sábado, 16 de janeiro de 2016

O "Drama de Alvaredo": a história de um crime e dos criminosos


Igreja Paroquial de Alvaredo (Melgaço)

No fim do século XIX, aconteceu no nosso concelho aquele que ficou conhecido como o “Drama de Alvaredo” ou o “Crime de Melgaço”,  os últimos cometidos por um bando de criminosos que mais tarde seriam capturados e julgados no tribunal de Melgaço em 1893.
O início da história conduz-nos a uma mulher chamada Maria da Piedade oriunda de S. João da Pesqueira e ao seu namorado Alfredo...
Maria da Piedade foi lavadeira mas não se deu bem. Apaixonou-se e passou a trabalhar junto do seu cabouqueiro, vendendo goles de aguardente. Mas o seu amor virou assassino e ela condenada por fogo posto.
Perguntou-lhe se não queria fazer um seguro da casa, pois se esta ardesse ganhavam algum dinheiro, mas Alfredo não quis, andava com outras preocupações, nos preparativos de coisa mais rendosa. Então, Maria da Piedade, meteu mãos à obra e fogo na casa em que habitava às portas da cidade de Lisboa. No meio disto, envolveu-se num assalto que acabou em assassínio e foi presa, com o seu amor, na cidade do Porto.
Dois anos antes, andava de um lado para outro, de galochas e odre a tiracolo, vendendo goles de aguardente ao pessoal da obra do túnel ferroviário de Lisboa, no lado de Campolide, na zona da Rabicha, a quinta que o caminho de ferro atravessará vindo do Rossio. Chamavam-lhe a Aguardenteira. A primeira ideia seria servir o namorado, mas o grupo de cabouqueiros a que este pertencia fez-lhe criar o negócio.
Maria da Piedade, nascida em São João da Pesqueira, distrito de Viseu, no ano de 1854, vivia com Alfredo Gomes, numa casa abarracada no sítio de Sant’ana, para lá da ribeira de Alcântara, onde hoje se localiza a Vila Ferro, no Bairro da Liberdade. Morava perto das obras do túnel da Rabicha, por isso, quando os homens esvaziavam a borracha, como chamavam ao recipiente que ela trazia ao ombro preso com uma correia, podia rapidamente ir enchê-la.
Piedade andava por ali, entre os trabalhadores, sem temer pelo físico. Não era mulher de se assustar, era valente “e mais temível do que muitos homens”, apesar de franzina. No sítio de Sant’ana, ninguém se metia com ela, “citavam-se proezas, na verdade extraordinárias, praticadas por aquela nova padeira de Aljubarrota”, escreveu em 1897 o jornalista Luiz Silva, na “Galeria dos Criminosos Célebres em Portugal” publicada em 1897. E andava com más companhias. O namorado e os cinco vizinhos que hão de entrar no assalto fatídico, eram ali conhecidos como “desordeiros, jogadores e amigos de galinhas”, segundo o jornal “A Vanguarda”.
Na sua folha corrida, constavam duas prisões por ofensas corporais, uma em outubro de 1890 e outra no mesmo mês do ano seguinte. Nada de  extraordinário. Antes de ser Aguardenteira, Maria da Piedade ganhou músculo lavando roupa. Mas não por muito tempo, o mundo das lavadeiras também não corria de forma pacífica. Era um negócio muito competitivo… Veja-se um caso passado em setembro de 1892, quando desapareceu uma saia à lavadeira Maria de Jesus. Decorridos onze meses, a governanta do tanque nº 6, onde se dera o roubo, reconheceu a peça de roupa na mão de Joana Maria, quis tirar-lha e, como a outra não cedesse, agrediu-a, pondo-a fora do tanque que geria.
“A guarda municipal da estação do Pasteleiro, a quem a Joana se queixou, interveio e quis arbitrariamente, fazer com que a Joana continuasse a lavar no tanque, chegando a querer obrigar a governante a acompanhar a parte do ocorrido para o quartel”, noticiou em 12 de agosto de 1893, rematando: “Se o caso se assim se deu, parece-nos incorreto o procedimento da guarda e para ele chamamos a atenção do sr. comandante”.
O caso não foi com a Maria da Piedade, aliás, ela já não se encontrava no continente quando se deu o desenlace, mas podia ter sido, dado o seu feitio. Uma agressão, ou mesmo um roubo, poderiam tê-la levado a mudar de profissão, todavia, sabe-se apenas que o negócio de lavadeira não lhe correu bem e, por isso, pensando no seu Alfredo, virou-se para a venda de aguardente nas obras do túnel que irão proporcionar viagens entre o Rossio e Sintra, ida e volta, a mil réis em 1.ª classe, 900 em segunda e 500 em terceira. Por esta época, um operário ganhava cerca de 200 réis por dia.
Os trabalhos começaram em 1887 e terminaram três anos depois, mas o primeiro comboio a testar a circulação no túnel fê-lo em abril de 1889, levou 27 minutos, hoje demora três. Foram escavados 2612 metros de rocha calcária, entre o Rossio e Campolide; com a abertura da estação central, em junho de 1890, ficou a linha férrea de Lisboa a Sintra, Torres e Figueira a Alfornelos com um movimento de 50 comboios diários. E o casal de Sant’ana, assim como os caboqueiros seus vizinhos, ficaram desempregados, por pouco tempo…
Piedade adorava o seu Alfredo. Quando forem presos, há de jurar-lhe que nunca o abandonará. Mais novo quinze anos do que ela, era um rapaz destemido, habituado a abrir caboucos e muitas vezes obrigado a alargar o campo de ação pela força das circunstâncias, significando esta a falta de dinheiro, por dispêndio excessivo em jogo e vinho, embora deste último não haja notícia de exageros, apesar do tempo que passava nas tabernas, com os seus companheiros, alguns de anos, outros mais recentes. Eram eles: António Fernandes, de 29 anos e de alcunha o Guerra, Santiago Rey y Lopez, de 37, António da Fonseca Pinto, de 35, João Esteves, de 24, e Romão Lousada de 24 ou 25 anos.
Alfredo Gomes, de 23 anos, nascido em Monção, não se saía mal, normalmente, quer dizer, nunca fora preso por roubar, tal como Maria da Piedade que não faria do roubo a sua ocupação principal, até ao malfadado dia em que um assalto deu para o torto e a polícia se revelou bastante eficiente. O namorado ganhara a sua coroa de glória num assalto na vizinha Espanha, do qual escapara por um triz, e isso dera-lhe confiança para continuar tivesse ou não trabalho na construção civil.
Ele e o Romão Louzada, um espanhol de Pontevedra, participaram, entre 1887 e 1889, num assalto a casa de um padre, no lado de lá da fronteira. Foram experimentar a ligação ferroviária à província de Salamanca, provavelmente, depois de trabalharem nas obras entre Barca de Alva e La Fregeneda, troço inaugurado em dezembro de 1887, mas quando apanharam o comboio já iam com o propósito do roubo. Eles e outros mais, desconhece-se quantos, uma vez que a coisa correu bem.
Assaltaram-lhe a casa à noite, a horas mortas. O padre espanhol ainda resistiu, não querendo dizer onde guardava o dinheiro. Mas não lhe serviu de nada, ao ver-se atado, deitado num colchão de palha a que os ladrões largaram fogo, logo se prontificou a revelar o esconderijo. Os meliantes extinguiram as chamas, agarraram no dinheiro e fugiram. O Romão, ligeiramente ferido, escondeu o roubo nas ceroulas e chegou bem a Lisboa, o Alfredo passou um momento de tensão quando, na estação da fronteira espanhola, o consideraram suspeito. Livrou-se, dizendo ser “limpiador do comboio e começando a fingir que o limpava”, contou “A Vanguarda”.
A dada altura, no mês de junho, João Esteves soube que uma sua tia de Monção, governanta em casa do reitor da freguesia de Trovisco, recebera um conto de réis de herança, e desafiou os amigos cabouqueiros. “Não acham que seria um golpe real apanharmos aquele dinheiro? Além disso o reitor também possui pé de meia. De uma cajadada matam-se dois coelhos. Que dizem?” Como o golpe de Salamanca dera uma boa maquia, Romão e Alfredo pensaram que não seria má ideia roubar outro sacerdote, já que estes possuíam sempre alguma riqueza. Dias depois, a 25 de junho, reuniram-se de novo, desta feita em casa de Alfredo e de Maria Piedade, para acertar o que fazer.
Enquanto os homens andavam nesta combinação, Maria da Piedade engendrava outra maneira de ganhar não apenas uns cobres, mas uma boa maquia. Para isso, nada melhor do que fazer o que já ouvira que outros tinham feito com resultados positivos. Dirá depois que o espanhol Santiago é que a incentivou. “Podemos ganhar bastante com isso”, ter-lhe-á dito numa tarde. Pouco tempo depois, ela, que “nunca mais tinha pensado no assunto” desde que Alfredo recusara a ideia, correu a segurar a casa por 500$000 réis.
Escondendo de Alfredo aquilo que preparava, Maria da Piedade foi combinando com Santiago como iriam dar o golpe à companhia de seguros. Na madrugada de 26 de junho, estando já acertada a ida para norte, faltando apenas decidir o dia, os dois cúmplices mudaram todo o recheio para casa do espanhol. De seguida, esfarelaram um colchão, espalharam a palha pelo solo, regaram-na com aguardente e pegaram-lhe fogo. A casa, localizada ao lado da igreja, ardeu completamente. “Para se avaliar bem a força da amante do Alfredo, basta dizer que ela se dirigiu à esquadra próxima, e pediu a dois polícias que lhe servissem de testemunhas para receber o dinheiro do seguro!”, observou Luís Silva.
O incêndio não alterou os planos dos cabouqueiros. No dia seguinte, Romão decidiu que era tempo de partirem. Mandou Maria da Piedade chamar Alfredo. Esta foi a Campo de Ourique, direita à obra onde o namorado (os jornais da época referem-nos sempre como amantes, por não serem casados) se encontrava por esses dias a trabalhar, e disse-lhe: “O teu primo João está preso”. Alfredo percebeu logo que estava na hora, porém, mais tarde, Piedade dirá que desconhecia ser uma combinação dos homens.
“Alfredo, para ter dinheiro para a viagem, empenhou uma mala com roupa, um relógio e cadeia de prata, numa casa de penhores em Alcântara, por 15$000 réis. O Guerra empenhou umas argolas e umas contas de oiro da amiga por 3$900 réis; Santiago levou 3$000 reis que tinha em casa; Fonseca levava só um tostão, abonando-lhe Romão o dinheiro para a passagem e João não levava nada, porque ia às ordens de Alfredo”, contou “A Vanguarda”, adiantando que Romão era o que tinha mais “capitais”, ainda lhe sobrava dinheiro de Salamanca
Conforme tinham combinado, entretanto, para dar tempo às diligências necessárias, encontraram-se os seis cabouqueiros na estação da Avenida (como também se chamava ao Rossio) a afim de seguirem caminho. Por segundos, perderam o comboio, e voltaram a perdê-lo mesmo depois da correria que fizeram até Santa Apolónia. Regressaram a casa aborrecidos, sem tensões de desistirem. Na noite seguinte, a 28 de junho, portanto, embarcaram pelas 23 horas, decididos a irem roubar a tia e o padre.
Deviam ter pensado que, por vezes, o destino dá os seus avisos. A viagem correu bem. Fizeram uma paragem em Sacavém para comerem e de manhã já estavam noutro comboio com destino ao Porto, do qual sairiam na cidade Invicta para chegarem a Valença. Não havendo mais hipóteses ferroviárias, foram a pé até à casa do reitor da freguesia de Troviscoso. Percorridos os quase 20 quilómetros de caminho, chegaram ali já de noite, mas nada fizeram, havia gente acordada a regar o cultivo à volta da casa. Refugiaram-se no bosque e, sendo meia-noite, voltaram a tentar, contudo, foram vistos por um criado que agarrou numa espingarda e disparou um tiro que os pôs em fuga.
João Esteves lembrou-se, então, de um rendeiro que morava ali perto e que também devia ter que roubar. Já que ali estavam, pensaram todos, aproveitariam para não regressarem a Lisboa de mãos a abanar. Lá foram. Muito embora fosse de madrugada, também depararam com dois homens de sachola a trabalhar na horta. Nada feito, quanto menos esperassem levavam com as ferramentas e aparecia gente armada como em Troviscoso.
Escondendo-se na mata conferenciaram. António Fernandes lembrou-se então que não muito longe, no lugar de Vilar, freguesia de Alvaredo (Melgaço), a sua mãe fora criada de um padre que possuía uma razoável fortuna. Mais uma caminhada, estavam com azar mas desta vez conseguiriam. Pelas duas horas da madrugada de 2 de Julho, entraram na casa do padre Sousa Lobato. Só Romão não ia armado, dera a sua pistola ao Guerra, já que este emprestara a sua ao João Esteves, de resto Fonseca levava um punhal, Romão uma navalha, Santiago um revólver e um cacete.
Quando entraram, apesar do Santiago ter feito algum barulho, nenhum dos residentes acordou. Mas ao procurarem o dinheiro no quarto do padre, não tiveram a mesma sorte. O religioso ainda deu luta, mas ficou muito ferido. Com os gritos, o irmão e o cunhado acudiram, envolvendo-se todos à pancada, com tal estrondo que acordaram a vizinhança e os cabouqueiros não tiveram outro remédio senão porem-se a andar. Foi uma fuga desordenada, a pé, até Braga. Estavam praticamente sem dinheiro. Romão tinha uma moeda de cinco duros, mas ninguém a trocava; Santiago pensou empenhar o revólver mas as lojas estavam fechadas; o Guerra e o Fonseca decidiram ir a pé até ao Porto…
Maria Piedade ficara em Lisboa, entregue a si própria, confiando Alfredo que ela daria bem conta do recado e que ainda ganharia algum com isso. Pensou bem. Apesar de ter havido alguma desconfiança quanto à origem do fogo, a companhia de seguros acabou por dar-lhe 114$000 réis, uma boa maquia, embora longe do valor do seguro. Com esse dinheiro, a Aguardenteira foi à casa de penhores buscar os pertences do namorado, e resgatou ainda alguma roupa, umas argolas de nove mil réis, dois anéis, um afagador com medalha, uma pregadeira, tudo em ouro.
Depois disso, a 31 de julho, partiu para a Invicta, onde ainda deu ao Santiago 12 mil réis pelo trabalho, dois mil para alugar uma casa para todos e 300 para a mudança. Todavia, beneficiaria muito pouco com todo este movimento. O padre Sousa Lobato sucumbira aos ferimentos no dia 23 de julho, a partir daí as investigações intensificaram-se, ganhando um impulso com o aparecimento de uma carta anónima que dizia serem os bandidos trabalhadores em Lisboa.
No dia 1 de agosto, Maria da Piedade e Alfredo, que arranjara trabalho nas obras da circunvalação, alugaram uma casa nas Fontainhas. Daí a três dias estarão todos presos, com exceção de João Esteves que só será apanhado, no dia 25, por um carabinero, muito perto da fronteira, e o Romão Louzada que desaparecerá para sempre. Quando o casal foi detido, já o Fernandes, o Fonseca e o Santiago se encontravam no comissariado de Lisboa. A polícia rondara a casa de Alfredo e Piedade, mas não os detetara, só os vês quando os dois aparecem a espreitar na porta da frente…
Maria da Piedade tem algumas manhas. Lê-se no jornal que assumiu que deitara fogo à casa para receber o dinheiro do seguro e que “fez importantes revelações” sobre o “Drama de Alvaredo” ou “O Crime de Melgaço” como o caso ficou conhecido. No dia 8 de Agosto, foi ouvida no terceiro comissariado e no Tribunal da Boa Hora. “Interrogada em juízo declarou-se autora do crime, como já o fizera na polícia, sendo depois remetida ao Aljube”, noticiou “A Vanguarda”. O seu processo ficou separado do dos cabouqueiros.
Passado um ano, a 3 de Agosto de 1893, os cinco vizinhos presos na Cadeia da Relação do Porto são levados ao tribunal de Melgaço. Milhares de pessoas aguardam à porta a entrada dos assassinos do padre Manuel António de Sousa Lobato. Oito anos de prisão e 20 anos de degredo foi a sentença para quatro, o Guerra seria poupado em oito anos de África porque se provou ter ficado de vigia.
Maria da Piedade, de 38 anos, já tivera o seu julgamento e seguira há três meses para África. Fora condenada pelo crime de fogo posto, como mandava o Código Penal de 1886: seis anos de prisão, seguidos de dez de degredo, ou, em alternativa, 25 anos em Angola.

Quando ainda no comissariado foi acareada com Santiago Rey de Lopez, já que este negava ter recebido “doce duros” para a ajudar e se mostrava renitente em admitir o assalto em Melgaço, Maria da Piedade disse-lhe: “Ande homem, confesse que eu já confessei. Se vocês não tivessem dado com a língua nos dentes, podiam matar-me que eu negava tudo, ainda que me apertassem o pescoço até deitar a língua de fora”.

Fonte: Jornal Expresso.

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