Foi perto de Melgaço que ouvi contar esta lenda.
Lenda de amor infeliz, em que os protagonistas esbarram com a incompreensão dos
homens. Não está situada no tempo, mas começa como a maioria das lendas, com a
frase já gasta pela voz do povo:
Há muitos anos...
Sim, há muitos anos vivia perto de Melgaço um jovem nobre mas de fraca fortuna. Chamava-se Mendo de Azevedo, era valente, belo e doido pela aventura. Tendo sofrido um desaire político, passou a Espanha. E aí encontrou, certa tarde, numa das belas casas solarengas de La Marina, uma jovem muito bela, muito rica e muito nobre. Chamava-se a donzela Sol e pertencia à família dos senhores de Yepes.
D. Mendo arranjou meio de a ver muitas vezes. E porque era também jovem, belo e nobre, fácil lhe foi conquistar aquela que era para ele já toda a razão da sua existência.
Tentou D. Mendo consertar a sua vida em Portugal. O amor fizera dele um outro homem, mais crente, mais sensato.
Apesar de lhe terem sido confiscados os bens, conseguiu um perdão para voltar à pátria. Porém, o seu desespero foi enorme quando, ao pedir-lhe a mão de sua filha D. Sol, ouviu da boca do senhor de Yepes um tremendo «não».
Desorientado, D. Mendo fez o que nunca fizera: suplicou. Foi, porém, escarnecido e alcunhado de querer caçar fortunas!
Ferido gravemente no seu amor próprio, D. Mendo encheu-se de coragem e resolveu abandonar para sempre o que fora o seu grande sonho de amor. Para isso conseguiu uma pequena entrevista com a jovem D. Sol. Ela surgiu-lhe a medo, por entre a folhagem do jardim e quando a Lua começava a pratear toda a avenida dos lilases. Ele beijou-lhe a mão gelada.
— Querida, será esta a última vez que vos procurarei!
Ela levou ao rosto o seu lencinho de rendas. Balbuciou:
— Amo-vos, D. Mendo! Serei incapaz de amar outro qualquer!
— Mas se vosso pai me insultou, como poderei permanecer aqui sem manchar o meu nome?
— Levai-me convosco!
— Impossível!
— Porquê? Colocais o vosso nome acima da nossa afeição?
D. Mendo suspirou.
— Minha querida Sol, tentai compreender. Se eu vos raptasse, então sim... então poderiam chamar-me aventureiro ou caçador de fortunas. Eu quero-vos, mas com o consentimento de vosso pai.
— Nunca o dará!
— Talvez dê.
— Achais? Como?
— Se eu me alistar… se fizer a guerra no estrangeiro... se ganhar fama e fortuna... talvez ele ceda!
D. Sol deixou de chorar.
— E se a sorte vos for adversa? Se morrerdes ou ficardes prisioneiro?
— Será porque Deus assim o quis!
Ela deixou-se atrair ao abraço do bem-amado.
— Ide, então... mas voltai breve!... Eu esperarei por vós!
E o luar escondeu-se para não ver o beijo que trocaram...
D. Mendo de Azevedo cumpriu o que dissera. Seguiu para África a combater os infiéis. Entretanto, o senhor de Yepes formou logo um rápido plano: casar D. Sol com o filho de um amigo seu, oriundo da Toscana, o capitão D. Rodrigo Rocatti y Alvear.
Chorou a jovem amargamente. Pediu mil vezes a morte antes que chegasse o dia aprazado para o casamento. Olhava em volta, tentando encontrar um amigo que a ajudasse a cumprir a promessa que fizera a D. Mendo. Tudo em vão. O dia chegou. Implacável. Sem remédio.
De índole branda, D. Sol deixou-se conduzir pelo braço de D. Rodrigo. Ele bem a notara distante. Bem compreendera que não era amado. Aliás, o sogro contara-lhe o «simples episódio» de D. Mendo, agora longe e afastado para sempre. Mas no orgulho do capitão espanhol sangrava a ferida aberta pela permanente ausência espiritual da que fizera sua mulher.
O tempo passou. Talvez três… talvez quatro anos. As coisas não haviam mudado. Apenas D. Sol se mostrava cada vez mais triste, cada vez mais distante. E um dia chegou ao castelo onde habitavam os senhores de Rocatti y Alvear um cativo resgatado de Orão. E este cativo contou a D. Sol que estivera com um nobre português, D. Mendo de Azevedo, também cativo. Que esse português lhe falara saudosamente da sua pátria e de uma terra de Espanha onde deixara o seu coração. Sobressaltou-se D. Sol e quis saber mais desse português. Nunca ela fora tão viva na conversa, no interesse pelos outros... O ex-cativo contou então qual era a vida de D. Mendo remando numa galera mourisca e exposto a todos os escárnios.
Consumida pelo remorso, pois só por ela D. Mendo partira, D. Sol perguntou ao ex-cativo se não haveria forma de resgatar D. Mendo. Disse-lhe ele, então, que descobrira o quanto se tinham amado. E sabendo que o seu companheiro não teria forma de arranjar dinheiro para o resgate, viera ele procurá-la para que salvasse D. Mendo.
D. Sol perguntou ainda:
— Mas… foi ele quem vos mandou?
— Oh, não! Ele é demasiado soberbo! Acabará morrendo, porque se impõe, mesmo cativo, e os mouros hão-de matá-lo!
— E mais ninguém pensa em resgatá-lo? Ele não tem família em Portugal?
— A família está arruinada. Por isso me lembrei de vir procurar-vos.
D. Sol tapou o rosto com as mãos. Suspirou:
— Oh, meu Deus! Como hei-de arranjar tanto dinheiro?
— Eu esperarei. Só voltarei aqui quando me chamardes.
— E quem entregará o resgate?
— Eu próprio.
— Sem que se saiba que fui eu?
— Assim o juro!
— Nem mesmo a D. Mendo o direis?
— A ninguém, senhora!
— Pois aguardai alguns dias. Tenho muitas jóias e pode ser que consiga a quantia necessária. Depois vos mandarei chamar. E agora, ide! Receio que meu marido vos encontre.
Saiu o ex-cativo do castelo dos senhores de Rocatti, para dias depois lá voltar a receber uma enorme quantia em dinheiro, e jóias, e roupas. Porém, quando saiu, foi direito ao dono do castelo, dizendo, triunfante:
— Aqui tendes, senhor, do que vossa esposa é capaz!
D. Rodrigo empalideceu.
— O quê? Pois ela conseguiu... ela ousou entregar-vos tudo isso… para que o libertassem?
— Eis a prova, senhor!
D. Rodrigo encheu o peito de ar.
— Não há dúvida: ela será capaz de tudo! E tendes a certeza que ele foi já resgatado?
— Sim. Fomos ambos resgatados quase ao mesmo tempo. Um grande de Portugal intercedeu por ele.
— E porque viestes aqui dizer-me isso?
— Porque o odeio! Ele é um soberbo! Ousou bater-me!
— Porquê?
— Porque... porque duvidei da lealdade da sua bem-amada!
D. Rodrigo atirou ao chão um saco de moedas.
— Pois levai isso depressa e desaparecei da minha vista, se não quiserdes acompanhar minha esposa na lição que lhe vou dar!
O ex-cativo pegou na bolsa de dinheiro e desapareceu.
Só, D. Rodrigo rangeu os dentes de desespero e sibilou com ódio:
— Vou matá-la! Vou matá-la! Mas dar-lhe-ei uma morte lenta!
Encarcerada no subterrâneo do castelo, D. Sol esperava calmamente a morte anunciada. Na tarde do seu último dia, pediu ao carcereiro a esmola de um padre para a confessar. Correu o homem a satisfazer o pedido da mulher de seu amo. Foi a um convento próximo, contou o sucedido e pediu um frade. Logo um, entre os outros, pediu humildemente ao superior que o deixasse sair. Foi o padre com o carcereiro. Caminharam silenciosos. Chegados lá, D. Sol caiu de joelhos, proclamando a sua inocência. Contou o seu amor perdido e a sua fraqueza em ter consentido num casamento sem amor, o seu remorso por saber longe e sofrendo torturas sem nome o único homem que havia amado. Gritou o seu propósito de apenas desejar salvá-lo. Jamais pensara num gesto menos puro. Mas morria sem pena, porque a vida era para ela um fardo demasiadamente pesado.
Nem notou D. Sol como chorava o frade ao dar-lhe a absolvição. Por fim levantou-se. Olhou a dama por uns momentos e não pôde conter-se. Murmurou:
— Ambos morremos para o mundo para ressuscitar para Deus!
D. Sol, ouvindo-o assim, encarou-o melhor. Soluçou:
— Pois será possível? Será possível?
O frade segurou-lhe uma das mãos.
— Sim, é possível. Sou eu, o que foi Mendo de Azevedo e agora é apenas Frei João da Cruz!
— Mas como?... Como?
— Fui feito prisioneiro pelos mouros e resgatado por ordem do meu rei. Porém, quando já vinha perto, soube da vossa boda com D. Rodrigo. Então... julguei morrer de dor... Só o convento dominicano me recebeu e confortou!
Ela continuava soluçando.
— Senhor! Graças vos dou por me terdes acarinhado à hora da minha morte! Sabei vós, D. Mendo...
O frade interrompeu-a:
— Dizei antes Frei João da Cruz...
— Pois seja. Frei João, sabei que morro feliz! A nossa consciência fica limpa perante Deus! E se o não ficar perante os homens, que o mesmo Deus lhes perdoe! Dizei-lhes, Frei João... que estou pronta!
O frade limpou as lágrimas que lhe inundavam o rosto. Revoltou-se.
— Não, não poderei consentir! A vossa morte é uma violência. É necessário que D. Rodrigo reconheça que estais inocente. Vou falar com ele!
Ela gritou:
— Não o façais! Para ele basta o meu desejo de resgatar-vos como prova de que sempre vos amei!
— No pensamento nem sempre mandamos. Nos actos, sim. E de obras más estais inocente. Vou falar com D. Rodrigo!
E saindo apressado, sem qualquer despedida, Frei João da Cruz foi falar com o senhor do castelo.
Quando o monge pediu a D. Rodrigo o indulto de D. Sol, por saber da sua inocência, D. Rodrigo gracejou:
— Que sabeis, padre, das mentiras das mulheres? São capazes de tudo, mesmo à hora da morte!
O frade ripostou:
— Senhor! Juro-vos pela cruz que trago comigo, pelas minhas vestes de frade, que ela está inocente!
— E eu garanto-vos que ela é perjura! Que ela espera o homem que sempre amou para me atraiçoar! E que, para maior afronta, é português!
— E eu juro-vos que isso não acontecerá!
— Como o provais?
— Dizendo-vos que antes de ser Frei João da Cruz fui D. Mendo de Azevedo.
D. Rodrigo empalideceu de raiva e de surpresa. Exclamou:
— Como? Pois ela... ela viu-vos… ouviu-vos a sós?... Estiveram ambos… a rirem-se de mim?...
— Senhor, respeitai o meu hábito!
— Vou demonstrar-vos o meu respeito!
E sacando da espada, enterrou-a com requintes de malvadez no corpo do jovem frade. Depois, correndo ao cárcere, sem pronunciar qualquer palavra, matou D. Sol da mesma maneira.
Com a espada gotejando sangue, D. Rodrigo subiu do subterrâneo para o castelo. Parecia um espectro do Inferno. Vendo-o, os criados sumiram-se atemorizados. E no cimo do monte, no mosteiro dos dominicanos, o sino tocou e os frades oraram, mal a triste nova lá chegou a cima!
No eco do sino tocando, o vento segredava à floresta:
— Mataram Frei João da Cruz! Mataram Frei João da Cruz!
Há muitos anos...
Sim, há muitos anos vivia perto de Melgaço um jovem nobre mas de fraca fortuna. Chamava-se Mendo de Azevedo, era valente, belo e doido pela aventura. Tendo sofrido um desaire político, passou a Espanha. E aí encontrou, certa tarde, numa das belas casas solarengas de La Marina, uma jovem muito bela, muito rica e muito nobre. Chamava-se a donzela Sol e pertencia à família dos senhores de Yepes.
D. Mendo arranjou meio de a ver muitas vezes. E porque era também jovem, belo e nobre, fácil lhe foi conquistar aquela que era para ele já toda a razão da sua existência.
Tentou D. Mendo consertar a sua vida em Portugal. O amor fizera dele um outro homem, mais crente, mais sensato.
Apesar de lhe terem sido confiscados os bens, conseguiu um perdão para voltar à pátria. Porém, o seu desespero foi enorme quando, ao pedir-lhe a mão de sua filha D. Sol, ouviu da boca do senhor de Yepes um tremendo «não».
Desorientado, D. Mendo fez o que nunca fizera: suplicou. Foi, porém, escarnecido e alcunhado de querer caçar fortunas!
Ferido gravemente no seu amor próprio, D. Mendo encheu-se de coragem e resolveu abandonar para sempre o que fora o seu grande sonho de amor. Para isso conseguiu uma pequena entrevista com a jovem D. Sol. Ela surgiu-lhe a medo, por entre a folhagem do jardim e quando a Lua começava a pratear toda a avenida dos lilases. Ele beijou-lhe a mão gelada.
— Querida, será esta a última vez que vos procurarei!
Ela levou ao rosto o seu lencinho de rendas. Balbuciou:
— Amo-vos, D. Mendo! Serei incapaz de amar outro qualquer!
— Mas se vosso pai me insultou, como poderei permanecer aqui sem manchar o meu nome?
— Levai-me convosco!
— Impossível!
— Porquê? Colocais o vosso nome acima da nossa afeição?
D. Mendo suspirou.
— Minha querida Sol, tentai compreender. Se eu vos raptasse, então sim... então poderiam chamar-me aventureiro ou caçador de fortunas. Eu quero-vos, mas com o consentimento de vosso pai.
— Nunca o dará!
— Talvez dê.
— Achais? Como?
— Se eu me alistar… se fizer a guerra no estrangeiro... se ganhar fama e fortuna... talvez ele ceda!
D. Sol deixou de chorar.
— E se a sorte vos for adversa? Se morrerdes ou ficardes prisioneiro?
— Será porque Deus assim o quis!
Ela deixou-se atrair ao abraço do bem-amado.
— Ide, então... mas voltai breve!... Eu esperarei por vós!
E o luar escondeu-se para não ver o beijo que trocaram...
D. Mendo de Azevedo cumpriu o que dissera. Seguiu para África a combater os infiéis. Entretanto, o senhor de Yepes formou logo um rápido plano: casar D. Sol com o filho de um amigo seu, oriundo da Toscana, o capitão D. Rodrigo Rocatti y Alvear.
Chorou a jovem amargamente. Pediu mil vezes a morte antes que chegasse o dia aprazado para o casamento. Olhava em volta, tentando encontrar um amigo que a ajudasse a cumprir a promessa que fizera a D. Mendo. Tudo em vão. O dia chegou. Implacável. Sem remédio.
De índole branda, D. Sol deixou-se conduzir pelo braço de D. Rodrigo. Ele bem a notara distante. Bem compreendera que não era amado. Aliás, o sogro contara-lhe o «simples episódio» de D. Mendo, agora longe e afastado para sempre. Mas no orgulho do capitão espanhol sangrava a ferida aberta pela permanente ausência espiritual da que fizera sua mulher.
O tempo passou. Talvez três… talvez quatro anos. As coisas não haviam mudado. Apenas D. Sol se mostrava cada vez mais triste, cada vez mais distante. E um dia chegou ao castelo onde habitavam os senhores de Rocatti y Alvear um cativo resgatado de Orão. E este cativo contou a D. Sol que estivera com um nobre português, D. Mendo de Azevedo, também cativo. Que esse português lhe falara saudosamente da sua pátria e de uma terra de Espanha onde deixara o seu coração. Sobressaltou-se D. Sol e quis saber mais desse português. Nunca ela fora tão viva na conversa, no interesse pelos outros... O ex-cativo contou então qual era a vida de D. Mendo remando numa galera mourisca e exposto a todos os escárnios.
Consumida pelo remorso, pois só por ela D. Mendo partira, D. Sol perguntou ao ex-cativo se não haveria forma de resgatar D. Mendo. Disse-lhe ele, então, que descobrira o quanto se tinham amado. E sabendo que o seu companheiro não teria forma de arranjar dinheiro para o resgate, viera ele procurá-la para que salvasse D. Mendo.
D. Sol perguntou ainda:
— Mas… foi ele quem vos mandou?
— Oh, não! Ele é demasiado soberbo! Acabará morrendo, porque se impõe, mesmo cativo, e os mouros hão-de matá-lo!
— E mais ninguém pensa em resgatá-lo? Ele não tem família em Portugal?
— A família está arruinada. Por isso me lembrei de vir procurar-vos.
D. Sol tapou o rosto com as mãos. Suspirou:
— Oh, meu Deus! Como hei-de arranjar tanto dinheiro?
— Eu esperarei. Só voltarei aqui quando me chamardes.
— E quem entregará o resgate?
— Eu próprio.
— Sem que se saiba que fui eu?
— Assim o juro!
— Nem mesmo a D. Mendo o direis?
— A ninguém, senhora!
— Pois aguardai alguns dias. Tenho muitas jóias e pode ser que consiga a quantia necessária. Depois vos mandarei chamar. E agora, ide! Receio que meu marido vos encontre.
Saiu o ex-cativo do castelo dos senhores de Rocatti, para dias depois lá voltar a receber uma enorme quantia em dinheiro, e jóias, e roupas. Porém, quando saiu, foi direito ao dono do castelo, dizendo, triunfante:
— Aqui tendes, senhor, do que vossa esposa é capaz!
D. Rodrigo empalideceu.
— O quê? Pois ela conseguiu... ela ousou entregar-vos tudo isso… para que o libertassem?
— Eis a prova, senhor!
D. Rodrigo encheu o peito de ar.
— Não há dúvida: ela será capaz de tudo! E tendes a certeza que ele foi já resgatado?
— Sim. Fomos ambos resgatados quase ao mesmo tempo. Um grande de Portugal intercedeu por ele.
— E porque viestes aqui dizer-me isso?
— Porque o odeio! Ele é um soberbo! Ousou bater-me!
— Porquê?
— Porque... porque duvidei da lealdade da sua bem-amada!
D. Rodrigo atirou ao chão um saco de moedas.
— Pois levai isso depressa e desaparecei da minha vista, se não quiserdes acompanhar minha esposa na lição que lhe vou dar!
O ex-cativo pegou na bolsa de dinheiro e desapareceu.
Só, D. Rodrigo rangeu os dentes de desespero e sibilou com ódio:
— Vou matá-la! Vou matá-la! Mas dar-lhe-ei uma morte lenta!
Encarcerada no subterrâneo do castelo, D. Sol esperava calmamente a morte anunciada. Na tarde do seu último dia, pediu ao carcereiro a esmola de um padre para a confessar. Correu o homem a satisfazer o pedido da mulher de seu amo. Foi a um convento próximo, contou o sucedido e pediu um frade. Logo um, entre os outros, pediu humildemente ao superior que o deixasse sair. Foi o padre com o carcereiro. Caminharam silenciosos. Chegados lá, D. Sol caiu de joelhos, proclamando a sua inocência. Contou o seu amor perdido e a sua fraqueza em ter consentido num casamento sem amor, o seu remorso por saber longe e sofrendo torturas sem nome o único homem que havia amado. Gritou o seu propósito de apenas desejar salvá-lo. Jamais pensara num gesto menos puro. Mas morria sem pena, porque a vida era para ela um fardo demasiadamente pesado.
Nem notou D. Sol como chorava o frade ao dar-lhe a absolvição. Por fim levantou-se. Olhou a dama por uns momentos e não pôde conter-se. Murmurou:
— Ambos morremos para o mundo para ressuscitar para Deus!
D. Sol, ouvindo-o assim, encarou-o melhor. Soluçou:
— Pois será possível? Será possível?
O frade segurou-lhe uma das mãos.
— Sim, é possível. Sou eu, o que foi Mendo de Azevedo e agora é apenas Frei João da Cruz!
— Mas como?... Como?
— Fui feito prisioneiro pelos mouros e resgatado por ordem do meu rei. Porém, quando já vinha perto, soube da vossa boda com D. Rodrigo. Então... julguei morrer de dor... Só o convento dominicano me recebeu e confortou!
Ela continuava soluçando.
— Senhor! Graças vos dou por me terdes acarinhado à hora da minha morte! Sabei vós, D. Mendo...
O frade interrompeu-a:
— Dizei antes Frei João da Cruz...
— Pois seja. Frei João, sabei que morro feliz! A nossa consciência fica limpa perante Deus! E se o não ficar perante os homens, que o mesmo Deus lhes perdoe! Dizei-lhes, Frei João... que estou pronta!
O frade limpou as lágrimas que lhe inundavam o rosto. Revoltou-se.
— Não, não poderei consentir! A vossa morte é uma violência. É necessário que D. Rodrigo reconheça que estais inocente. Vou falar com ele!
Ela gritou:
— Não o façais! Para ele basta o meu desejo de resgatar-vos como prova de que sempre vos amei!
— No pensamento nem sempre mandamos. Nos actos, sim. E de obras más estais inocente. Vou falar com D. Rodrigo!
E saindo apressado, sem qualquer despedida, Frei João da Cruz foi falar com o senhor do castelo.
Quando o monge pediu a D. Rodrigo o indulto de D. Sol, por saber da sua inocência, D. Rodrigo gracejou:
— Que sabeis, padre, das mentiras das mulheres? São capazes de tudo, mesmo à hora da morte!
O frade ripostou:
— Senhor! Juro-vos pela cruz que trago comigo, pelas minhas vestes de frade, que ela está inocente!
— E eu garanto-vos que ela é perjura! Que ela espera o homem que sempre amou para me atraiçoar! E que, para maior afronta, é português!
— E eu juro-vos que isso não acontecerá!
— Como o provais?
— Dizendo-vos que antes de ser Frei João da Cruz fui D. Mendo de Azevedo.
D. Rodrigo empalideceu de raiva e de surpresa. Exclamou:
— Como? Pois ela... ela viu-vos… ouviu-vos a sós?... Estiveram ambos… a rirem-se de mim?...
— Senhor, respeitai o meu hábito!
— Vou demonstrar-vos o meu respeito!
E sacando da espada, enterrou-a com requintes de malvadez no corpo do jovem frade. Depois, correndo ao cárcere, sem pronunciar qualquer palavra, matou D. Sol da mesma maneira.
Com a espada gotejando sangue, D. Rodrigo subiu do subterrâneo para o castelo. Parecia um espectro do Inferno. Vendo-o, os criados sumiram-se atemorizados. E no cimo do monte, no mosteiro dos dominicanos, o sino tocou e os frades oraram, mal a triste nova lá chegou a cima!
No eco do sino tocando, o vento segredava à floresta:
— Mataram Frei João da Cruz! Mataram Frei João da Cruz!
Extraído de:
MARQUES, Gentil Lendas de Portugal Lisboa, Círculo de Leitores, 1997 [1962] , p.Volume V, pp. 95-99.
MARQUES, Gentil Lendas de Portugal Lisboa, Círculo de Leitores, 1997 [1962] , p.Volume V, pp. 95-99.
Sem comentários:
Enviar um comentário