Equipa da Cruz Vermelha em Castro Laboreiro em 1914
Há cerca de 100 anos atrás, Castro Laboreiro foi martirizada por uma terrível epidemia de tifo de tipo exantemático. Esta doença provocou em cerca de seis meses 76 mortes numa terra que já tinha sido flagelada em 1897 por uma outra epidemia.
Os primeiros casos de tifo aconteceram nos últimos meses
de 1913. A doença rapidamente se propagou na freguesia graças à facilidade de
contágio e precárias condições de higiene. A este respeito diga-se que o tifo
exantemático, provocado pela Rickettsia
prowazekii, que é um agente patogénico altamente contagioso.
Durante vários meses, as populações viram-se
completamente abandonadas à sua sorte sem qualquer tipo de assistência médica.
Assim se explica o elevado número de mortos registados nesta epidemia.
Na época, esse flagelo até foi um assunto falado na Câmara
dos Deputados em Lisboa. Conta-se que em Janeiro de 1914, um padre chamado
Fontinha alerta os deputados que lavrava em Castro
Laboreiro uma epidemia terrível que já tinha provocado quatro mortos até àquele
momento (informação muito longe do número real). Mas não foi suficiente para
comover as galerias nem os ministros, que passaram rapidamente ao assunto seguinte.
Após meses de desespero, apenas em finais de Janeiro de
1914 é que chega a Castro Laboreiro uma equipa médica da Cruz Vermelha de Viana
do Castelo para ajudar a combater esta epidemia. Já tinham morrido cerca de 60
pessoas até esse momento.
A equipa da Cruz Vermelha partiu de Viana às 8
horas do dia 26 de Janeiro e era composta apenas pelas ambulâncias e o pessoal
médico considerado indispensável para as primeiras intervenções junto dos casos
mais aflitivos. De comboio seguiu o restante pessoal, bem como todos os
materiais e equipamentos que permitiriam montar um hospital de emergência na
região. Não foi fácil o acesso à freguesia assediada pela epidemia, como refere
o relatório elaborado pela Cruz Vermelha “Depois de uma pequena refeição tomada na
vila de Melgaço, todo o pessoal que de Viana partiu em automóvel se pôs em
marcha para Castro Laboreiro, onde chegou às 20 horas e trinta minutos
extenuadíssimo, tendo atravessado uma extensão de 18 Km’s em manhosas
cavalgaduras, por caminhos escabrosos e cheios de despenhadeiros”.
Assim se justifica que para vencer um
percurso de 145 Km’s entre Viana e Castro Laboreiro fossem necessárias 12
horas.
Na região, à chegada, a coluna de socorro é recebida com
manifestações de apreço e viva esperança, na expetativa de que se poria fim a
uma epidemia que dizimava em média 2 a 3 pessoas por casa. Porém, a comitiva
expedicionária sabia o quanto seria difícil a sua tarefa, já que depararam com
um quadro demasiado desolador, assim definido no relatório da Cruz Vermelha: “A
freguesia de Castro Laboreiro tem, segundo informações dadas pelo pároco,
cinquenta quilómetros de área, dos quais quarenta são de raia seca, confinando
com 11 freguesias espanholas e 3 portuguesas. Tem 3500 habitantes mas
habitualmente só 2500 residem lá. Os restantes emigram para vários pontos em
busca de trabalho. Este canto de Portugal é tudo quanto há de improdutivo, e a
sua população é da mais atrasada e abandonada. A região somente produz centeio
e batatas. O povo desconhece os mais rudimentares princípios de higiene,
raríssimas vezes se lava, vive em promiscuidade com os animais em choupanas
cobertas de colmo, sem compartimentos, todo o dia cheias dum espesso fumo, sob
uma atmosfera irrespirável e dorme vestido num misto de idades e sexos sobre
palha deitada numa espécie de masseira. As pessoas mais ilustradas da freguesia
– o professor e quatro padres – em pouco desmancham este conjunto lastimoso.”
Apesar deste quadro dramático, a equipa da
Cruz Vermelha não esmoreceu. Urgia fazer o necessário para controlar a epidemia
e estancar o número assustador de mortes diárias. Assim, no dia imediato ao da
sua chegada, logo pela manhã, acompanhados pelo professor da freguesia (Prof.
Mathias de Sousa Lobato, conhecido como o Leão das Montanhas) a servir de guia,
partiram na direção dos diversos lugares onde se conhecia o maior número de
enfermos, tendo para o efeito que palmilhar por caminhos íngremes com afastamento
de até cerca de 15 Km’s. E as piores previsões foram na íntegra confirmadas:
dos 60 doentes visitados, 35 estavam atacados de febre tifóide, a quem foram
ministrados os primeiros tratamentos. Porém a erradicação do mal passava por
outra medidas, especialmente no isolamento dos doentes e desinfecção das suas
pobres habitações. Tarefa nada fácil, dadas as condições de profunda miséria em
que as populações viviam e a falta de um espaço condigno que pudesse servir temporariamente
de hospital.
Desde tempos imemoriais que as populações portuguesas
sempre dispuseram de condições de culto suficientemente condignas. Castro
Laboreiro também não fugia à regra e no lugar das Cainheiras contava com a
capela da Boavista. Apesar da sua área escassa, aí propôs a Cruz Vermelha a
instalação do seu primeiro hospital, dado ainda não ser possível instalar o
hospital de campo que se aguardava que chegasse ao local. Não foi fácil vencer
a resistência do povo, pois considerava a instalação do hospital na capela uma
ofensa a Deus. Convenceu-os o argumento de que até a Virgem da capela
abençoaria os doentes, motivo para que a cura fosse mais célere. Não deu espaço
para uma grande enfermaria, mas sempre foi possível instalar sete dos doentes
mais graves. Diz-nos o relatório da Cruz Vermelha que os doentes ficaram sob
estreita vigilância, mas com grande sacrifício de quem por eles velava, como
menciona o mesmo “ficaram velando estes doentes, o enfermeiro de 1ª classe Alexandre
Ramos, maqueiros José Francisco Barbosa e Alvares dos Reis, serventes
Hermenegildo Gonçalves Viana e Carlos Baptista Viana, que na primeira noite de serviço
tiveram por dormitório um palheiro próximo e para calcular o frio que passaram
basta dizer-se que uma só manta era o agasalho de cada um. Estas mantas, as
únicas que por casualidade existiam à venda um duas lojas de Castro Laboreiro,
custaram 9 escudos. Numa venda próxima à capela-hospital, comeu o pessoal duas
péssimas refeições pelo convidativo preço de 6 escudos.”
O tempo, com baixíssimas temperaturas, era o maior
inimigo de quem no terreno tudo fazia para controlar a peste instalada e, ao fim
de cinco dias teve que deslocar os doentes da capela-hospital para que estes
não morressem de frio. Em casa, apesar das precárias condições, sempre estariam
mais acautelados, até porque o seu estado de saúde, mercê dos tratamentos
ministrados, era já satisfatórios.
Entretanto, na vila de Melgaço, também já se encontrava
todo o material que permitiria a instalação de um hospital de campanha em
Castro Laboreiro. A epidemia estava longe de ser vencida...
Leia a segunda parte deste artigo em AQUI - PARTE II
Informações extraídas de:
- Ilustração Catholica, nº 47, de 23 de Maio de 1914 Ano II, Braga;
- MARQUES, Ricardo (2013) - Portugal no ano da Grande Guerra, Oficina do livro, Lisboa.
- MEIRA, Gonçalo Fagundes (2013) - A cruz vermelha de Viana e a epidemia de Castro Laboreiro em 1914 in: Cadernos Vianenses, Tomo 47, Câmara Muniicipal de Viana do Castelo, Viana do Castelo;
- SEQUEIRA, José de Magalhães (1918) - Higiene e Profilaxia do Tifo Exantemático. tese de Doutoramento apresentada à Faculdade de Medicina da Universidade do Porto. Tipographia Mendonça, Porto.
- MEIRA, Gonçalo Fagundes (2013) - A cruz vermelha de Viana e a epidemia de Castro Laboreiro em 1914 in: Cadernos Vianenses, Tomo 47, Câmara Muniicipal de Viana do Castelo, Viana do Castelo;
- SEQUEIRA, José de Magalhães (1918) - Higiene e Profilaxia do Tifo Exantemático. tese de Doutoramento apresentada à Faculdade de Medicina da Universidade do Porto. Tipographia Mendonça, Porto.
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