quarta-feira, 30 de julho de 2014

A terrível epidemia de tifo em Castro Laboreiro (1913 - 1914)

Equipa da Cruz Vermelha em Castro Laboreiro em 1914

Há cerca de 100 anos atrás, Castro Laboreiro foi martirizada por uma terrível epidemia de tifo de tipo exantemático. Esta doença provocou em cerca de seis meses 76 mortes numa terra que já tinha sido flagelada em 1897 por uma outra epidemia. 
Os primeiros casos de tifo aconteceram nos últimos meses de 1913. A doença rapidamente se propagou na freguesia graças à facilidade de contágio e precárias condições de higiene. A este respeito diga-se que o tifo exantemático, provocado pela Rickettsia prowazekii, que é um agente patogénico altamente contagioso.
Durante vários meses, as populações viram-se completamente abandonadas à sua sorte sem qualquer tipo de assistência médica. Assim se explica o elevado número de mortos registados nesta epidemia.  
Na época, esse flagelo até foi um assunto falado na Câmara dos Deputados em Lisboa. Conta-se que em Janeiro de 1914, um padre chamado Fontinha alerta os deputados que lavrava em Castro Laboreiro uma epidemia terrível que já tinha provocado quatro mortos até àquele momento (informação muito longe do número real). Mas não foi suficiente para comover as galerias nem os ministros, que passaram rapidamente ao assunto seguinte.
Após meses de desespero, apenas em finais de Janeiro de 1914 é que chega a Castro Laboreiro uma equipa médica da Cruz Vermelha de Viana do Castelo para ajudar a combater esta epidemia. Já tinham morrido cerca de 60 pessoas até esse momento.
A equipa da Cruz Vermelha partiu de Viana às 8 horas do dia 26 de Janeiro e era composta apenas pelas ambulâncias e o pessoal médico considerado indispensável para as primeiras intervenções junto dos casos mais aflitivos. De comboio seguiu o restante pessoal, bem como todos os materiais e equipamentos que permitiriam montar um hospital de emergência na região. Não foi fácil o acesso à freguesia assediada pela epidemia, como refere o relatório elaborado pela Cruz Vermelha “Depois de uma pequena refeição tomada na vila de Melgaço, todo o pessoal que de Viana partiu em automóvel se pôs em marcha para Castro Laboreiro, onde chegou às 20 horas e trinta minutos extenuadíssimo, tendo atravessado uma extensão de 18 Km’s em manhosas cavalgaduras, por caminhos escabrosos e cheios de despenhadeiros”. Assim se justifica que para  vencer um percurso de 145 Km’s entre Viana e Castro Laboreiro fossem necessárias 12 horas.
Na região, à chegada, a coluna de socorro é recebida com manifestações de apreço e viva esperança, na expetativa de que se poria fim a uma epidemia que dizimava em média 2 a 3 pessoas por casa. Porém, a comitiva expedicionária sabia o quanto seria difícil a sua tarefa, já que depararam com um quadro demasiado desolador, assim definido no relatório da Cruz Vermelha: “A freguesia de Castro Laboreiro tem, segundo informações dadas pelo pároco, cinquenta quilómetros de área, dos quais quarenta são de raia seca, confinando com 11 freguesias espanholas e 3 portuguesas. Tem 3500 habitantes mas habitualmente só 2500 residem lá. Os restantes emigram para vários pontos em busca de trabalho. Este canto de Portugal é tudo quanto há de improdutivo, e a sua população é da mais atrasada e abandonada. A região somente produz centeio e batatas. O povo desconhece os mais rudimentares princípios de higiene, raríssimas vezes se lava, vive em promiscuidade com os animais em choupanas cobertas de colmo, sem compartimentos, todo o dia cheias dum espesso fumo, sob uma atmosfera irrespirável e dorme vestido num misto de idades e sexos sobre palha deitada numa espécie de masseira. As pessoas mais ilustradas da freguesia – o professor e quatro padres – em pouco desmancham este conjunto lastimoso.”
Apesar deste quadro dramático, a equipa da Cruz Vermelha não esmoreceu. Urgia fazer o necessário para controlar a epidemia e estancar o número assustador de mortes diárias. Assim, no dia imediato ao da sua chegada, logo pela manhã, acompanhados pelo professor da freguesia (Prof. Mathias de Sousa Lobato, conhecido como o Leão das Montanhas) a servir de guia, partiram na direção dos diversos lugares onde se conhecia o maior número de enfermos, tendo para o efeito que palmilhar por caminhos íngremes com afastamento de até cerca de 15 Km’s. E as piores previsões foram na íntegra confirmadas: dos 60 doentes visitados, 35 estavam atacados de febre tifóide, a quem foram ministrados os primeiros tratamentos. Porém a erradicação do mal passava por outra medidas, especialmente no isolamento dos doentes e desinfecção das suas pobres habitações. Tarefa nada fácil, dadas as condições de profunda miséria em que as populações viviam e a falta de um espaço condigno que pudesse servir temporariamente de hospital.
Desde tempos imemoriais que as populações portuguesas sempre dispuseram de condições de culto suficientemente condignas. Castro Laboreiro também não fugia à regra e no lugar das Cainheiras contava com a capela da Boavista. Apesar da sua área escassa, aí propôs a Cruz Vermelha a instalação do seu primeiro hospital, dado ainda não ser possível instalar o hospital de campo que se aguardava que chegasse ao local. Não foi fácil vencer a resistência do povo, pois considerava a instalação do hospital na capela uma ofensa a Deus. Convenceu-os o argumento de que até a Virgem da capela abençoaria os doentes, motivo para que a cura fosse mais célere. Não deu espaço para uma grande enfermaria, mas sempre foi possível instalar sete dos doentes mais graves. Diz-nos o relatório da Cruz Vermelha que os doentes ficaram sob estreita vigilância, mas com grande sacrifício de quem por eles velava, como menciona o mesmo “ficaram velando estes doentes, o enfermeiro de 1ª classe Alexandre Ramos, maqueiros José Francisco Barbosa e Alvares dos Reis, serventes Hermenegildo Gonçalves Viana e Carlos Baptista Viana, que na primeira noite de serviço tiveram por dormitório um palheiro próximo e para calcular o frio que passaram basta dizer-se que uma só manta era o agasalho de cada um. Estas mantas, as únicas que por casualidade existiam à venda um duas lojas de Castro Laboreiro, custaram 9 escudos. Numa venda próxima à capela-hospital, comeu o pessoal duas péssimas refeições pelo convidativo preço de 6 escudos.”
O tempo, com baixíssimas temperaturas, era o maior inimigo de quem no terreno tudo fazia para controlar a peste instalada e, ao fim de cinco dias teve que deslocar os doentes da capela-hospital para que estes não morressem de frio. Em casa, apesar das precárias condições, sempre estariam mais acautelados, até porque o seu estado de saúde, mercê dos tratamentos ministrados, era já satisfatórios.
Entretanto, na vila de Melgaço, também já se encontrava todo o material que permitiria a instalação de um hospital de campanha em Castro Laboreiro. A epidemia estava longe de ser vencida...


Leia a segunda parte deste artigo em AQUI - PARTE II

Informações extraídas de:
 Ilustração Catholica, nº 47, de 23 de Maio de 1914 Ano II, Braga;
- MARQUES, Ricardo (2013) - Portugal no ano da Grande Guerra, Oficina do livro, Lisboa.
- MEIRA, Gonçalo Fagundes (2013) - A cruz vermelha de Viana e a epidemia de Castro Laboreiro em 1914 in: Cadernos Vianenses, Tomo 47, Câmara Muniicipal de Viana do Castelo, Viana do Castelo;
- SEQUEIRA, José de Magalhães (1918) - Higiene e Profilaxia do Tifo Exantemático. tese de Doutoramento apresentada à Faculdade de Medicina da Universidade do Porto. Tipographia Mendonça, Porto.

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