sábado, 9 de agosto de 2014

A fortaleza de Melgaço: Da construção da tenalha à Praça da República

Aspeto da fortaleza de Melgaço no século XVIII, com a tenalha que ocuparia o espaço da atual Praça da República

No século XVII, no contexto da Guerra da Restauração da independência portuguesa (1640-1668), as defesas da vila de Melgaço sofreram obras de adaptação aos avanços da artilharia, recebendo linhas abaluartadas que envolveram o recinto medieval, destacando-se a inutilização da porta meridional do túnel do fosso com a construção de uma nova linha de muralhas, a abertura de uma nova porta no recinto do castelo provido por uma barbacã de porta, o acréscimo de novos elementos como falsas bragas ao redor de todo o perímetro da cerca, seguindo o antigo traçado do fosso, três baluartes orientados para os principais pontos de defesa, e uma tenalha, exteriormente defendida com um través e com uma das portas defendida por uma barbacã poligonal.
Durante as escaramuças fronteiriças com os castelhanos em 1641 (quando daqui partiu a invasão da Galiza por forças sob o comando de D. Gastão de Sousa Coutinho), 1657 e 1666, a fortaleza de Melgaço cumpriu o seu papel de dissuasor de qualquer investida inimiga.
A praça ainda se revestia de interesse estratégico ao final do século, quando sofreu nova campanha de obras. Neste momento foram alteradas as paredes laterais da antiga couraça para uma planta sensivelmente triangular, mantendo a cabeceira semicircular, com porta orientada para a Porta do Campo da Feira, foi atulhado o fosso medieval, aberta uma nova porta na couraça, entre duas casas, na parede voltada a norte para dar acesso a um espaço adjacente à falsa braga.
Sob o reinado de João V de Portugal (1706-1750) uma planta de Manuel Pinto de Villalobos, datada de 6 de novembro de 1713, mostra a vila medieval envolvida por uma fortificação abaluartada. A nova fortificação tinha os baluartes orientados para os principais pontos de defesa: dois para o curso do rio Minho e o terceiro, cobria o flanco meridional, voltado ao rio do Porto e à única ponte que o atravessava. Dos três baluartes o mais importante era o virado a sul, constituído por dois meios baluartes geminados, no local onde hoje existe a praça fronteira à Câmara Municipal. A tenalha, imponente, tinha acesso ao interior por duas portas quase simétricas, uma no enfiamento do caminho que vinha da ponte sobre o rio do Porto (atual Rua Afonso Costa) e a outra na abertura da porta voltada à Rua do Castelo e à Igreja Matriz, defendida por uma barbacã poligonal, destruindo uma das torres da muralha do castelo, e, consequentemente, desmontando o antigo paiol, reconstruído noutro local. A tenalha e a muralha descobertas na Praça da República a fechar uma das passagens do fosso denotam ser uma construção apressada, que utilizou pedra de qualidade técnica aligeirada, de fraco aparelhamento e assentamento irregular.
Posteriormente, uma planta elaborada pelo sargento Gonçallo Luís da Sylva Brandão, com data de 1758, retrata ainda os três principais pontos de abastecimento de água à época: a cisterna, um poço no interior da povoação e a fonte da vila. No ano seguinte, a 8 de outubro de 1759, a praça foi inspecionada pelo Comissário da Vedoria Geral de Província, Estêvão Barbosa de Araújo, acompanhado pelos engenheiros Francisco de Barros e José Maria da Cruz.
Em 17 de dezembro de 1761 o relatório de inspeção, enviado a D. Luís da Cunha pelo Sargento-mor de Batalha, António Carlos de Castro, referiu a necessidade de duas tarimbas no quartel dos soldados, de se fazer as duas faces do cunhal sul, de se colocar uma porta nova na barbacã da porta, e de refazerem-se as portas de baixo, e serventia da Praça da parte da Galiza. Adicionalmente precisavam-se fazer portas novas para as entradas norte e sul da tenalha, repor cantaria no parapeito da praça na distância de 200 palmos e na altura de 5, mandar fazer as plataformas de madeira para a artilharia, consertar e retalhar os armazéns e o quartel de infantaria, visto estarem em "mizeravel estado", e recomendava-se ainda olear as portas novas e as janelas dos armazéns das armas e da praça, e fazer a porta interior do paiol, que tinha 6 palmos de altura e 4 de largura.
Em 1786, aquando do falecimento do alcaide-mor Sebastião de Castro Lemos, o castelo estava arruinado ou quase todo caído. Nesse ano procedeu-se a reparação do mesmo, em caráter de urgência, mandada executar pelo juiz de fora Dr. António José Pinto da Rocha, com a renda da alcaidaria, tendo-se, no entanto, reparado essencialmente a torre de menagem.
Entre 1789 e 1800 uma nova inspeção à praça de Melgaço descreve-a como obra antiga com uma torre e uma muralha simples, possuindo da parte de fora alguns baluartes "muito pequenos, de pouca consideração incapazes de poder jogar a Artilharia"; os armazéns e os quartéis estavam em grande ruína; declarava-se que a fortaleza não tinha préstimo militar. Nesse período, em 1792 o soberano proibiu a existência de edifício ou cultura dentro dos fossos ou sobre qualquer obra de fortificação das praças e fortalezas da Província do Minho.
Em fevereiro de 1797 teve lugar a inspeção pelo Sargento-mor de Engenharia, Maximiano José da Serra, que determinou a reparação de soalhos e telhados, e a construção de portas e janelas com ferragens adequadas. Nesse mesmo ano foi feitas a reparação do telhado do paiol e do edifício do corpo da Guarda, onde haviam abatido várias "porções" de paredes, construída lareira na Casa da Guarda nos quartéis e conclusão das tarimbas.
Custódio José Gomes de Villasboas, em 1800 descreveu o castelo de Melgaço como “hum castello de construcção antiga, e muralhas altas, em que laboravão algumas peças de que ha pouco se desguarneceo; tem corpo da guarda, e pequenos quarteis, com huma espécie de obra coroa, dominando a estrada que por alli vai a Cristoval para a Galiza”.
No contexto da Guerra Peninsular (1808-1814) quando da primeira invasão do país pelas tropas napoleónicas (1807-1808), as muralhas de Melgaço encontravam-se arruinadas. Por volta de 1808, em uma nova avaliação do estado das fronteiras do rio Minho o engenheiro militar responsável considerou que seria mais vantajoso gastar o dinheiro na construção de pequenas baterias, que se poderiam estabelecer em tempo de guerra em locais oportunos, do que na reparação e conservação daquelas praças.
GUERRA (1926) informa que cabe a Melgaço a honra de ser a terra de Portugal que primeiro se levantou contra o domínio francês, erguendo a bandeira nacional a 9 de junho de 1808. Conservava, naquele momento, 7 peças de artilharia.
No mesmo momento, o Sargento-mor Engenheiro Custódio José Gomes Vilas Boas descreveu Melgaço como um pequeno recinto que encerrava parte da vila com muralhas altas, mas que tinha um terrapleno com parapeito tão escasso que mal se podia manobrar a artilharia; a única serventia era como ponto de reunião e de permanência temporária, de onde se podia partir para defender a Ponte das Várzeas (15 de junho de 1808).
Em 1810 para a defesa da praça de Melgaço, construíram-se baterias em pontos vitais para a entrada de um exército invasor pela Galiza: uma em São Gregório, outras na estrada entre a vila e a Ponte das Várzeas, outras ainda foram projetadas mas não construídas. Essas baterias de campanha eram feitas com parapeitos de terra, próprias para receber soldados com armas ligeiras, mas também onde se poderiam colocar peças de artilharia.
Em um documento de 23 de maio de 1840 a antiga torre de menagem encontra-se referida como “torre do relógio”, informando-se que o castelo era circundado por exteriormente por um "caminho de piquetes", tendo a leste um hornaveque, e a norte algumas obras baixas; a fortificação encerrava um quartel para uma campanha e um armazém convertido em quartel; o recinto magistral estava em bom estado, o castelo tinha uma parte da muralha arruinada, as portas e os quartéis precisavam de conserto; o hornaveque estava arruinado e cheio de casas particulares por dentro e por fora; ao longo do "ramal" sul tinha casas adossadas, algumas mais altas do que a muralha; as obras baixas estavam em bom estado.
Neste momento, em meados do século XIX, registou-se a desativação da tenalha que, por Aviso do Ministério da Guerra de 13 de agosto de 1856 viria a ser demolida. Uma planta da época mostra a couraça com adarve, ao qual se acedia por escadas interiores. Outra planta, com data de 1857 mostra boa parte da área militar e sua envolvente aproveitada para a agricultura. Ainda à época, uma planta com data de 1859 mostra que ainda subsistia a "couraça nova" desenhada por Duarte de Armas no século XVI, embora agora tivesse adossada pelo lado de fora uma casa e, pelo lado de dentro, três prédios.
Entretanto, a vila ia crescendo fora de muros e, ao atingir-se o último quartel do século, Melgaço, como outras vilas e cidades muralhadas no país, acabou por ser alvo das ideias desenvolvimentistas que viam nas antigas fortificações um estorvo ao crescimento urbano.
Da demolição da tenalha, surge a Praça do Comércio, mais tarde chamada de Praça da República. Tal é corroborado pelo Prof. Carlos A. Brochado de Almeida, que afirma “a Praça da República, na sua actual configuração, corresponde à área da antiga tenalha, obra defensiva projectada e erguida por causa das Guerras da Independência ou da Aclamação”em meados do século XVII.
Esta praça, de forma triangular, cujo eixo longitudinal se orienta a nascente/poente, constitui um mostruário da casa urbana minhota de oitocentos, sendo alguns exemplares de referência.
É o caso do prédio, no extremo norte/este, com um corpo rectangular, de dois pisos em cantaria autoportante de granito aparente, de aparelho irregular com juntas provavelmente em cimento, e mansarda rebocada e pintada a branco excepto molduras, cunhais e frontão triangular de remate da mesma. A dita mansarda e a varanda central do piso inferior compõem e acentuam a centralidade e a simetria da frontaria, quebrando a sua horizontalidade sublinhada pelo correr das varandas do piso 1 (a central para três vãos e as laterais para um vão), pela cornija e pela platibanda. A fenestração, alinhada entre todos os pisos, no corpo principal consiste em cinco vãos em arco quebrado (por piso) e o corpo da mansarda apresenta-se com três janelas de padieira ligeiramente encurvada.
Pode-se também citar, o edifício da farmácia, de planta longitudinal, de dois pisos e cuja fachada, de frontaria marcadamente horizontal, rebocada e pintada a branco excepto molduras, cunhais, frisos, embasamento e cornija, apresenta uma sucessão de cinco janelas de balcão sobrepostas a outras tantas portas rectangulares no piso térreo. De notar as ‘pinhas’ em vidro das varandas gradeadas e as grinaldas lavradas no lintel encurvado das janelas de sacada. Sobre a linha do telhado implantou-se uma fila de mansardas revestidas a folha de zinco ondulada pintada a branco e com janela de guilhotina.
Do lado oposto da praça, a sul/oeste, destaca-se um outro edifício, de três pisos, rebocado e pintado a cinza excepto molduras, cunhais, embasamento e cornijas. No piso térreo as portas e janelas são rectangulares com vergas rectas e encurvada (na porta central) e possuem molduras ligadas ás varandas do piso intermédio detentor de janelas de sacada em arco ogival. Este piso é rematado por cornija sob varanda corrida gradeada e ladeada por urnas sobre os cunhais. A rematar a fachada e ao centro ergue-se o último piso, mais estreito, coberto com telhado de quatro águas e fenestrado por três janelas rectangulares. Destacam-se a cancela e os lavrados da porta central do piso térreo e o belo desenho das bandeiras das janelas ogivais.
Os espaços públicos desta praça já foram alvo de vários arranjos. Um desses é aquele que mostramos na foto com a praça jardinada e que data de meados do século passado.

Praça da República por volta de 1950


Extraído de:
 - ALMEIDA, Pedro Miguel D. Brochado de e ALMEIDA, Carlos A. Brochado de (2006) - A intervenção arqueológica na casa n.º 92 da Rua Hermenegildo Solheiro, in ‘Boletim Cultural’, n.º 5, Ed. Câmara Municipal de Melgaço, Melgaço.
- MARTINS, Andreia et al (2008) – Melgaço – Defesa e morfologia urbana. HAP, FAUP, Porto.
 - Revista Municipal, n.º 35, Ano 23, Ed. Câmara Municipal de Melgaço, Melgaço, Abril 2005.
- ACER (Antero Leite e Susana Ferraz, 2007).

- www.fortalezas.org.

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