quarta-feira, 18 de julho de 2012

Aclamação do Príncipe Regente em Melgaço (9 de Junho de 1808)


Naquela parte da província do Minho onde o rio deste nome, descendo da Galiza, entra em terras de Portugal, terminam estas num ângulo o mais setentrional do reino, e é aqui que está situada a vila de Melgaço, pequena e pouco considerável em si mesma, que, porém, deve ficar memorável na história. É em Melgaço que prendeu o fogo sagrado em 9 de Junho, para não mais se extinguir, nem mesmo na segunda invasão dos franceses debaixo do comando do Marechal Soult: ficou livre o recanto desta vila e seus contornos da nova torrente assoladora que se espalhou por todo o resto da província e abrangeu uma grande parte da Beira Alta e Trás-os-Montes. Feliz terra! Queira o céu conservar-te o brasão de nunca mais receberes as leis do usurpador, desde que naquele fausto dia abjuraste intrépida o seu nome odioso!
D. António Maria Mosqueira de Lira, provinciano ilustre do reino da Galiza, e aparentado com alguns grandes de Espanha, apresentou-se em Melgaço em casa de seu cunhado Caetano José de Abreu Soares, e anunciando secretamente ao Corregedor, que servia de Juiz de Fora, Filipe António de Freitas Machado, aí veio este, e tiveram uma conferência. A este tempo concorreu também António de Castro Sousa Meneses Sarmento, descendente ilustre pela linha da primogenitura dos antigos Castros de Melgaço, o qual, tendo servido dignamente o Soberano e a pátria na carreira da magistratura, se achava então retirado em sua casa; do que todos conferiram e trataram, resultou ficar decidida a aclamação.
Mosqueira tinha vindo prevenido com pouca gente armada, que deixara a pouca distância, e a fez logo entrar. Vieram também incorporados o Corregedor de Milmanda, o Abade de Esteriz e outras pessoas distintas da Galiza; e sendo dia de feira em Melgaço, e por isso de um numeroso concurso, os portugueses se unem aos espanhóis, e em presença do Juiz de Fora, que os observava no próprio campo da feira, soltam alegres vivas ao Príncipe Regente e detestações violentas contra Napoleão e seus delegados. Imediata ao campo da feira está a porta da vila, sobre a qual se achavam cobertas as Armas Reais; o povo as descobre num momento; passa depois a fazer o mesmo às da casa da Câmara e da fonte da vila; e para que a obra não ficasse imperfeita, o Corregedor de Milmanda com uma partida dos seus foi também descobrir as fonte de S. João da Orada, que ficavam em alguma distância. Tomás José Goemes de Abreu, Jacinto Manuel da Rocha Pinto, o Capitão mor João António de Abreu e o Doutor Miguel Caetano foram dos primeiros, e mais activos, que trabalharam nesta empresa, mas tiveram muitos outros companheiros que mostraram o maior patriotismo.
Não contentes os habitantes de Melgaço com o que haviam praticado dentro dos muros e nos subúrbios desta vila, eles quiseram levar a revolução aos povos vizinhos. Com efeito, num dos dias seguintes eles foram aclamar o nosso legítimo Soberano e descobrir as Armas Reais na ponte de Moro, termo de Monção, tendo na sua passagem praticado o mesmo no concelho de Valadares.
Determinou-se para o dia 10 a inauguração solene do estandarte nacional em Melgaço. O da Câmara foi arvorado no revelim do castelo, por entre novos vivas e aclamações, e com repetidas salvas e toques de sinos, antes e depois de um Te Deum e sermão que se celebraram nesse mesmo dia; e como eram necessários dois estandartes, para não haver falta nas acções da Câmara, o Juiz de Fora convocou os alfaiates da terra para fazerem um novo, como realmente fizeram numa manhã, e não se afastou deles enquanto não o concluíram. Estas pequenas circunstâncias, que parecem pequenas a quem as lê de sangue frio, são as que melhor manifestam na efervescência dos espíritos os verdadeiros sentimentos que existem nos corações, a fidelidade e o entusiasmo dos que as praticam*.
Até aqui era tudo alegria, mas dois dias depois houve uma terrível comoção, causada pela falsa notícia de que um exército francês havia desembarcado nas costas da Galiza, e tinha já um corpo de tropas em Caniça, povoação fronteira a Melgaço, para entrar nesta vila pela raia seca. A crise era terrível, porque achando-se estes povos absolutamente indefesos, não se lhes oferecia senão a alternativa de se humilharem ou resistirem; e em ambos os casos era muito arriscada a sua sorte: eles escolheram, sem hesitar, o mais heróico. Todos se puseram em movimento à voz dos sinos, e correram para a parte por onde se esperava o inimigo com duas peças de artilharia, as únicas que havia montadas, até o sítio da ponte das várzeas, onde residia o Capitão mor. Quando chegou o ajuntamento, já este sabia por um portador, que tinha mandado a Galiza, que tudo por lá se achava tranquilo, não havendo nem o mais leve rumor de inimigos por aquele lado.
Quando não devia já tratar-se senão de se restituírem todos a suas casas, a intriga e a discórdia, inimigos implacáveis da humanidade, que raras vezes podem separar-se destes ajuntamentos tumultuários, principiaram a derramar os seus venenos sobre gentes que não se tinham ajuntado senão para o justo fim de defenderem os direitos do Soberano, a religião e a pátria. Um paisano insolente, ostentando valentias, quando a ideia do perigo se tinha desvanecida, incita os povos para que marchem mais adiante e se façam fortes, enquanto o Capitão mor lhes ordenava prudentemente que se retirassem, prevenindo as desordens que o ajuntamento podia produzir. O paisano, inculcando patriotismo e valor, chegou a meter as mãos a duas pistolas contra o Capitão mor; mas felizmente o seu orgulho ficou confundido às mãos de outro paisano honrado, que, no meio da sua justa cólera, não pôde conter o transporte de pegar no insolente e o pisar aos pés.
Sufocado este primeiro sintoma vertiginoso, outro se levanta, que ia tomando um aspecto mais sério. Matias de Sousa e Castro, militar distinto com o posto de Tenente no desorganizado regimento de Valença, correu com os outros ao rebate de uma quinta onde se achava; e vendo arvorada na vila a bandeira encarnada, em sina de guerra, quis persuadir ao Juiz de Fora que a mandasse arrear, não por traição ou por fraqueza, pois pelo contrário foi um dos mais activos em dar as providências de defesa, mas sinceramente porque, dizia ele, a bandeira não aumentava nem diminuía as forças e os recursos, e vendo-a, os franceses se irritariam e passariam tudo à espada. O Juiz de Fora não anuiu à proposta, mas houve quem fosse espalhar a voz entre o povo, ainda congregado, que ele tinha feito arrear a bandeira, e foi o mesmo que lançar uma faísca sobre a pólvora. Levantou-se um tumulto em que ficou desde logo decretada a morte do Juiz de Fora; e para executarem este projecto, alguns dos amotinados se encaminharam para a vila; pararam e ficaram tranquilos, à vista da bandeira, que existia arvorada como dantes. Soube-se depois o conselho que o militar havia dado, e voltaram-se contra este, que, avisado a tempo, pôde a muito custo salvar a vida nos pés do seu cavalo.
Por esse mesmo tempo recebeu o Juiz de Fora uma daquelas furiosas cartas que Lagarde tinha escrito aos ministros territoriais por ocasião dos movimentos do Porto; ele não a publicou, mostrando-a somente a algumas pessoas da sua confiança, e continuando sempre a animar os progressos da revolução. Como os povos se viam sem tropas, sem armas e sem munições, recorreram ao Bispo e à Junta de Orense, e não foi debalde, porque das tropas que ali comandava o Marquês de Valadares, se destacaram logo alguns corpos para Milmanda e Celanova, prontos a entrarem no território português em caso de precisão.

Extraído de:
- http://asinvasoesfrancesas.blogspot.pt/2011/06/aclamacao-do-principe-regente-em.html

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