstante ser pouco remuneradora a sua profissão de carvoeiro, xisto que o pobre rapaz ia com uma irmãzita e com o seu jumento para a serra num dia, colhia a urze e fazia o carvão no outro, e no imediato ia vende-lo a Melgaço, onde lhe pagavam 400 réis pela carga! Durante esses três dias, o seu alimento era broa e agua pura do monte.
Educadas no trabalho tão de novo, as crianças tinham o orgulho de não mendigar. Quem era então esse estranho, que apelava para a nossa caridade? Imagina tu, se podes, meu leitor benévolo, que não te dá por certo a imaginação a chave do segredo.
Era um degredado!... Um degredado autêntico, que as justiças de Chaves haviam condenado a desterro dum ano, ali cumprido em Castro Laboreiro, pelo roubo de 2000 réis, de que o individuo se dizia inocente e depois de ter estado dois anos na cadeia daquela vila à espera de julgamento!
Ó inimitável justiça da nossa terra! Era um rapaz de 18 anos, não mais, mal vestido e mal alimentado, e com as mãos ainda sangrentas do trabalho de rachar lenha. Vivia livremente na povoação, tendo apenas de oito em oito dias de apresentar-se ao regedor. Como a justiça o condenara somente, sem se lembrar de que teria necessidade de pão para comer, ou da tábua dum leito para dormir, o rapaz vivia da caridade hospitaleira daquela pobre gente, à qual retribuía com o seu trabalho.
Deu-se finalmente a ordem para a partida e enquanto o guia nos preparava os animais e o tamanqueiro da terra construía essa pesada machina de madeira e sola, que o castrejo calça com o nome de chanca ou alabardeiro, pensámos nós em satisfazer o estômago. Era tempo já.
Sentámo-nos extenuados na soleira duma porta e arranjou-nos um dos guardas vinho e boroa, o único alimento que se podia conseguir em tais alturas. O vinho era detestável e escandalosamente aguado, a boroa grosseira e áspera, como toda aquela natureza selvática. Foi assim mesmo saboreada, que não admitia a fome escrúpulos de epicurismo. E se o meu estômago resistia, como o de bom Minhoto, o de Almeida, que tinha a dyspepsia dos Lisboetas, custava-lhe a resignar-se com o menu.
Só o outro companheiro se conservou sem entusiasmo perante aquela broa, que eu principiava já a achar deliciosa!
Era caso para cismar, quando era ele o que possuí ao mais valente estômago da caravana! Mas nem o nosso egoísmo pensou em resolver o problema. Só à ceia, em frente já do apetitoso presunto de Melgaço, é que ele nos desvendou aquele seu misterioso recolhimento de Castro!
Tinha visto comprar a broa na única tenda da terra, e a imundice, se era um privilégio de todos os outros interiores, chegava a ser um cúmulo no único estabelecimento comercial da vila! Nada víramos, porém, e melhor nos fora assim!"


Extraído de: 
- VIEIRA, José Augusto (1886) - O Minho Pittoresco, tomo I, edição da livraria de António Maria Pereira - Editor, Lisboa.

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