Pavilhão Principal das "Águas de Melgaço", antes da remodelação |
No jornal "Correio da Manhã", na sua edição de 25 de Setembro de 2011, encontramos uma crónica dedicada às Águas de Melgaço da autoria de António Sousa Homem:
Um Domingo de sol e Água de Melgaço
"A minha
sobrinha Maria Luísa tem, com o meu médico de Viana, uma relação conflituosa:
por um lado, acha que a minha longevidade lhe deve bastante – dobrar os noventa
é uma meta até agora só ao alcance de alguns, embora a minha família tenha
demonstrado, ao longo dos séculos, uma tendência permanente para desanimar os
seus desafectos, prolongando a existência até ao inadmissível. Um tio que
dividiu a sua existência entre os Arcos, Valença e Lisboa é mesmo uma lenda
desconfortável, finando-se aos 105 anos na sua quinta ligeiramente decadente,
ouvindo o chilrear dos pássaros e o ruído dos freixos junto a um ribeiro que
corria intramuros. Por outro lado, acha-o um libertino e ligeiramente gordo. A
libertinagem manifesta-se sobretudo pelo estômago e pelo gosto despropositado
por nobiliários arcaicos que fixam os desaires e os pecadilhos das avós
minhotas a norte de Leça da Apúlia e até ao derradeiro grão de poeira que nos
separa de Tuy. Afastado este pormenor, almoçámos todos em Caminha no domingo
passado, saboreando no restaurante Primavera um cabrito que Maria Luísa
classificou como uma ameaça ao meu regime alimentar e que duplicou, largamente,
a felicidade dos comensais. Depois do almoço, o repouso merecido: reunidos em
grupo palrador na esplanada do Café Central, a tarde providenciou-nos a sua
saborosa Água de Melgaço. Tenho com a Água de Melgaço uma relação enamorada e
fiel desde há décadas – amarga e luminosa, ela lembra o tempo em que o Minho
era uma nacionalidade e uma referência. A Água de Melgaço fazia parte dessa
identidade, à semelhança de uma cédula pessoal ou de uma declaração de
contribuinte para a repartição de Finanças. Vinda em caixas de madeira para a
casa de Ponte de Lima ou, mais tarde, para este eremitério de Moledo, é hoje
uma espécie de recurso da memória que vamos periodicamente buscar ao Café
Central e à sombra dos seus guarda-sóis. Esta semana comentávamos uns grafitos
que foram misteriosamente deixados na fachada do edifício da Câmara. Entre um
gole de Água de Melgaço e o pedido de um novo café, Maria Luísa, a esquerdista
da família, concedeu que se tratava de um acto de barbárie cometido por
estranhos (murmurava-se que duas estrangeiras e ainda por cima holandesas).
Depois, uma nuvem passou arrastando a sua beleza disforme sobre a foz do Minho
e as colinas de Santa Tecla. O meu médico de Viana quis ainda mostrar-nos a
estrada florestal de Venade. Maria Luísa levou algumas garrafas de Água de
Melgaço que bebemos entre os freixos e um abeto deslocado da paisagem. Eis um
domingo."
Crónica de António Sousa Homem.
Fonte: Correio da Manhã, edição de 25 de setembro de 2011.
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