Castreja, em 1907
Em 1904, estando a veranear nas Agoas do Peso, fiz uma
excursão a Castro-Laboreiro em companhia do Rev.º Manoel José Domingues, Abbade
de Melgaço. A excursão foi muito breve. Partimos num dia de manhã, e voltamos
no dia seguinte depois de almôço. Tomei porém algumas notas ethnográficas e
dialectológicas que poderão ter utilidade para os estudiosos. Por isso, aqui as
publico, pouco mais ou menos na mesma fórma em que as tomei.
Castro Laboreiro fica na serra, em uma das regiões
portuguesas mais rústicas, por tanto preciosissima para investigações ethnológicas.
Há, de facto, a seu respeito já um ‘’ensaio anthropologico’’ dado a lume por
Fonseca Cardoso na revista Portugália, e algumas referências avulsas publicadas
no que toca a trajos, pelo falecido Rocha Peixoto, que igualmente se refere a
Castro-Laboreiro num artigo que escreveu nas Notas sobre Portugal, I, (1908),
acerca das fórmas da vida communalistica no nosso pais.
A palavra Castro-Laboreiro está por Castro-do-Laboreiro,
pois nos compostos d’esta espécie a particula articular, do, reduz-se, a de,
que depois cae às vezes: cfr. Ponte de Lima , por do Lima, beira-mar por beira-
do-mar. O povo em vez de Castro diz sempre Crasto (e sem Laboreiro). Esta
palavra não é mais que o latim Castrum que no latim da decadência significava
‘’oppidum’’; ella applica-se no nosso pais aos montes em que ha vestigios de
fortificações da epoca lusitanica: Castro-Laboreiro deve ter sido na origem um
castrum proto-historico.
O nome patrio dos habitantes de Laboreiro é Crastejos,
que assenta na fórma popular Crasto, já citada.
Como disse, partimos de Melgaço, o Sr.
Abbade e eu, uma manhã às 9 e meia, montados em mulas, e acompanhados de duas
robustas mocetonas, calçadas de grossos çoques (i.é, çocos ou ‘’socos’’), e com
polainas de branqueta. Não pareça descortesia irem dous homens com mulheres por
arreeiras; é este o costume local.
Fomos subindo montes, e atravessando miseros
logarejos: Cavalleiros, Cabana, Villa do Conde, Candosa, Ladrunqueira; neste
último as nossas companheiras beberam vinho mosto por uma malga, em uma venda.
Ao passarmos por Fiães, visitámos as ruinas
do convento que ahi se vêem entre bons campos, em meio do mysterioso silencio
que outr’ora convidava os monges à meditação; a entrada para lá é uma bella
alameda de carvalhos. A igreja conserva ainda as suas portas ogivaes. Diz-se
que em tempos viera para aqui a imagem de uma santa, que fez que num campo próximo
rebentassem agoas milagrosas que encheram um tanque; há muito que os milagres
acabaram, mas a lenda, que já tem o protótypo antigo na de Hippocrene, continua
a occupar a mente do povo, sempre propensas a maravilhas, especialmente por
estes lindos sitios do Alto-Minho, onde cada elemento da natureza, fonte,
ribeiro, collina, penhasco, árvore, ajuda a conservar os mytos poéticos do
passado, e promove a criação de outros novos.
Em vez de pinheiros, que abundavam até
agora, começam a ver-se unicamente vidos ou bidos (i.é, ‘’vidoeiros’’ou
‘’bétulas’’), carvalhos e plantas rasteiras. Continuámos a subir, e chegámos ao
sitio do Outeiro da Loba, que na sua denominação dá ideia da fauna local. Depois
chegámos a uma aldeia chamada A Alcobaça, palavra bastante curiosa, já por ser
precedida pelo artigo a, já porque serve para desfazer o erro dos que supõem
que a villa de Alcobaça, na Estremadura, deve o seu nome aos rios Alcoa e Baça.
Vê-se que Alcobaça foi expressão comum e bastante geral: além dos dois citados
exemplos, temos Alcobacinha no districto de Santarém, e Alcobaza na Hespanha.
Na Alcobaça termina propriamente a colheita
do milho e principia a do centeio. O milho, como é raro, recolhem-no em
canastros de vergas de carvalho, - espécie de sebes de carro, tapadas com cupulas
de colmo; peculiaridade esta d’aqui, e de Lamas de Mouro, que fica proximo.
Pouco depois entrámos na freguesia de
Castro-Laboreiro, pelo lugar de Porto de Cavalleiros: casas cobertas de colmo
(na Alcobaça já algumas), que, vistas de longe, mal se distinguem, na côr, dos
giganteos penedos de granito que as rodeiam. Portellinho, logo em seguida, é
povoação da mesma categoria. Contarei uma aventura que me aconteceu aqui.
Quando vou a alguma aldeia, costumo examinar os teares, porque ás vezes os pesos
d’elles ou tém forma artística, ou são objectos archeologicos, achados
casualmente no campo, e applicados para aquelle uso; em Portellinho vi um tear,
e pedi á tecedeira, - uma velha, em mangas de camisa, com o collete muito rente
ao corpo, e grossas polainas -, me deixasse entrar em casa, no que ella de boa
vontade consentiu, pois cuidou que eu era carpinteiro; a breve trecho, porém,
como a nossa gente do campo vive sempre debaixo do pesadelo dos tributos,
suppôs-me fiscal da fazenda, e toda se affligiu, sendo precisa a conciliadora
intervenção do Sr. Abbade para lhe incutir sossêgo, e eu poder sondar em
descanso o vetusto apparelho penelopeu, que infelizmente nada tinha especial."
Extraído de: Extraído de: VASCONCELOS, J. Leite de (1916) - Excursão a Castro Laboreiro in: Revista Lusitânia, Lisboa.
Muito bom.
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